"A insurreição dos jogadores e o clima reivindicativo dividiram a sociedade. Regresso a Saltillo 86 e aos episódios insólitos, cujos relatos mitificados sobreviveram até hoje. O livro “Deixem-nos Sonhar” chegou esta quinta feira às livrarias e pode ler aqui um excerto da obra
Há uma linha, ainda que sinuosa, a ligar o remate portentoso de Carlos Manuel, em Estugarda, que tornou realidade o sonho improvável de qualificação para um Mundial, e o pontapé de Éder, que, em Paris, deu uma conquista internacional com a qual, em Portugal, poucos sonhavam. E essa linha foi estabelecida no México, quando um conjunto de jogadores protagonizou um processo reivindicativo sem precedentes, colocou fim à sua carreira internacional, mas abriu a porta à profissionalização do futebol português de selecções. O longo estágio de preparação da participação da selecção nacional no Mundial de futebol de 1986, no México, é frequentemente recordado como um episódio entre o trágico e o caricato, repleto de incidentes rocambolescos, alguns verdadeiros, outros efabulados, que servem para alimentar o imaginário do futebol português da década de 80. Contudo, 30 anos decorridos, se olharmos para o que se passou, de facto, naquelas longas semanas em Saltillo, o que podemos ver é um momento crítico na transição do futebol em Portugal. Foi a partir da rebelião de Saltillo que se iniciou um processo de modernização e profissionalização das selecções.
Há dois anos, quando decidimos regressar a uma distante participação da selecção portuguesa no México 86 para escrever o livro “Deixem-nos Sonhar” (que chegou às livrarias a 7 de dezembro), estávamos longe de imaginar as revelações que encontraríamos. Um projecto que partiu de uma combinação de retorno à memória do que foi, para uma geração de portugueses, um momento fundador da relação sentimental com o futebol e com a vontade de contar uma história pouco esclarecida evoluiu para uma outra coisa: um retrato do país e da forma como as transformações na sociedade portuguesa se estendiam ao mundo do futebol, mudando-o de forma profunda. Foram horas de conversas com jogadores e outros que estiveram no México, desde jornalistas a membros da equipa técnica, passando por responsáveis federativos; de leitura de páginas sem fim de jornais da época; de consulta de documentos sobre o processo — tudo para desvendar um dos grandes mistérios do futebol português.
Quando numa conversa com Diamantino, um dos protagonistas desta história, o ex-jogador do Benfica afirmava que, no Mundial do México, “não tinha acontecido nada de especial”, estávamos ainda longe de compreender o alcance da afirmação. Durante o estágio, em Saltillo, não aconteceu nada de especial — no sentido em que várias ideias feitas que persistem sobre esse período são, no essencial, isso mesmo, ideias feitas: nem os jogadores fizeram greve, nem se assistiu a um processo de politização de reivindicações corporativas geridas politicamente a partir de fora, nem sequer os muito glosados episódios com mexicanas foram diferentes dos ocorridos em estágios de selecções antes ou depois de Saltillo. Contudo, além dos incidentes e do confronto adversativo entre a Federação, presidida por um austero Silva Resende, e jogadores, liderados pelo capitão inesquecível, Manuel Galrinho Bento, algo de estrutural ocorreu, reflectindo transformações no futebol global, na sociedade portuguesa e nas estruturas dirigentes do futebol luso.
Numa canção que se revelaria premonitória, Herman José, pela voz inesquecível de Estebes, ainda antes da partida para o México, dera o mote com o hino não oficial dos Infantes, ‘Bamos Lá Cambada, Todos à Molhada’. Trinta anos depois, o atribulado estágio no motel La Torre e a participação de Portugal no Mundial do México em 86 podem ser descritos como um processo desorganizado, repleto de reivindicações incontidas e também de contradições. Mas o mais interessante é que já era possível antever neste momento atribulado, e naquilo que aparentava ser uma “cambada” em vez de uma selecção profissional, as sementes de uma mudança profunda.
Tal como depois de 1974, na política e no país, nada foi como antes; também o futebol de selecções se alteraria radicalmente depois da passagem pelo México-86. A rebelião de Saltillo foi um 25 de Abril do futebol português, e, à imagem da transição política, uma transformação modernizadora, tardia, com elementos caóticos e na qual as reivindicações laborais foram preponderantes. UM
Sonho por cumprir
Poucas frases reflectem de forma tão exacta o espírito do tempo como o apelo deixado cair pelo seleccionador nacional, José Torres, na véspera de um jogo decisivo com a República Federal da Alemanha, no outono de 1985. Quando o ‘Bom Gigante’ reclamou “deixem-me sonhar”, expressava o desejo de alcançar um objectivo improvável, mas, sem o saber, dava conta de um ambiente que se vivia no país. O que estava em causa, muitos se recordarão, era uma improvável qualificação da selecção das quinas para a fase final do Mundial de Futebol. Mas, três décadas decorridas, podemos ler naquele apelo uma metáfora do país.
Tinham passado pouco mais de dez anos desde o 25 de Abril e Portugal era, finalmente, devolvido à Europa. O país sonhava: os portugueses libertavam-se de um passado de pobreza e fechamento para, de novo, viverem o presente com optimismo. A sociedade democratizava-se, modernizava-se e começavam a cumprir-se as expectativas de desenvolvimento social prometidas com a revolução. Só que, em 1986, o novo e o europeu coexistiam com traços persistentes do passado. Na sociedade, com novos recursos e padrões de consumo que se desenvolviam lado a lado com bolsas persistentes de pobreza; na política, com a adesão europeia e as eleições de Soares para Presidente e de Cavaco Silva para primeiro-ministro, que coexistiam com défices profundos de pluralismo; e, por arrasto, também no futebol, em que os clubes regressavam às finais europeias, a selecção se qualificava sucessivamente para a fase final do Europeu, em 84, e do Mundial, em 86, enquanto as estruturas dirigentes se mantinham presas a uma organização corporativa, amadora e anacrónica.
Numa partida épica, Portugal derrotaria a imbatível República Federal da Alemanha e a qualificação para o Mundial, 20 anos após Inglaterra, tornava-se realidade. Mas se o sonho de Torres se materializava, começaria a desmoronar-se daí a alguns meses. Depois de o país europeu, democrático e à procura de uma modernidade nunca cumprida, concretizar uma ambição desportiva que aparentava ser impossível, o futebol português reencontrava-se consigo próprio. E o sonho, esse, afinal, não se cumpriria.
Em troca, o país assistiria, de novo incrédulo, à desorganização, às divisões, à conflitualidade e a um fatalismo bem adequado ao espírito luso. Derrotados pela Polónia e por um improvável Marrocos — depois de, na estreia, ter surpreendido com uma inesperada vitória ante Inglaterra, comandada por Bobby Robson —, Portugal abandonaria o Mundial na fase de grupos. Mexicanos. Foi no Mundial de 1986 que o futebol deu um passo significativo para a globalização, para a mediatização, e passou a ser, de forma irreversível, um negócio. Mas os jogadores, no centro de tudo, recebiam uma fatia pequena desse novo bolo.
Mais do que a performance desportiva, o que ficaria para a história seria uma das páginas mais negras do futebol português, ainda que com contornos nunca totalmente esclarecidos. Uma insurreição dos jogadores, em conflito aberto com a Federação, um clima reivindicativo que dividiu a sociedade portuguesa, num momento em que estava em causa a representação do país, tudo apimentado por episódios insólitos, cujos relatos mitificados sobreviveram até aos nossos dias.
É tentador olhar para a rebelião de Saltillo e justificá-la com base numa mistura singular de nacional-porreirismo, personalidades contrastantes e um conjunto de episódios rocambolescos. Mas há razões mais profundas para explicar o que se passou naqueles dias mexicanos, em relação aos quais perdura uma nostalgia forte em todos os participantes e uma aura de curiosidade no país, que, à época, acompanhou tudo com grande interesse.
O professor Monge da Silva, membro da equipa técnica liderada por Torres, resume bem no livro o que se passou: “Estavam a ocorrer uma série de novidades no desporto mundial. Poderá haver uma leitura laboral, o conflito entre os jogadores e a entidade patronal. Uma leitura organizativa, que a Federação não tinha de todo. Uma leitura sociopolítica, da fase do futebol e do país. Portanto, há várias leituras que se podem fazer. Além disso, cada indivíduo tem leituras diferentes. E há uns que só sabem dos episódios burlescos.”
O mundo do futebol em transição
Quando, em Saltillo, numa imagem que marcou uma era, o capitão Manuel Bento leu um comunicado, rodeado por todos os seus colegas, onde expressava o descontentamento dos jogadores portugueses com a Federação, o momento estava longe de ser um ato isolado, circunscrito ao futebol português. Durante o Mundial, os sinais de contestação com a FIFA vieram um pouco de todo o lado, expressando um novo tempo. Como afirmou o avançado argentino Jorge Valdano, em pleno México-86, “mais do que nunca, neste Mundial, os dirigentes da FIFA enfrentaram uma nova situação. Os jogadores começaram a tomar consciência de que não são só músculos, mas seres pensantes e actuantes”.
O Mundial de 1986 decorreu precisamente a meio do longo mandato de João Havelange como presidente da FIFA (1974-1998) e corresponde a um marco no futebol moderno. Ainda na ressaca do até então ponto mais baixo do futebol mundial — a tragédia de Heysel, em 29 de maio de 1985 —, o México-86 foi novo ponto de viragem. Num futebol crescentemente mediatizado e no qual as transmissões televisivas adquiriram um papel poucos anos antes impensável, o Mundial tornou-se definitivamente um negócio sem paralelo no universo desportivo. As grandes competições internacionais de futebol passaram a estar ao serviço dos patrocinadores oficiais e os bilhetes assumiram valores exorbitantes. De desporto do povo, o futebol ameaçava transformar-se numa experiência corporate, devidamente televisionada.
Foi precisamente no México que o futebol deu um passo significativo para a globalização, para a mediatização, e passou a ser, de forma irreversível, um negócio. Mas nem por isso se democratizava. “O povo tem a TV”, disse, sintomaticamente, o director da prova, o mexicano Guillermo Cañedo, vice-presidente da FIFA, empresário de televisão e parceiro dileto de Havelange — e intermediário dos acordos da FIFA com os media — em resposta às críticas de que os bilhetes para os jogos eram demasiado caros para os mexicanos.
O povo tinha a TV, os jogadores uma fatia ainda pequena do bolo, enquanto a organização estabelecia relações privilegiadas com os patrocinadores, que lucravam como nunca antes com o negócio do futebol. O desporto-rei estava em rápida transformação, mas nem todos os intervenientes beneficiavam da mesma forma dos recursos que envolviam a modalidade. Por esses anos, as transferências entre clubes de países diferentes ganhavam expressão (Maradona tinha ido de Barcelona para Nápoles por 7,5 milhões de dólares, à época um recorde), mas os salários dos jogadores pouco tinham a ver com os que se praticam actualmente; enquanto isso, os patrocinadores começavam a associar-se aos grandes eventos e os dirigentes do futebol tornavam-se figuras cimeiras nos seus países e à escala global. Havelange era, então, rei e senhor do futebol mundial.
Mas como é que os sinais desta mudança se faziam sentir no futebol português? O jornalista David Borges, enviado do “Record” ao México, lembra que, em 1986, “os jogadores tinham noção de que havia um mundo de gente a ganhar dinheiro à volta deles e que eles ganhavam pouco com isso”. O treinador e ex-jogador Jaime Pacheco confirma essa ideia, recordando que, entre os atletas, havia “a noção de que a Federação já recebia dinheiro da UEFA e da FIFA”. Ora, uma das razões desta mudança passou também pela emergência de um novo protagonista: Joaquim Oliveira, irmão do ex-jogador António Oliveira, começava por essa altura a construir o seu império, que seria central na transformação do futebol português desde então. Além da intermediação dos direitos televisivos, a Olivedesportos dava os primeiros passos, precisamente em torno do negócio da publicidade e dos direitos de imagem da selecção portuguesa. Ainda hoje, entre quem esteve em Saltillo, não há quem esqueça a imagem de Joaquim Oliveira, praticamente sozinho e apoiado por uns quantos mexicanos que contratou localmente, a montar a publicidade estática nos treinos da selecção.
Depois de, em 1984, durante o Europeu, a Federação já ter beneficiado da venda dos direitos de imagem, no México, Joaquim Oliveira alargava a sua influência. Ficou com os direitos dos jogos e, num concurso disputado com a agência de publicidade McCann, que representava os interesses da Sagres, acabou por assegurar também os direitos de imagem das camisolas de treino dos jogadores, que por sua vez cedeu a outra cervejeira, a Cristal. Oliveira, que já era agente FIFA e, por isso, conhecia os meandros do futebol internacional, viu que existia um nicho de mercado e um negócio de futuro. A Federação lucrava com esta intermediação. A questão é que, para os jogadores, inicialmente, pouca diferença fazia.
Jaime Pacheco lembra que os jogadores “andavam lá com a Cristal e a Mundial Confiança”, para acrescentar: “Tínhamos a noção de que eles pagavam muito dinheiro e tínhamos a ideia de que, por pouco que fosse, devíamos receber. Andávamos lá a carregar com publicidade às costas e entendíamos que devíamos ter algum.” O advogado Jaime Dória Cortesão, mais tarde nomeado pela Federação para instruir o inquérito aos factos ocorridos durante o Mundial, recupera uma metáfora utilizada pelos jogadores: “Nós éramos os manequins de montra e, se a Federação vendia publicidade por causa dos manequins de montra, então tínhamos que receber algum.”
Enquanto surgiam novos recursos no futebol, colocavam-se desafios que a estrutura da Federação, nuns casos, não era capaz de gerir, noutros não queria resolver. Monge da Silva reconhece: “É o momento onde se detecta o desfasamento enorme que havia entre a capacidade organizativa dos nossos dirigentes e aquilo que o futebol exigia.” Ribeiro Cristóvão, outra testemunha dos acontecimentos, não hesita: “Ninguém estava preparado para aquilo.” Esta ausência de capacidade da Federação, que teve várias manifestações antes e durante o Mundial, foi admitida pelo próprio Amândio de Carvalho, vice-presidente federativo, responsável pelas selecções e, entretanto, falecido. Havia uma enorme confusão em torno de quem era responsável pelo quê: “Os problemas dos prémios seriam da minha responsabilidade, uma vez que eu era o chefe da delegação. A publicidade estática era pacífica. O que não foi nada pacífico foi o problema das camisolas e a imagem. Eu estava absolutamente a leste dessa situação.”
Porventura, a ausência de uma estrutura profissional e minimamente organizada explica o essencial do que aconteceu, mas, entre os jogadores, ainda hoje persiste a dúvida. Carlos Manuel reconhece que “as coisas estavam desajustadas para a época e que essa foi uma das razões para que tudo tenha acontecido”, mas adianta: “Aquilo era cada marosca. A Federação recebeu dinheiro da FIFA, da Adidas, dos patrocínios. (...) O que terá acontecido ao dinheiro? Não sei. Eu não o vi; nós não o vimos. Aquilo era uma vergonha. As contas da Federação eram contas de sapateiro.” Rui Águas admite que “as coisas eram tão pouco claras que acredito que, nos corredores, em vez dos jogadores tenham sido beneficiadas outras pessoas”. Naturalmente, é hoje impossível apurar que destino foi dado ao dinheiro. Mas uma coisa é clara: a desorganização da Federação e a falta de diálogo com os jogadores, a somar a uma tensão que se vinha acumulando há anos, criaram o contexto propício a todo o tipo de explicações.
A selecção chegou ao México com um optimismo desportivo moderado, mas com um peso excessivo em cima dos ombros, fruto de tensões acumuladas ao longo dos tempos. Desde pelo menos o Euro-84, em França, que havia um conjunto de problemas por resolver, que se iam agravando. Reivindicações com dois anos — como os montantes da diária, dos prémios, dos direitos de imagem, a negociação dos seguros e até a atribuição do cartão vitalício da FPF, que dava entrada gratuita nos estádios — eram discutidas parcialmente ou, em alguns casos, ignoradas. Estas reivindicações que, aos olhos dos nossos dias, parecem menores — quer quanto aos montantes envolvidos quer quanto ao que estava em questão — devem ser interpretadas à luz da época.
Entre promessas incumpridas, que já vinham do passado, e uma incapacidade de dialogar e encontrar entendimento, o ambiente entre dirigentes e jogadores foi-se adensando. Um misto de complacência e ausência de liderança, do lado da estrutura federativa, e atletas cada vez menos tolerantes com a Federação foi ajudando a que o clima se degradasse até um ponto de não retorno.
Jaime Pacheco recorda que, após o apuramento, foram “feitas uma série de promessas, de que saberíamos quanto é que iríamos ganhar como diária e por prémio de apuramento. Nós sabíamos que os outros países tinham tudo organizado e o que queríamos era chegar ao México sem estarmos preocupados com o que íamos ganhar. Em 84 fomos ganhando força, toda a gente estava do nosso lado e mesmo assim as coisas ficaram por concretizar. Na fase de apuramento para o Mundial, voltámos a ter os mesmos problemas e inclusive nas vésperas do embarque para Saltillo”.
Os jogadores não compreendiam a degradação do diálogo e o motivo pelo qual nada se resolvia. Fernando Gomes sublinha isso mesmo, ao referir que, quando chegaram ao México, “estava tudo por resolver, com a agravante de tudo se ter arrastado dois anos”. O então capitão do FC Porto recorda: “Estivemos quase um ano a ter reuniões mensais para resolvermos os problemas e a Federação nunca quis concluir nada. Nunca existiu da parte de quem mandava vontade de fechar o processo. Protelavam sempre.” Jaime Pacheco acrescenta: “Tivemos mil e uma reuniões, muitas no próprio campo de treinos. Falávamos também com o Torres — e fizemos tudo para que a liderança dele não fosse posta em causa. Ele levava a mensagem para a direcção e trazia-nos outra, que era nenhuma. Era para amanhã, era para a semana, era para depois. Tinha sido tão simples resolver a situação — ou é isto ou não é nada ou é alguma coisa. Faz-me espécie porque é que eles nunca quiseram conversar connosco.” Gomes alinha pelo mesmo diapasão: “Cada vez que passava um mês, cada vez que era adiada uma reunião, os jogadores ficavam cada vez mais magoados. Fomos acreditando na resolução e depois reparámos que estávamos a ser enganados.”
O que explica este adiamento de um desfecho que, de uma forma ou de outra, teria de ocorrer? Aqui, as opiniões dividem-se. O mais certo é que a Federação estivesse convencida de que não precisaria de alcançar um entendimento com os futebolistas. Afinal, uma vez chegados ao México, a convocatória estaria fechada e não restaria aos jogadores alternativa. Muito provavelmente, a estrutura federativa pouco confiaria também no espírito de união do grupo e na capacidade reivindicativa dos atletas. A experiência do Euro-84 indiciava que os jogadores estariam pouco unidos e que, chegados à selecção, continuaria a imperar a fidelidade clubística. Além do mais, entre o elenco federativo, em particular para o presidente Silva Resende, persistia um sentimento de alguma desconsideração face aos jogadores, que coexistia com uma cultura autoritária.
Na visão do presidente da Federação, os jogadores estavam ali para jogarem e representarem as cores nacionais e à Federação caberia decidir o que fosse mais adequado, em nome do superior interesse nacional. Doze anos passados do 25 de Abril, o futebol português ainda era dominado por uma cultura de antigo regime e não acompanhava o passo de modernização e democratização que o país vinha vivendo. Rui Águas é perentório: “Houve muitas reuniões, definiu-se uma série de coisas, só que depois eles marimbaram-se. A Federação fez tábua rasa daquilo que se tinha falado e combinado. Chegaram ao primeiro dia de concentração e disseram: está aqui, comes e calas. Foi esse come e cala que criou o movimento. Esta história toda teve o condão de unir o pessoal contra a Federação.” José Carlos Freitas, enviado do jornal “O Jogo”, no mesmo sentido, confirma quer o adiamento sucessivo de qualquer solução para os problemas que se arrastavam quer o preconceito da Federação em relação aos jogadores: “Os dirigentes entendiam que os jogadores não percebiam nada daquilo. Só tinham de jogar à bola e limitarem-se a receber o prémio que eles entendessem — isto quando já havia jogadores que tinham contactos e já sabiam o que se passava lá fora, com outras selecções. Tudo isto por uma questão de mentalidade, de preconceito de classe.”
Com realismo, Jaime Cortesão coloca o dedo na ferida: “Se tivéssemos passado aos oitavos de final, aos quartos ou às meias-finais, não teria havido o processo Saltillo. Mesmo que o comportamento, que foi assim-assim ou admissível, passasse a ser inadmissível, não haveria. Mais uma vez, o penálti falhado, a bola que não entrou e o resultado é que pontificou. O que foi, ao fim e ao cabo, uma maneira de branquear as responsabilidades da Federação.” Em França, dois anos antes, o clima mais adversativo não fora um problema, porque a selecção teve um desempenho positivo. No México, uma eliminação precoce deu um relevo a uma rebelião que, de outra forma, teria ficado esquecida, enquanto isentou os responsáveis federativos de responsabilidades. Gomes conclui: “O país foi a vítima e nós, jogadores, fomos o bode expiatório. Hoje dificilmente isso aconteceria.”
Tanto tempo passado, Jaime Pacheco não esconde a mágoa: “Poderíamos ter tido outra estabilidade que não tivemos, quer no Europeu quer no Mundial. Poderíamos talvez ter ido mais além e ter evitado aquele calvário que o futebol português passou nos anos seguintes. A pior coisa que me aconteceu foi ter sido castigado na seleção e termos saído de lá como vilões, como se tivéssemos cometido algum crime grave. Honestamente, tenho a consciência de que não fiz nada para ser castigado, nem para ficarmos com aquela fama de que contribuímos para que o nome de Portugal ficasse com uma carga negativa. Também tenho a noção e a certeza de que esses acontecimentos provocaram uma maior organização e acabaram por ser uma mais-valia para o futebol português. Tenho a certeza disso. Hoje, a Federação tem os resultados que tem porque se iniciou um novo ciclo depois de Saltillo.”
A lesão de Bento - Um momento emblemático na crise de Saltillo
O capitão da selecção, um dos principais artífices da boa campanha lusa no Europeu anterior em França e determinante no jogo da qualificação na Alemanha (Carlos Manuel, colega de equipa, recorda como “as bolas batiam nos postes e no Bento”), voltou a ser figura de proa no México. Porém, tal não se deveu somente ao seu contributo desportivo, que se limitou a um jogo: a vitória ante a Inglaterra. Poucos dias antes da segunda jornada da fase de grupos, em que Portugal defrontaria a Polónia, Bento sofreu uma lesão gravíssima que o afastou do Mundial e, como se sabe hoje, marcou o fim de uma era nas balizas nacionais.
A descrição do lance, por Vítor Serpa, no jornal “A Bola”, é impressionante: “Um cruzamento, José António a saltar, Bento a aparecer por trás, a tocar no companheiro, a desequilibrar-se, a cair mal. Os seus gritos ganharam eco nas bancadas. Os companheiros correm para ele e deitam as mãos à cabeça. Houve quem fugisse logo dali, queriam afastar a visão terrível. (...) É o próprio jogador que, apesar das dores, e ao ver o pé virado, de lado, numa posição aterradora, tem ainda a coragem de o levar ao sítio. Quando o doutor Camacho Vieira chega junto dele, apercebe-se de que a lesão é grave. Bento logo lhe diz: ‘Doutor, não mexa muito na perna, está partida’. (...) O estádio parece um túmulo. O silêncio pesa em todos.”
Rui Águas, que anos mais tarde, em Kiev, protagonizaria uma situação idêntica, lembra-se do impacto que o acidente do colega teve nele: “Até fiquei maldisposto, pedi para sair.” Monge da Silva também não se conseguiu esquecer: “Foi uma coisa incrível. Ouve-se o estalo, um barulho impressionante.” Diamantino conta que “quando o Bento caiu, o pé dele ficou virado ao contrário e, sentado no chão, meteu-o no sítio. Entretanto, vinham o doutor Camacho Vieira e o massagista a correr e, quando chegaram, já o Bento tinha o pé no sítio e começaram a brincar porque não o tinham visto virado ao contrário. Ainda estava quente e não tinha dor, fizeram aqueles testes tipo entorse e ele tinha os ligamentos todos marados. Aquilo que o Bento lhe chamou... Alguém disse no hospital que, se ele não tivesse logo aquele sangue frio de meter o pé no lugar, seria muito mais grave. O certo é que acabou na mesma com a carreira dele”.
Para Jaime Pacheco, Bento “foi o melhor guarda-redes da história de Portugal” e acredita que a ausência forçada do número 1 português “foi a nossa desgraça. Com ele teríamos tido outros resultados. Era a nossa trave-mestra, o nosso suporte a todos os níveis. Sentimos muito a lesão dele”. Diamantino reconhece que “a equipa ficou muito abalada, o Bento era um elemento-chave e tínhamos uma confiança enormíssima nas suas capacidades”. Fernando Gomes, na mesma toada, recorda que Bento “era uma figura querida da selecção. A equipa ficou afectada emocionalmente pela sua lesão”, enquanto Rui Águas, apesar de considerar que o episódio “não desmoralizou a equipa, foi traumatizante. Aconteceu mesmo ali ao pé de nós, na véspera de um jogo decisivo”.
A desorganização
Da presença portuguesa no México-86 acumulam-se histórias reveladoras da impreparação e inaptidão da Federação Portuguesa de Futebol para lidar, então, com as exigências inerentes à participação num mundial. O episódio da lesão de Bento, até porque o ídolo se transformara subitamente num dos símbolos da reivindicação, fornece algumas delas.
Por exemplo, Ribeiro Cristóvão, que na viagem para o México se encontrava em período de convalescença de uma fractura no pé, viu-se confrontado com um pedido inusitado do capitão da selecção: “Ó chefe, você já se viu livre das muletas…” De acordo com o jornalista, a comitiva portuguesa “não tinha muletas” e foi ele quem “desenrascou a situação”.
Outro exemplo está relacionado com o seguro que, alegadamente, protegeia os atletas em caso de ocorrência de um sinistro. Amândio de Carvalho, questionado em Saltillo acerca do assunto, assegurou que existia “um seguro especial para o Mundial, que protege os jogadores e prevê tudo”. Passadas três décadas, em entrevista conduzida para o livro “Deixem-nos Sonhar”, o antigo dirigente reafirmou a existência do tal seguro e mostrou-se surpreendido quando o seu amigo Eurico Garrido, director do serviço de cirurgia do Hospital do Barreiro entre 1985 e 2003 e amigo chegado de Bento, o desmentiu: “Isso é completamente falso. O Bento só conseguiu as apólices de seguro muito mais tarde. Fomos com o advogado do Bento à Secretaria do Benfica e não havia documentação comprovativa de quaisquer seguros dos jogadores do Benfica presentes no México. Não sei como é que fizeram os acordos, mas os jogadores julgavam que tinham 20 mil contos (100 mil euros) de seguro por incapacidade. (...) Ele só conseguiu o seguro ao fim de um ano por via judicial. Nunca lhe deram as apólices, nunca teve direito a nada. Teve de ser a junta médica realizada na sede da Federação, a pedido de Bento, a declarar sem equívocos que se tratava de uma lesão aguda, e não qualquer recidiva de uma lesão antiga. Passados meses vi as apólices onde diziam que os directores tinham 7,5 contos (37,5 euros) por dia por qualquer acidente e os jogadores tinham 5 contos (25 euros). Ficou com uma incapacidade de 9,6 contos (48 euros) por mês. Foi o que lhe foi atribuído. Foi extorquido e, se não fossem as muitas insistências, não levaria nem um tostão. A Companhia de Seguros enganou a Federação, mas foi a posteriori. Todos os factos sugerem que parte dos seguros foi efetuada depois de virem do México.”
A vida de jornalista
Curiosamente, foram poucos os jornalistas que assistiram à lesão do capitão português. Vítor Serpa recorda-se de “alguns jornalistas distraídos” e explica o que aconteceu: “A Selecção treinava tantas vezes em tantos sítios que obrigava a um esforço grande. O Zé Torres disse: ‘Vamos só ali um bocadinho para suar um bocado’ e houve jornalistas que não foram a esse treino. Logo por azar, o Bento parte a perna naquela circunstância, nem sequer a jogar à baliza. Há um jornalista da Renascença, o Ribeiro Cristóvão, que fez a reportagem imediata da situação da perna partida. Vai para o hospital, fala com os médicos. Eu estou lá com o Nuno Ferrari, também vamos, mas o Fernando Correia, por exemplo, tinha ficado em Saltillo. Estava na piscina a apanhar sol, havia um telefone, ele atende e era de Lisboa a perguntar quando é que ele enviava a peça do Bento. E ele nem sabia que o Bento tinha partido a perna. Isto porque tudo aquilo, a dada altura, mudava de um dia para o outro. O treino tanto podia ser ali ao pé como a 50 quilómetros.”
Outro dos esforços significativos a que os jornalistas estavam sujeitos tinha que ver com as comunicações. O México, a contas com uma profunda crise financeira agravada pela ocorrência de um terramoto devastador um ano antes, via-se acometido por inúmeras carências. Para os jornalistas, a diferença no fuso horário e as condições precárias em que trabalhavam desde Saltillo eram constrangimentos difíceis de ultrapassar. Os meios eram escassos e as comunicações telefónicas incomportáveis.
Entre as várias peripécias vividas pelos jornalistas ao longo do Mundial, David Borges recorda-se de um grupo de jornalistas andar em busca de um telex, até que, finalmente, encontraram um, numa repartição pública. Era necessário negociar o acesso e a utilização do telex, o que acabou por se revelar simples: a repartição tinha um director fanático por futebol e o telex podia ser utilizado. Em troca, os jornalistas tinham de levar o dirigente da administração pública mexicana a assistir a um treino da selecção. Assim foi: “Fomos com ele, no carro dele. E passados 15 minutos, vimos com espanto o gajo, dentro do campo, a atirar bolas ao Bento. O Bento na baliza e o fulano a rematar. Depois, levou-nos de volta e, no caminho, ia a conduzir com o braço de fora e a dizer: ‘Isto é que é vida’.”"
Há uma linha, ainda que sinuosa, a ligar o remate portentoso de Carlos Manuel, em Estugarda, que tornou realidade o sonho improvável de qualificação para um Mundial, e o pontapé de Éder, que, em Paris, deu uma conquista internacional com a qual, em Portugal, poucos sonhavam. E essa linha foi estabelecida no México, quando um conjunto de jogadores protagonizou um processo reivindicativo sem precedentes, colocou fim à sua carreira internacional, mas abriu a porta à profissionalização do futebol português de selecções. O longo estágio de preparação da participação da selecção nacional no Mundial de futebol de 1986, no México, é frequentemente recordado como um episódio entre o trágico e o caricato, repleto de incidentes rocambolescos, alguns verdadeiros, outros efabulados, que servem para alimentar o imaginário do futebol português da década de 80. Contudo, 30 anos decorridos, se olharmos para o que se passou, de facto, naquelas longas semanas em Saltillo, o que podemos ver é um momento crítico na transição do futebol em Portugal. Foi a partir da rebelião de Saltillo que se iniciou um processo de modernização e profissionalização das selecções.
Há dois anos, quando decidimos regressar a uma distante participação da selecção portuguesa no México 86 para escrever o livro “Deixem-nos Sonhar” (que chegou às livrarias a 7 de dezembro), estávamos longe de imaginar as revelações que encontraríamos. Um projecto que partiu de uma combinação de retorno à memória do que foi, para uma geração de portugueses, um momento fundador da relação sentimental com o futebol e com a vontade de contar uma história pouco esclarecida evoluiu para uma outra coisa: um retrato do país e da forma como as transformações na sociedade portuguesa se estendiam ao mundo do futebol, mudando-o de forma profunda. Foram horas de conversas com jogadores e outros que estiveram no México, desde jornalistas a membros da equipa técnica, passando por responsáveis federativos; de leitura de páginas sem fim de jornais da época; de consulta de documentos sobre o processo — tudo para desvendar um dos grandes mistérios do futebol português.
Quando numa conversa com Diamantino, um dos protagonistas desta história, o ex-jogador do Benfica afirmava que, no Mundial do México, “não tinha acontecido nada de especial”, estávamos ainda longe de compreender o alcance da afirmação. Durante o estágio, em Saltillo, não aconteceu nada de especial — no sentido em que várias ideias feitas que persistem sobre esse período são, no essencial, isso mesmo, ideias feitas: nem os jogadores fizeram greve, nem se assistiu a um processo de politização de reivindicações corporativas geridas politicamente a partir de fora, nem sequer os muito glosados episódios com mexicanas foram diferentes dos ocorridos em estágios de selecções antes ou depois de Saltillo. Contudo, além dos incidentes e do confronto adversativo entre a Federação, presidida por um austero Silva Resende, e jogadores, liderados pelo capitão inesquecível, Manuel Galrinho Bento, algo de estrutural ocorreu, reflectindo transformações no futebol global, na sociedade portuguesa e nas estruturas dirigentes do futebol luso.
Numa canção que se revelaria premonitória, Herman José, pela voz inesquecível de Estebes, ainda antes da partida para o México, dera o mote com o hino não oficial dos Infantes, ‘Bamos Lá Cambada, Todos à Molhada’. Trinta anos depois, o atribulado estágio no motel La Torre e a participação de Portugal no Mundial do México em 86 podem ser descritos como um processo desorganizado, repleto de reivindicações incontidas e também de contradições. Mas o mais interessante é que já era possível antever neste momento atribulado, e naquilo que aparentava ser uma “cambada” em vez de uma selecção profissional, as sementes de uma mudança profunda.
Tal como depois de 1974, na política e no país, nada foi como antes; também o futebol de selecções se alteraria radicalmente depois da passagem pelo México-86. A rebelião de Saltillo foi um 25 de Abril do futebol português, e, à imagem da transição política, uma transformação modernizadora, tardia, com elementos caóticos e na qual as reivindicações laborais foram preponderantes. UM
Sonho por cumprir
Poucas frases reflectem de forma tão exacta o espírito do tempo como o apelo deixado cair pelo seleccionador nacional, José Torres, na véspera de um jogo decisivo com a República Federal da Alemanha, no outono de 1985. Quando o ‘Bom Gigante’ reclamou “deixem-me sonhar”, expressava o desejo de alcançar um objectivo improvável, mas, sem o saber, dava conta de um ambiente que se vivia no país. O que estava em causa, muitos se recordarão, era uma improvável qualificação da selecção das quinas para a fase final do Mundial de Futebol. Mas, três décadas decorridas, podemos ler naquele apelo uma metáfora do país.
Tinham passado pouco mais de dez anos desde o 25 de Abril e Portugal era, finalmente, devolvido à Europa. O país sonhava: os portugueses libertavam-se de um passado de pobreza e fechamento para, de novo, viverem o presente com optimismo. A sociedade democratizava-se, modernizava-se e começavam a cumprir-se as expectativas de desenvolvimento social prometidas com a revolução. Só que, em 1986, o novo e o europeu coexistiam com traços persistentes do passado. Na sociedade, com novos recursos e padrões de consumo que se desenvolviam lado a lado com bolsas persistentes de pobreza; na política, com a adesão europeia e as eleições de Soares para Presidente e de Cavaco Silva para primeiro-ministro, que coexistiam com défices profundos de pluralismo; e, por arrasto, também no futebol, em que os clubes regressavam às finais europeias, a selecção se qualificava sucessivamente para a fase final do Europeu, em 84, e do Mundial, em 86, enquanto as estruturas dirigentes se mantinham presas a uma organização corporativa, amadora e anacrónica.
Numa partida épica, Portugal derrotaria a imbatível República Federal da Alemanha e a qualificação para o Mundial, 20 anos após Inglaterra, tornava-se realidade. Mas se o sonho de Torres se materializava, começaria a desmoronar-se daí a alguns meses. Depois de o país europeu, democrático e à procura de uma modernidade nunca cumprida, concretizar uma ambição desportiva que aparentava ser impossível, o futebol português reencontrava-se consigo próprio. E o sonho, esse, afinal, não se cumpriria.
Em troca, o país assistiria, de novo incrédulo, à desorganização, às divisões, à conflitualidade e a um fatalismo bem adequado ao espírito luso. Derrotados pela Polónia e por um improvável Marrocos — depois de, na estreia, ter surpreendido com uma inesperada vitória ante Inglaterra, comandada por Bobby Robson —, Portugal abandonaria o Mundial na fase de grupos. Mexicanos. Foi no Mundial de 1986 que o futebol deu um passo significativo para a globalização, para a mediatização, e passou a ser, de forma irreversível, um negócio. Mas os jogadores, no centro de tudo, recebiam uma fatia pequena desse novo bolo.
Mais do que a performance desportiva, o que ficaria para a história seria uma das páginas mais negras do futebol português, ainda que com contornos nunca totalmente esclarecidos. Uma insurreição dos jogadores, em conflito aberto com a Federação, um clima reivindicativo que dividiu a sociedade portuguesa, num momento em que estava em causa a representação do país, tudo apimentado por episódios insólitos, cujos relatos mitificados sobreviveram até aos nossos dias.
É tentador olhar para a rebelião de Saltillo e justificá-la com base numa mistura singular de nacional-porreirismo, personalidades contrastantes e um conjunto de episódios rocambolescos. Mas há razões mais profundas para explicar o que se passou naqueles dias mexicanos, em relação aos quais perdura uma nostalgia forte em todos os participantes e uma aura de curiosidade no país, que, à época, acompanhou tudo com grande interesse.
O professor Monge da Silva, membro da equipa técnica liderada por Torres, resume bem no livro o que se passou: “Estavam a ocorrer uma série de novidades no desporto mundial. Poderá haver uma leitura laboral, o conflito entre os jogadores e a entidade patronal. Uma leitura organizativa, que a Federação não tinha de todo. Uma leitura sociopolítica, da fase do futebol e do país. Portanto, há várias leituras que se podem fazer. Além disso, cada indivíduo tem leituras diferentes. E há uns que só sabem dos episódios burlescos.”
O mundo do futebol em transição
Quando, em Saltillo, numa imagem que marcou uma era, o capitão Manuel Bento leu um comunicado, rodeado por todos os seus colegas, onde expressava o descontentamento dos jogadores portugueses com a Federação, o momento estava longe de ser um ato isolado, circunscrito ao futebol português. Durante o Mundial, os sinais de contestação com a FIFA vieram um pouco de todo o lado, expressando um novo tempo. Como afirmou o avançado argentino Jorge Valdano, em pleno México-86, “mais do que nunca, neste Mundial, os dirigentes da FIFA enfrentaram uma nova situação. Os jogadores começaram a tomar consciência de que não são só músculos, mas seres pensantes e actuantes”.
O Mundial de 1986 decorreu precisamente a meio do longo mandato de João Havelange como presidente da FIFA (1974-1998) e corresponde a um marco no futebol moderno. Ainda na ressaca do até então ponto mais baixo do futebol mundial — a tragédia de Heysel, em 29 de maio de 1985 —, o México-86 foi novo ponto de viragem. Num futebol crescentemente mediatizado e no qual as transmissões televisivas adquiriram um papel poucos anos antes impensável, o Mundial tornou-se definitivamente um negócio sem paralelo no universo desportivo. As grandes competições internacionais de futebol passaram a estar ao serviço dos patrocinadores oficiais e os bilhetes assumiram valores exorbitantes. De desporto do povo, o futebol ameaçava transformar-se numa experiência corporate, devidamente televisionada.
Foi precisamente no México que o futebol deu um passo significativo para a globalização, para a mediatização, e passou a ser, de forma irreversível, um negócio. Mas nem por isso se democratizava. “O povo tem a TV”, disse, sintomaticamente, o director da prova, o mexicano Guillermo Cañedo, vice-presidente da FIFA, empresário de televisão e parceiro dileto de Havelange — e intermediário dos acordos da FIFA com os media — em resposta às críticas de que os bilhetes para os jogos eram demasiado caros para os mexicanos.
O povo tinha a TV, os jogadores uma fatia ainda pequena do bolo, enquanto a organização estabelecia relações privilegiadas com os patrocinadores, que lucravam como nunca antes com o negócio do futebol. O desporto-rei estava em rápida transformação, mas nem todos os intervenientes beneficiavam da mesma forma dos recursos que envolviam a modalidade. Por esses anos, as transferências entre clubes de países diferentes ganhavam expressão (Maradona tinha ido de Barcelona para Nápoles por 7,5 milhões de dólares, à época um recorde), mas os salários dos jogadores pouco tinham a ver com os que se praticam actualmente; enquanto isso, os patrocinadores começavam a associar-se aos grandes eventos e os dirigentes do futebol tornavam-se figuras cimeiras nos seus países e à escala global. Havelange era, então, rei e senhor do futebol mundial.
Mas como é que os sinais desta mudança se faziam sentir no futebol português? O jornalista David Borges, enviado do “Record” ao México, lembra que, em 1986, “os jogadores tinham noção de que havia um mundo de gente a ganhar dinheiro à volta deles e que eles ganhavam pouco com isso”. O treinador e ex-jogador Jaime Pacheco confirma essa ideia, recordando que, entre os atletas, havia “a noção de que a Federação já recebia dinheiro da UEFA e da FIFA”. Ora, uma das razões desta mudança passou também pela emergência de um novo protagonista: Joaquim Oliveira, irmão do ex-jogador António Oliveira, começava por essa altura a construir o seu império, que seria central na transformação do futebol português desde então. Além da intermediação dos direitos televisivos, a Olivedesportos dava os primeiros passos, precisamente em torno do negócio da publicidade e dos direitos de imagem da selecção portuguesa. Ainda hoje, entre quem esteve em Saltillo, não há quem esqueça a imagem de Joaquim Oliveira, praticamente sozinho e apoiado por uns quantos mexicanos que contratou localmente, a montar a publicidade estática nos treinos da selecção.
Depois de, em 1984, durante o Europeu, a Federação já ter beneficiado da venda dos direitos de imagem, no México, Joaquim Oliveira alargava a sua influência. Ficou com os direitos dos jogos e, num concurso disputado com a agência de publicidade McCann, que representava os interesses da Sagres, acabou por assegurar também os direitos de imagem das camisolas de treino dos jogadores, que por sua vez cedeu a outra cervejeira, a Cristal. Oliveira, que já era agente FIFA e, por isso, conhecia os meandros do futebol internacional, viu que existia um nicho de mercado e um negócio de futuro. A Federação lucrava com esta intermediação. A questão é que, para os jogadores, inicialmente, pouca diferença fazia.
Jaime Pacheco lembra que os jogadores “andavam lá com a Cristal e a Mundial Confiança”, para acrescentar: “Tínhamos a noção de que eles pagavam muito dinheiro e tínhamos a ideia de que, por pouco que fosse, devíamos receber. Andávamos lá a carregar com publicidade às costas e entendíamos que devíamos ter algum.” O advogado Jaime Dória Cortesão, mais tarde nomeado pela Federação para instruir o inquérito aos factos ocorridos durante o Mundial, recupera uma metáfora utilizada pelos jogadores: “Nós éramos os manequins de montra e, se a Federação vendia publicidade por causa dos manequins de montra, então tínhamos que receber algum.”
Enquanto surgiam novos recursos no futebol, colocavam-se desafios que a estrutura da Federação, nuns casos, não era capaz de gerir, noutros não queria resolver. Monge da Silva reconhece: “É o momento onde se detecta o desfasamento enorme que havia entre a capacidade organizativa dos nossos dirigentes e aquilo que o futebol exigia.” Ribeiro Cristóvão, outra testemunha dos acontecimentos, não hesita: “Ninguém estava preparado para aquilo.” Esta ausência de capacidade da Federação, que teve várias manifestações antes e durante o Mundial, foi admitida pelo próprio Amândio de Carvalho, vice-presidente federativo, responsável pelas selecções e, entretanto, falecido. Havia uma enorme confusão em torno de quem era responsável pelo quê: “Os problemas dos prémios seriam da minha responsabilidade, uma vez que eu era o chefe da delegação. A publicidade estática era pacífica. O que não foi nada pacífico foi o problema das camisolas e a imagem. Eu estava absolutamente a leste dessa situação.”
Porventura, a ausência de uma estrutura profissional e minimamente organizada explica o essencial do que aconteceu, mas, entre os jogadores, ainda hoje persiste a dúvida. Carlos Manuel reconhece que “as coisas estavam desajustadas para a época e que essa foi uma das razões para que tudo tenha acontecido”, mas adianta: “Aquilo era cada marosca. A Federação recebeu dinheiro da FIFA, da Adidas, dos patrocínios. (...) O que terá acontecido ao dinheiro? Não sei. Eu não o vi; nós não o vimos. Aquilo era uma vergonha. As contas da Federação eram contas de sapateiro.” Rui Águas admite que “as coisas eram tão pouco claras que acredito que, nos corredores, em vez dos jogadores tenham sido beneficiadas outras pessoas”. Naturalmente, é hoje impossível apurar que destino foi dado ao dinheiro. Mas uma coisa é clara: a desorganização da Federação e a falta de diálogo com os jogadores, a somar a uma tensão que se vinha acumulando há anos, criaram o contexto propício a todo o tipo de explicações.
A selecção chegou ao México com um optimismo desportivo moderado, mas com um peso excessivo em cima dos ombros, fruto de tensões acumuladas ao longo dos tempos. Desde pelo menos o Euro-84, em França, que havia um conjunto de problemas por resolver, que se iam agravando. Reivindicações com dois anos — como os montantes da diária, dos prémios, dos direitos de imagem, a negociação dos seguros e até a atribuição do cartão vitalício da FPF, que dava entrada gratuita nos estádios — eram discutidas parcialmente ou, em alguns casos, ignoradas. Estas reivindicações que, aos olhos dos nossos dias, parecem menores — quer quanto aos montantes envolvidos quer quanto ao que estava em questão — devem ser interpretadas à luz da época.
Entre promessas incumpridas, que já vinham do passado, e uma incapacidade de dialogar e encontrar entendimento, o ambiente entre dirigentes e jogadores foi-se adensando. Um misto de complacência e ausência de liderança, do lado da estrutura federativa, e atletas cada vez menos tolerantes com a Federação foi ajudando a que o clima se degradasse até um ponto de não retorno.
Jaime Pacheco recorda que, após o apuramento, foram “feitas uma série de promessas, de que saberíamos quanto é que iríamos ganhar como diária e por prémio de apuramento. Nós sabíamos que os outros países tinham tudo organizado e o que queríamos era chegar ao México sem estarmos preocupados com o que íamos ganhar. Em 84 fomos ganhando força, toda a gente estava do nosso lado e mesmo assim as coisas ficaram por concretizar. Na fase de apuramento para o Mundial, voltámos a ter os mesmos problemas e inclusive nas vésperas do embarque para Saltillo”.
Os jogadores não compreendiam a degradação do diálogo e o motivo pelo qual nada se resolvia. Fernando Gomes sublinha isso mesmo, ao referir que, quando chegaram ao México, “estava tudo por resolver, com a agravante de tudo se ter arrastado dois anos”. O então capitão do FC Porto recorda: “Estivemos quase um ano a ter reuniões mensais para resolvermos os problemas e a Federação nunca quis concluir nada. Nunca existiu da parte de quem mandava vontade de fechar o processo. Protelavam sempre.” Jaime Pacheco acrescenta: “Tivemos mil e uma reuniões, muitas no próprio campo de treinos. Falávamos também com o Torres — e fizemos tudo para que a liderança dele não fosse posta em causa. Ele levava a mensagem para a direcção e trazia-nos outra, que era nenhuma. Era para amanhã, era para a semana, era para depois. Tinha sido tão simples resolver a situação — ou é isto ou não é nada ou é alguma coisa. Faz-me espécie porque é que eles nunca quiseram conversar connosco.” Gomes alinha pelo mesmo diapasão: “Cada vez que passava um mês, cada vez que era adiada uma reunião, os jogadores ficavam cada vez mais magoados. Fomos acreditando na resolução e depois reparámos que estávamos a ser enganados.”
O que explica este adiamento de um desfecho que, de uma forma ou de outra, teria de ocorrer? Aqui, as opiniões dividem-se. O mais certo é que a Federação estivesse convencida de que não precisaria de alcançar um entendimento com os futebolistas. Afinal, uma vez chegados ao México, a convocatória estaria fechada e não restaria aos jogadores alternativa. Muito provavelmente, a estrutura federativa pouco confiaria também no espírito de união do grupo e na capacidade reivindicativa dos atletas. A experiência do Euro-84 indiciava que os jogadores estariam pouco unidos e que, chegados à selecção, continuaria a imperar a fidelidade clubística. Além do mais, entre o elenco federativo, em particular para o presidente Silva Resende, persistia um sentimento de alguma desconsideração face aos jogadores, que coexistia com uma cultura autoritária.
Na visão do presidente da Federação, os jogadores estavam ali para jogarem e representarem as cores nacionais e à Federação caberia decidir o que fosse mais adequado, em nome do superior interesse nacional. Doze anos passados do 25 de Abril, o futebol português ainda era dominado por uma cultura de antigo regime e não acompanhava o passo de modernização e democratização que o país vinha vivendo. Rui Águas é perentório: “Houve muitas reuniões, definiu-se uma série de coisas, só que depois eles marimbaram-se. A Federação fez tábua rasa daquilo que se tinha falado e combinado. Chegaram ao primeiro dia de concentração e disseram: está aqui, comes e calas. Foi esse come e cala que criou o movimento. Esta história toda teve o condão de unir o pessoal contra a Federação.” José Carlos Freitas, enviado do jornal “O Jogo”, no mesmo sentido, confirma quer o adiamento sucessivo de qualquer solução para os problemas que se arrastavam quer o preconceito da Federação em relação aos jogadores: “Os dirigentes entendiam que os jogadores não percebiam nada daquilo. Só tinham de jogar à bola e limitarem-se a receber o prémio que eles entendessem — isto quando já havia jogadores que tinham contactos e já sabiam o que se passava lá fora, com outras selecções. Tudo isto por uma questão de mentalidade, de preconceito de classe.”
Com realismo, Jaime Cortesão coloca o dedo na ferida: “Se tivéssemos passado aos oitavos de final, aos quartos ou às meias-finais, não teria havido o processo Saltillo. Mesmo que o comportamento, que foi assim-assim ou admissível, passasse a ser inadmissível, não haveria. Mais uma vez, o penálti falhado, a bola que não entrou e o resultado é que pontificou. O que foi, ao fim e ao cabo, uma maneira de branquear as responsabilidades da Federação.” Em França, dois anos antes, o clima mais adversativo não fora um problema, porque a selecção teve um desempenho positivo. No México, uma eliminação precoce deu um relevo a uma rebelião que, de outra forma, teria ficado esquecida, enquanto isentou os responsáveis federativos de responsabilidades. Gomes conclui: “O país foi a vítima e nós, jogadores, fomos o bode expiatório. Hoje dificilmente isso aconteceria.”
Tanto tempo passado, Jaime Pacheco não esconde a mágoa: “Poderíamos ter tido outra estabilidade que não tivemos, quer no Europeu quer no Mundial. Poderíamos talvez ter ido mais além e ter evitado aquele calvário que o futebol português passou nos anos seguintes. A pior coisa que me aconteceu foi ter sido castigado na seleção e termos saído de lá como vilões, como se tivéssemos cometido algum crime grave. Honestamente, tenho a consciência de que não fiz nada para ser castigado, nem para ficarmos com aquela fama de que contribuímos para que o nome de Portugal ficasse com uma carga negativa. Também tenho a noção e a certeza de que esses acontecimentos provocaram uma maior organização e acabaram por ser uma mais-valia para o futebol português. Tenho a certeza disso. Hoje, a Federação tem os resultados que tem porque se iniciou um novo ciclo depois de Saltillo.”
A lesão de Bento - Um momento emblemático na crise de Saltillo
O capitão da selecção, um dos principais artífices da boa campanha lusa no Europeu anterior em França e determinante no jogo da qualificação na Alemanha (Carlos Manuel, colega de equipa, recorda como “as bolas batiam nos postes e no Bento”), voltou a ser figura de proa no México. Porém, tal não se deveu somente ao seu contributo desportivo, que se limitou a um jogo: a vitória ante a Inglaterra. Poucos dias antes da segunda jornada da fase de grupos, em que Portugal defrontaria a Polónia, Bento sofreu uma lesão gravíssima que o afastou do Mundial e, como se sabe hoje, marcou o fim de uma era nas balizas nacionais.
A descrição do lance, por Vítor Serpa, no jornal “A Bola”, é impressionante: “Um cruzamento, José António a saltar, Bento a aparecer por trás, a tocar no companheiro, a desequilibrar-se, a cair mal. Os seus gritos ganharam eco nas bancadas. Os companheiros correm para ele e deitam as mãos à cabeça. Houve quem fugisse logo dali, queriam afastar a visão terrível. (...) É o próprio jogador que, apesar das dores, e ao ver o pé virado, de lado, numa posição aterradora, tem ainda a coragem de o levar ao sítio. Quando o doutor Camacho Vieira chega junto dele, apercebe-se de que a lesão é grave. Bento logo lhe diz: ‘Doutor, não mexa muito na perna, está partida’. (...) O estádio parece um túmulo. O silêncio pesa em todos.”
Rui Águas, que anos mais tarde, em Kiev, protagonizaria uma situação idêntica, lembra-se do impacto que o acidente do colega teve nele: “Até fiquei maldisposto, pedi para sair.” Monge da Silva também não se conseguiu esquecer: “Foi uma coisa incrível. Ouve-se o estalo, um barulho impressionante.” Diamantino conta que “quando o Bento caiu, o pé dele ficou virado ao contrário e, sentado no chão, meteu-o no sítio. Entretanto, vinham o doutor Camacho Vieira e o massagista a correr e, quando chegaram, já o Bento tinha o pé no sítio e começaram a brincar porque não o tinham visto virado ao contrário. Ainda estava quente e não tinha dor, fizeram aqueles testes tipo entorse e ele tinha os ligamentos todos marados. Aquilo que o Bento lhe chamou... Alguém disse no hospital que, se ele não tivesse logo aquele sangue frio de meter o pé no lugar, seria muito mais grave. O certo é que acabou na mesma com a carreira dele”.
Para Jaime Pacheco, Bento “foi o melhor guarda-redes da história de Portugal” e acredita que a ausência forçada do número 1 português “foi a nossa desgraça. Com ele teríamos tido outros resultados. Era a nossa trave-mestra, o nosso suporte a todos os níveis. Sentimos muito a lesão dele”. Diamantino reconhece que “a equipa ficou muito abalada, o Bento era um elemento-chave e tínhamos uma confiança enormíssima nas suas capacidades”. Fernando Gomes, na mesma toada, recorda que Bento “era uma figura querida da selecção. A equipa ficou afectada emocionalmente pela sua lesão”, enquanto Rui Águas, apesar de considerar que o episódio “não desmoralizou a equipa, foi traumatizante. Aconteceu mesmo ali ao pé de nós, na véspera de um jogo decisivo”.
A desorganização
Da presença portuguesa no México-86 acumulam-se histórias reveladoras da impreparação e inaptidão da Federação Portuguesa de Futebol para lidar, então, com as exigências inerentes à participação num mundial. O episódio da lesão de Bento, até porque o ídolo se transformara subitamente num dos símbolos da reivindicação, fornece algumas delas.
Por exemplo, Ribeiro Cristóvão, que na viagem para o México se encontrava em período de convalescença de uma fractura no pé, viu-se confrontado com um pedido inusitado do capitão da selecção: “Ó chefe, você já se viu livre das muletas…” De acordo com o jornalista, a comitiva portuguesa “não tinha muletas” e foi ele quem “desenrascou a situação”.
Outro exemplo está relacionado com o seguro que, alegadamente, protegeia os atletas em caso de ocorrência de um sinistro. Amândio de Carvalho, questionado em Saltillo acerca do assunto, assegurou que existia “um seguro especial para o Mundial, que protege os jogadores e prevê tudo”. Passadas três décadas, em entrevista conduzida para o livro “Deixem-nos Sonhar”, o antigo dirigente reafirmou a existência do tal seguro e mostrou-se surpreendido quando o seu amigo Eurico Garrido, director do serviço de cirurgia do Hospital do Barreiro entre 1985 e 2003 e amigo chegado de Bento, o desmentiu: “Isso é completamente falso. O Bento só conseguiu as apólices de seguro muito mais tarde. Fomos com o advogado do Bento à Secretaria do Benfica e não havia documentação comprovativa de quaisquer seguros dos jogadores do Benfica presentes no México. Não sei como é que fizeram os acordos, mas os jogadores julgavam que tinham 20 mil contos (100 mil euros) de seguro por incapacidade. (...) Ele só conseguiu o seguro ao fim de um ano por via judicial. Nunca lhe deram as apólices, nunca teve direito a nada. Teve de ser a junta médica realizada na sede da Federação, a pedido de Bento, a declarar sem equívocos que se tratava de uma lesão aguda, e não qualquer recidiva de uma lesão antiga. Passados meses vi as apólices onde diziam que os directores tinham 7,5 contos (37,5 euros) por dia por qualquer acidente e os jogadores tinham 5 contos (25 euros). Ficou com uma incapacidade de 9,6 contos (48 euros) por mês. Foi o que lhe foi atribuído. Foi extorquido e, se não fossem as muitas insistências, não levaria nem um tostão. A Companhia de Seguros enganou a Federação, mas foi a posteriori. Todos os factos sugerem que parte dos seguros foi efetuada depois de virem do México.”
A vida de jornalista
Curiosamente, foram poucos os jornalistas que assistiram à lesão do capitão português. Vítor Serpa recorda-se de “alguns jornalistas distraídos” e explica o que aconteceu: “A Selecção treinava tantas vezes em tantos sítios que obrigava a um esforço grande. O Zé Torres disse: ‘Vamos só ali um bocadinho para suar um bocado’ e houve jornalistas que não foram a esse treino. Logo por azar, o Bento parte a perna naquela circunstância, nem sequer a jogar à baliza. Há um jornalista da Renascença, o Ribeiro Cristóvão, que fez a reportagem imediata da situação da perna partida. Vai para o hospital, fala com os médicos. Eu estou lá com o Nuno Ferrari, também vamos, mas o Fernando Correia, por exemplo, tinha ficado em Saltillo. Estava na piscina a apanhar sol, havia um telefone, ele atende e era de Lisboa a perguntar quando é que ele enviava a peça do Bento. E ele nem sabia que o Bento tinha partido a perna. Isto porque tudo aquilo, a dada altura, mudava de um dia para o outro. O treino tanto podia ser ali ao pé como a 50 quilómetros.”
Outro dos esforços significativos a que os jornalistas estavam sujeitos tinha que ver com as comunicações. O México, a contas com uma profunda crise financeira agravada pela ocorrência de um terramoto devastador um ano antes, via-se acometido por inúmeras carências. Para os jornalistas, a diferença no fuso horário e as condições precárias em que trabalhavam desde Saltillo eram constrangimentos difíceis de ultrapassar. Os meios eram escassos e as comunicações telefónicas incomportáveis.
Entre as várias peripécias vividas pelos jornalistas ao longo do Mundial, David Borges recorda-se de um grupo de jornalistas andar em busca de um telex, até que, finalmente, encontraram um, numa repartição pública. Era necessário negociar o acesso e a utilização do telex, o que acabou por se revelar simples: a repartição tinha um director fanático por futebol e o telex podia ser utilizado. Em troca, os jornalistas tinham de levar o dirigente da administração pública mexicana a assistir a um treino da selecção. Assim foi: “Fomos com ele, no carro dele. E passados 15 minutos, vimos com espanto o gajo, dentro do campo, a atirar bolas ao Bento. O Bento na baliza e o fulano a rematar. Depois, levou-nos de volta e, no caminho, ia a conduzir com o braço de fora e a dizer: ‘Isto é que é vida’.”"
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