"Hoje tenho um desafio para si. Embarque no meu raciocínio. Leia como se estivesse dentro de cada palavra, de cada letra, de cada ideia e depois reflicta. Faça a sua análise. Combinado?
Como sabe, muito já se disse e escreveu sobre a dificuldade que é ser árbitro. E muito já se disse também que os árbitros erram porque são humanos, porque não têm tv, porque erro e acerto fazem parte, etc.
Na verdade, já se disse e escreveu tanto sobre isso que até chateia. São verdades sim, mas que de tão repetidas e repisadas, passaram a clichés. Para os consumidores externos de bola, quando o árbitro acerta, não fez mais do que devia. Quando erra, ou é incompetente ou é malandro. Esses sim. São chavões eternos, passados de geração em geração, que não chateiam e não irritam ninguém. Intrigante, esta nossa capacidade de repudiar umas coisas e abraçar outras como verdades absolutas.
Mas falemos de verdades então.
A verdade é que há árbitros que acertam mais do que outros. Que erram menos. Que são mais competentes que outros. Na sua área de formação, no sítio onde produz a actividade profissional, também não é assim, caro leitor? Ou acertam todos por igual? Ou são todos infalíveis, competentes e eficazes? Brilhantes? A verdade? A verdade é que há árbitros que são mais intolerantes, mais inflexíveis e mais disciplinadores do que outros. Depende sobretudo da educação, da formação enquanto pessoas e da personalidade. No trabalho, nas situações com que já lidou, também não é assim, caro leitor? Ou não há pessoas com formas de trabalhar diferentes? Com personalidades distintas? Põem ou não põem o cunho pessoal no que produzem?
A verdade? A verdade é que há árbitros que reconhecem um erro publicamente, enquanto outros optam por refugiar-se no silêncio. Onde trabalha, também reconhecem todos os erros que cometem, caro leitor? Publicamente? Ou só perante quem manda? Ou não os reconhecem porque os erros são ossos do ofício? Ou não erram e sai tudo sempre perfeitinho? A verdade? A verdade é que na arbitragem tomam-se decisões em segundos, com enorme visibilidade e mediatismo. Com escrutínio universal. Que todo o mundo vê e revê, na hora, com atenção e sentido crítico. E onde trabalha, também se passa o mesmo, caro leitor? Tem que tomar decisões em cada instante, com uma plateia global a avaliá-lo? É escrutinado em direto e ao vivo por todo o país? Sente essa pressão diariamente? Ou só o seu director lhe pede satisfações? Ou trabalha por conta própria e não responde a ninguém? Ficaria confortável se o que faz tivesse esta exposição?
A verdade? A verdade é que, antes de começarem a trabalhar, os árbitros já são ladrões, corruptos. Têm todos algum histórico que as memórias selectivas não perdoam. E consigo? Acontece o mesmo? É malandro e desonesto antes mesmo de começar a trabalhar? Corrupto? Incompetente antes de fazer o que mais ama? Aceitaria que lhe dissessem isso? Trabalharia sem pressão? Produziria com a mesma qualidade? A verdade? A verdade é que os árbitros recebem ameaças de morte, são difamados e injuriados, incomodados no quotidiano e têm que escolher com sensatez onde vão e o que fazem. É assim, na sua vida, caro leitor? Poupa a família a uma vida normal com receio que alguém os agrida, insulte? Priva-se de ser livre porque não sabe quando é que vai encontrar um doente que faça uma asneira? E se a sua vida fosse assim por causa do trabalho? Não seria um pouco corporativista? Mais reservado? Desistia ou ficava?
Fim de viagem. Outras virão.
Obrigado pela companhia.
«Antes de julgar a minha vida ou o meu caráter, calce os meus sapatos e percorra o caminho que eu percorri, viva as minhas tristezas, as minhas dúvidas e as minhas alegrias. Percorra os anos que eu percorri, tropece onde eu tropecei e levante-se como eu fiz. E aí poderá julgar (...).»
Clarice Lispector"
Duarte Gomes, in A Bola
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