"O que dizem os atletas que se doparam? As confissões são raras. Jérôme Chiotti (2001), um ciclista de montanha arrependido, relata no seu livro o seu primeiro teste de dopagem: «Senti um pouco de pânico, apesar de dois ou três companheiros me terem explicado que os corticosteroides eram indetetáveis e que eu não estava em perigo. Em breve fiquei aliviado. Não sendo ‘controlável’, não me considerei um fora-da-lei» (Chiotti, p. 37). Chiotti transgrediu, mas «não tinha consciência».
Acrescenta que foi responsável pelos seus atos, mas não se considerava culpado. Neste caso, como podemos imaginar um consumidor de corticoides que se apresenta num controlo antidopagem persuadido que ele não transgride as regras?
Da mesma forma, o ciclista Philippe Boyer, uma das testemunhas que se entregou a Bordenave e Simon (2000, p. 94)), relata: «Assim que a bicicleta foi pendurada no prego, as anfetaminas não me abandonaram. Pelo contrário. Entre 1992 e 1994, não passou uma semana sem que eu lhe tocasse. Por vezes, é ainda mais apertado. Dou a mim próprio uma consciência limpa. Acendo [uma expressão usada para tomar anfetaminas] e depois vou imediatamente dar uma volta de carro. Digo a mim próprio que estou no controlo, que não sou viciado. (...) Não tenho consciência de ser um toxicodependente».
Este segundo testemunho permite uma leitura mais abrangente em termos de interesse e de estratégia. Admitindo que a adição está ligada à capacidade de controlar o consumo, podemos considerar que Boyer participa de uma estratégia de reconquista do público. Confessava uma falta, sem querer aceitar as sanções correspondentes.
Vencedor de sete edições consecutivas do Tour de França, um recorde absoluto que lhe garantiu o estatuto de ícone desportivo, o ciclista Lance Armstrong perdeu em 2012 todos os títulos conquistados a partir de 1998. Foi uma decisão sem precedentes da Agência Anti-Doping dos Estados Unidos, que o considerou o líder do “plano de doping mais sofisticado, profissionalizado e bem-sucedido da história do desporto”. Armstrong não recorreu da decisão e manteve um discurso de inocência, mas acabou por confessar toda a verdade numa entrevista a Oprah Winfrey, em janeiro de 2013. Neste processo é de referir o especialista italiano, Michelle Ferrari, que respondeu em tribunal. Foi acusado de ter aconselhado e administrado substâncias dopantes a diversos atletas e de ter exercido, de forma ilegal, a profissão de farmacêutico. Considerava que o “EPO é tão inofensivo como o sumo de laranja” e, costumava dizer que «se eu fosse corredor e se soubesse que havia produto indetetável, utilizá-lo-ia» (Melo & Azevedo, 2004, p. 132).
David Chaussinand, lançador de martelos, admitiu também se ter dopado, depois de ter sido reconhecido positivo num controlo antidopagem. Refere: «O atletismo é um desporto extraordinário. Não é preciso generalizar com base no meu caso». Sancionado por três anos, continuou a defender a ideia de que o atletismo continua a ser um desporto à parte, isto é, um espaço social ideal, onde a justiça e a igualdade de oportunidades de cada um são respeitadas (Attali, 2004).
Trabal (2002) argumenta que as confissões de atletas arrependidos promovem a ideia que se pode consumir os produtos interditos, sem aceitar ser um desportista dopado. Richard Virenque, acusado de se ter dopado, ilustra perfeitamente esta tendência de desresponsabilização. O ex-ciclista da equipa Festina tentou fazer crer que ele foi dopado sem saber. Defendendo-se, coloca o atleta numa postura quase platoniana (Platão opunha frequentemente a alma e o corpo, dizendo que é preciso um esforço para se concretizar esse desprendimento). Não nos podemos esquecer, como refere Bourdieu (2001, p. 26)), que «Os ‘sujeitos’ são na realidade agentes actuantes e cognoscentes dotados de um sentido prático (…), sistema adquirido de preferências, de princípios de visão e de divisão (…), de estruturas cognitivas duradouras (…) e de esquemas de acção que orientam a percepção da situação e a resposta adaptada».
Estes testemunhos permitem também verificar que vão ao encontro do conceito de “desviantes” de Becker (1995). Na sua perspetiva, todos os grupos sociais instituem normas e esforçam-se para as aplicar, pelo menos em certos momentos e em determinadas circunstâncias. As normas sociais definem as situações e os modos de comportamento apropriadas a estas: algumas ações são prescritas (o que é “bem”) e outras são proibidas (o que é “mau”). Quando um indivíduo é suposto ter transgredido uma norma em vigor, ele pode ser percebido como um tipo particular de indivíduo, ao qual não se pode confiar para viver segundo as normas acordadas pelo grupo. Este indivíduo é considerado como “estrangeiro” ao grupo (outsider). Mas um indivíduo que é etiquetado como estrangeiro pode ver as coisas de forma diferente. Ele pode não aceitar as normas, segundo o qual é julgado ou que ele nega àqueles que o julgam sem competência ou legitimidade para o fazer. O transgressor pode estimar que os juízos são estrangeiros ao seu universo. É o que refere Trabal (2002) quando os atletas se dopam não reconhecem serem transgressores, pois faz parte do seu universo ou, como diria Bourdieu (2001), das disposições sociais (ou dos habitus[1]). De facto, “se existe uma verdade, a verdade é um objecto de lutas”, lutas essas “que têm por objecto a imposição dos princípios legítimos de visão e de divisão do mundo natural e do mundo social” (Bourdieu, 2001, p. 61).
A Comissão Independente da Reforma do Ciclismo (CIRC), criada em janeiro de 2014, pela União Ciclista Internacional (UCI), lançou um apelo a possíveis testemunhas sobre a dopagem na modalidade entre 1998 e 2013. Garantindo a confidencialidade, o objetivo não era punir as pessoas culpadas de infrações, mas procurar tirar ensinamentos sobre o passado, por forma a assegurar um futuro promissor para o ciclismo.
E em Portugal? O que fazemos neste sentido?"
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