"O pai dava-lhe tostões para ele ficar calado, mas a paixão por cantar era mais forte para o menino raquítico a quem os mais velhos chamavam de elástico quando ia à baliza. Fez toda a vida profissional como guarda-redes, começando no Barreiro, onde foi visto por Bento que o levou para o Benfica a pedido de Eriksson, mas foi em Guimarães que acabou por estabelecer raízes, primeiro através da vontade de Pimenta Machado. Embaixador do Vitória, Adelino Augusto da Graça Barbosa Barros, mais conhecido por Neno, viveu o sonho de cantar com o seu ídolo Julio Iglesias e, aos 58 anos, ainda faz actuações sempre que o futebol deixa
Nasceu em Cabo Verde, na Cidade Velha. Mas não ficou lá muito tempo.
Eu fui para a Praia com quatro, cinco anos, porque os meus pais mudaram-se para lá. O meu pai era professor. A minha mãe doméstica.
Tem quantos irmãos?
Somos sete irmãos, sou o mais novo. Duas raparigas, o resto tudo rapazes.
É verdade que o seu pai não o deixava jogar à bola?
Sim, não deixava. Naquele tempo o futebol não era visto com bons olhos. Na altura, só os malandros é que jogavam à bola e por isso o meu pai foi sempre contra. Posso dizer que o meu pai nunca viu um jogo meu.
De onde vem a paixão pelo futebol?
Na minha vida tudo acontece naturalmente. Eu jogava na escola e, como era o mais pequenino e o mais novo, não me deixavam jogar à frente, diziam-me para ir para a baliza. Então comecei a jogar à baliza, mas era muito rápido, até começaram a chamar-me "elástico". Mesmo em casa, como era o mais novo e pequeno, os meus irmãos é que jogavam à frente. Principalmente os gémeos que vêm logo antes de mim; nós andávamos sempre os três juntos.
O seu pai não descobria que jogavam à bola?
O meu pai impôs isto: quando fomos para a Praia, fomos viver para uma casa que tinha um quintal e nós só podíamos jogar no quintal. Primeiro era assim. Como o meu pai trabalhava muito, quem tinha o controlo da situação era a nossa mãe. Nós dávamos sempre conhecimento à nossa mãe onde íamos jogar e ela só dizia: "Então vai, mas tens de estar em casa antes do teu pai chegar". E ficou assim. Na escola eu dizia-lhe que tinham de falar com a minha mãe. Eles iam ter com ela: "Deixe o Neno ir jogar à bola connosco, nós precisamos dele". A minha mãe dizia sempre o mesmo: “Vai mas às tantas horas tens de estar cá”.
Qual era o seu sonho de menino?
Eu gostava muito de cantar. Jogar à bola era uma coisa de que gostava muito, mas eu gostava mais de cantar. Agora, eu era um bom atleta porque eu era muito rápido, fazia muita coisa, mas gostava mesmo era de cantar. Roberto Carlos na altura, o Julio Iglesias não tinha aparecido ainda.
O seu pai não se importava que cantasse?
O meu pai nunca foi a favor. Nem da música nem do futebol. Lembro-me até que, quando eu cantava lá em casa, o meu pai dava-me dinheiro para eu me calar [risos]. Chegou a pagar-me tostões para eu ficar calado porque ele queria trabalhar descansado em casa.
Gostava da escola, era bom aluno?
Tinha de ser um bom aluno porque o meu pai, como professor que era, tinha acesso directo aos professores todos. Aliás, praticamente todos os professores de Cabo Verde tinham sido discípulos do meu pai. O presidente e primeiro-ministro de Cabo Verde foram alunos do meu pai. O meu pai era bastante conhecido, portanto eu tinha de certa forma de ser um bom aluno, porque para o meu pai a coisa mais importante era a escola. Primeiro que tudo nós tínhamos de estudar.
Vem para Portugal depois do 25 de Abril?
Sim, logo a seguir. O meu pai tinha uma conduta meio salazarista. Os meus tios maternos tinham sido presos porque conheciam os lideres africanos todos e andavam sempre com eles, estiveram presos no Tarrafal. Lembro-me de ouvir essas conversas. Já o meu pai não, era um homem muito mais de direita, salazarista a 100%. Então, quando se dá o 25 de Abril - e quando ele acha que as coisas vão mudar muito, principalmente em Cabo Verde -, ele quis trazer-nos para Portugal para nos dar uma educação melhor do que aquela que teríamos em Cabo Verde. Embora a minha casa em Cabo Verde era tão grande que até servia de escola. Vou contar uma historia.
Força.
Isto já tem uns 20 anos. Estava de estágio com o Benfica no Hotel Tivoli Sintra, dois seguranças foram ao meu quarto chamar-me: "Neno, está aqui uma pessoa que te quer conhecer". Eu pensava que era por causa de ser do Benfica. Quando ele chegou, pediu-me para ver as mãos e fiquei a pensar que era por ser guarda-redes. E às tantas o senhor diz: "Eu devia dar-te umas palmadas porque o teu pai bateu-me tanto com a palmatória que eu, com medo de apanhar dele, comecei a ir para escola. Quando eu faltava à escola e o teu pai me apanhava, dava-me com cada porrada que eu ficava louco. Eu tive de ir para escola por causa dele. E hoje sou primeiro-ministro. Mas se não fosse o teu pai, hoje ou estava morto, era um bandido ou estava preso". Em Cabo Verde se alguém falar em Augusto Barbosa Barros às pessoas da minha geração ou da anterior, toda a gente sabe quem é: é o meu pai. E se você algum dia for à Cidade Velha, na igreja está lá enterrado o meu avô paterno e um padre, que eram as pessoas beneméritas na Cidade Velha. Pouco antes do 25 de Abril o meu pai esteve aqui na Universidade de Coimbra para falar a professores e doutores da Universidade. O meu pai era aquela pessoa que, quando o primeiro ministro tomava posse, ele discursava. Era uma pessoa importante e muito bem vista em Cabo Verde na altura.
É verdade que teve ou tem um meio irmão?
Esse meio irmão chama-se José Veiga. É uma história engraçada. Perto da Cidade Velha havia uma outra povoação, se não me engano chamava-se São Jorge. E o meu pai era o doutor dos professores daquela zona toda, andava de escola em escola para ver como é que as coisas estavam a funcionar, o que faltava, etc. Porque combatia muito o analfabetismo naquela altura em Cabo Verde. Ele numa das idas a uma das escolas encontrou um miúdo inteligente, acima da média, mas os pais não tinham condições e ele teve receio que o miúdo se perdesse. Então foi falar com os pais do miúdo e propôs-lhes levar o miúdo para a Praia, para estudar e ficar na nossa casa, dizendo que um belo dia ele regressaria para os ajudar. Os pais do Veiga deixaram. Ele levou-o lá para casa, por isso ele é meio irmão nosso, e depois mandou-o para Portugal para estudar quando o miúdo atingiu uma certa idade. A verdade é que depois do 25 de Abril houve aquelas confusões todas das nacionalizações, privatizações, em que as pessoas tomavam as terras umas às outras, e foi ele, o Veiga, que ajudou a que tudo aquilo que era do meu pai não caísse nas mãos de outras pessoas. Porquê? Porque ele quando voltou a Cabo Verde, passado uns tempos, estava dentro do governo e então ajudou-nos a não perder muitas das propriedades que o meu pai tinha. Ele teve essa gratidão para com o meu pai.
Quando vem viver para Portugal porque vão para o Barreiro?
Segundo o que o meu pai contou na altura, ele queria ir para Santarém, mas ficava muito longe de Lisboa. O Barreiro era o dormitório de Lisboa e ele queria estar perto do centro grande. Fomos naturalmente para o Barreiro porque era meia hora de barco, a malta nem andava muito de carro.
Foi um choque?
De certa forma foi, porque eu vinha da Praia, nunca tinha visto um comboio sem ser em fotografias. Mas o pior foi o frio. O primeiro inverno que passei aqui foi terrível. Quando viemos não se podia trazer muito dinheiro nem muita coisa, era tudo muito limitado, também porque havia muitos retornados de Angola, Moçambique, enfim... Então, por tudo isso, não podíamos trazer muitos bens e lembro-me que eu e os meus irmãos passámos um frio terrível. Quem vem de África, chega aqui e apanha com aquele tempo… Saía à rua e as mãos ficavam congeladas [risos]. Nunca mais vou esquecer esse primeiro inverno. Mas eu sou um homem sociável e amigos fiz logo que cheguei, ainda por cima criança... Havia lá uma rua no Barreiro, a Miguel Pais, onde os miúdos da zona se encontravam todos para jogar à bola. Tivemos sorte porque quando foram alcatroar a rua os carros não podiam passar, então fizemos um campo de futebol no parque de estacionamento que havia lá ao lado e que estava vazio. Passávamos os dias todos a jogar à bola.
Como surge o Barreirense no meio disso?
Eu era dos mais pequenos lá da rua, mas jogava pelos mais velhos, à baliza. Houve um belo dia em que o sr. Mariano ao passar viu o jogo, gostou de mim e no final veio falar comigo. "Eu gostaria que fosses treinar comigo aqui ao Barreirense. Tu como guarda-redes tens umas condições formidáveis". Passados três dias levou-me lá. Eu tinha uns 13 anos e quando entrei só via gajos muito grandes. Eu era muito raquítico. E pensei: “Então eu vou jogar com estes gajos? Não.” Na rua eu tinha a cobertura dos meus irmãos e dos meus amigos, ali não, não conhecia ninguém e era só gente grande, porque o Barreirense não tinha iniciados só juvenis, os outros tinham 15 anos. Quando o senhor entrou lá dentro para ir falar com um dos directores, eu fui embora para casa [risos]. O que fez ele? No dia a seguir foi a minha casa.
Qual a reacção do seu pai?
Quando lhe abri a porta disse logo que não queria ir porque os outros eram muito grandes. Ele perguntou se podia falar com o meu pai, deixei-o entrar e ele disse ao meu pai: "Já sei que o Neno não quer ir para o Barreirense porque são todos mais velhos, mas eu posso levá-lo para um outro clube, que é o Santoantoniense, e fica a 10km daqui onde vai encontrar miúdos da idade dele”. O meu pai chamou-me: "Aqui o sr. Mariano está a pedir para ires jogar à bola, mas há só uma questão que vou deixar já esclarecida... não deixar a escola e ao primeiro chumbo acaba o futebol". Dito e feito. Comecei a treinar três vezes por semana, ao final do dia. No primeiro ano nem joguei muito, porque havia lá um miúdo muito mais velho do que eu e que tinha muito mais estampa; era alto, ao contrário de mim. Apesar de eu ser muito mais ágil do que ele, ele metia muito mais medo do que eu na baliza [risos]. No ano a seguir ele passou para juvenil, então o titular tinha que ser eu. Essa época correu muito bem, fomos campeões e o Barreirense já quis ir buscar-me na altura. Chegaram a ir falar com o meu pai.
E ele?
"Deixem lá o Neno estar quieto onde está, não faltou à escola, passou de ano. E se ele vem para aqui, começa já a pensar coisas malucas, por isso deixem lá o miúdo estar quieto. Quando chegar a altura, podem lá ir buscá-lo, mas agora ele não sai.” Então faço dois anos de iniciado e depois passo a juvenil. Fui titular, fomos campeões também distritais, fui à selecção. É quando conheço o Oceano. E o Barreirense foi-me lá buscar.
Torcia por algum clube?
Gostava do Benfica porque eu admirava muito o Bento. Mas também gostava do Damas. Tinha uma certa queda pelo Sporting por causa do Damas, mas era benfiquista por causa do Bento e do Eusébio. E depois toda a gente em Cabo Verde é benfiquista, até hoje. Como estava contar, o sr. Mariano chega-se ao pé de mim e diz: "Neno aqui já não tens mais nada a aprender, não estás aqui a fazer nada, já foste campeão duas vezes o que tinhas a aprender aqui já aprendeste. Vamos para o Barreirense que tem uma equipa muito melhor, vais dar muito nas vistas e podes ir à primeira equipa". Fui atrás dele. Aquilo que ele me dizia eu seguia.
Tinha quantos anos quando chega ao Barreirense?
Tinha 15 anos. Fui titular, fiz uma época muito boa, fomos aos nacionais. Na altura, o Benfica, o Sporting, o Vitória de Setúbal eram equipas com mais nome e tinham muito mais condições. Eu nem sequer jogava com luvas. Entretanto, subi a júnior e o Barreirense estava na I divisão de juniores, a época correu bem e subi para sénior, tinha 17/18 anos. Acontece que o Barreirense nesse ano tinha descido para a III Divisão. Foi uma catástrofe para aquela gente do Barreiro, que era maioritariamente benfiquista e do Barreirense. Adoravam o clube. E quando o clube cai para a III, os juniores ficaram na expectativa. Porque antigamente um jogador dos juniores para jogar com os seniores era muito complicado, não é como hoje. Era preciso ser muito bom para conseguir subir, até porque os mais velhos faziam-lhes a folha, eram mais maduros e malandros. Hoje não existe essa malandragem. E quando falo em malandros, era malandros de rua mesmo. E quando subi para os seniores, o chefe do departamento de futebol, que é hoje director desportivo, quando me vai apresentar ao treinador, falou de mim de uma maneira que não gostei e que me marcou muito.
Como assim?
O treinador é que tinha levado os dois guarda-redes, que tinham 27 e 29 anos, para lá. Eu era o miúdo dos juniores e o chefe de departamento virou-se e disse: "Este aqui é o Neno, é o nosso guarda redes dos juniores, um bom guarda-redes, mas vai estar aqui só para tapar buracos, para fazer número, praticamente, porque você tem os outros dois". Aquilo marcou-me, não me caiu bem. Eu perguntei a mim mesmo: "Ouve lá, mas ele está-me a apresentar como o 3.º por alma de quem? E porquê tapa buracos? Eu não estou aqui para tapar buracos. Ele não me pode apresentar desta forma". A partir daí comecei a trabalhar no duro.
O que acontece depois?
Nos primeiros jogos da pré-época nunca me levava: eu ficava sempre em casa e os outros é que iam aos jogos todos. E um belo dia, o nosso melhor jogador que era o António Jorge, quando acabamos de treinar, ficamos a falar, e ele vira-se e diz: "Então o treinador não leva o melhor guarda redes que o Barreirense tem? O melhor é este miúdo aqui e não vai porquê?" O campeonato estava quase a começar. Até que houve um jogo entre Barreirrense e a CUF, o grande rival, e no Barreiro a CUF ganhou por 5-0 ou algo parecido. Eu não fui também. Os dois guarda-redes estavam a sofrer muitos golos e no último jogo da pré-época o treinador leva-me. Ele pôs um, as coisas não correram bem. Pôs o outro, e as coisas não estavam a correr bem. Entretanto, os sócios do Barreirense também já perguntavam porque é que ele não punha o miúdo, que era eu, a jogar pelo menos um jogo. Depois de as coisas estarem a correr mal para os outros dois ele deve ter pensado: "Vou pôr o miúdo para ver se estes gajos se calam um bocadinho". A equipa estava mesmo de rastos. A verdade é que eu entrei e fiz um jogo extraordinário, até penaltis defendi. E na semana seguinte começava o campeonato.
E passou a jogar?
A dúvida para ele pôs-se, naturalmente. Sem eu esperar, pôs-me no primeiro jogo e acabei por fazer os 30 jogos todos da época. A época correu-me bastante bem. Tanto que o Benfica já queria que eu fosse para lá. Porque o Barreirense era um viveiro para o Benfica. Eu fui o ultimo desse viveiro da zona sul. E o sr. Mariano quando ouve que o Benfica está interessado em mim, vem falar com o meu pai. O meu pai: "Não, não, não. O Neno não vai jogar à bola, nem pensar nisso. O Neno tem de acabar a escola, ele não vai sair daqui para o Benfica". Quando o Benfica vem falar comigo, ele diz que o meu pai não quer e que era melhor deixarem-me ali mais uns tempos. Subo para II divisão com o Barreirense e fico lá mais três anos. Eu assino o meu primeiro contrato com o Benfica com 22 anos.
Mas quando começa a ganhar dinheiro com o futebol ainda é no Barreirense.
Sim, eu ganhava 5 contos na altura.
O que fazia ao dinheiro?
Comprava roupa. Estava na casa dos meus pais, portanto, comprava roupa.
Nessa altura já namorava?
Não, nunca fui muito namoradeiro. Estava focado no futebol. E na altura dizia-se muito que as meninas estragavam as carreiras dos jogadores, que era preciso ter cuidado. Aliás, vieram a público histórias do Chalana com a Anabela...Tudo isso fez com que quem jogasse à bola criasse um certo afastamento das mulheres.
E quando é que começa finalmente a jogar com luvas?
Quem me dá as primeiras luvas é o Bento. O Bento de vez em quando ia ver-me jogar, porque falaram-lhe de mim. Era o meu ídolo e quando eu sabia que ele estava lá, eu tinha de caprichar [risos]. Um belo dia, alguém me disse: "O Bento quer falar contigo". Ele aparece em minha casa. "O Eriksson quer-te ver".
Tremeram-lhe as pernas?
Não, tranquilo. As coisas quando acontecem para mim são naturais. A primeira vez que subi a um palco também foi natural. Eu adoro aquilo que faço. Faço com muito amor e grande entrega. O sucesso nunca me subiu à cabeça, até hoje. Mas estava a dizer, o Bento fala com o meu pai também, diz que o Benfica está interessado em mim. Diz que vou lá fazer uns treinos e se agradar, muito bem. Eu na altura ainda estudava. O meu pai concordou e o Bento diz que eu só ia lá treinar quando ele me ligasse na véspera e que não podia dizer a ninguém. "Ninguém pode saber que tu estás no Benfica a treinar”. Tanto que o Benfica treinava nos campos 2 e 3, raramente treinavam no estádio da Luz, mas quando eu aparecia para treinar era dentro do estádio e ninguém tinha acesso. As pessoas nunca me viram a treinar no Benfica nessa altura, porque eu só treinava quando era mesmo dentro do estádio da Luz. Uma vez por semana lá ia eu com o Bento.
Mas continuava a jogar no Barreirense.
Sim, ia ao Benfica uma vez por semana e o Barreirense tinha conhecimento. Até que o presidente Fernando Martins me chama um dia ao hotel Altis. Quando entro no Altis foi mágico, não tenho palavras para exprimir o que eu senti quando entrei ali, só pensava: "Agora sim, vou ser jogador" [risos]. Ele fala comigo e eu lembro-me de lhe dizer que se assinasse pelo Benfica não ia jogar, seria o Bento, porque ele é que era o titular da equipa, da Selecção, ninguém o ia sacar da baliza para jogar. Ainda me lembro da resposta dele: "Neno, mais vale ser suplente do Benfica do que ser titular em qualquer parte do mundo, pá" [risos]. Eu tentava explicar-lhe que não tinha experiência da I divisão, tinha de jogar e no Benfica era complicado.
Negociou o ordenado?
No Barreirense ganhava já 25 contos e ele virou-se para mim e disse: "Vais ganhar 100 contos". Mas eu nunca dei muita importância ao dinheiro, aquilo para mim eram números. Eu digo: "Ok". Os jornais começaram a dizer que eu ia para o Benfica. O Barreirense estava a passar por uma fase muito má, não havia dinheiro, então o presidente queria vender-me, mas ele também queria ir embora e queria levar o dinheiro com ele [risos]. E eu no meio da historia. No final dos jogos, os sócios atiravam o cartão lá para dentro e diziam: "O miúdo não pode sair daqui". Era muita confusão por minha causa e eu ficava constrangido, porque sempre fui discreto. Às tantas, o que é que os directores do Barreirense fizeram? Foram ter com o sr. Mariano para ele falar comigo, para me convencer a ficar. Lembro que tinha mais um ano de contrato com o Barreirense. O Barreirense na altura pagava-me 25 contos e o Benfica davam 100. E o Mariano diz-me: "Eu acho que é melhor ficares aqui. O Benfica vem-te buscar mais tarde ou mais cedo. Ou então tens o Sporting, o FC Porto, todos". Aliás, eu até estou a mentir, porque o primeiro clube que mostrou interesse até foi o Sporting, não foi o Benfica.
Conte lá isso.
O Sporting fala comigo, mas quem mostra interesse é o Bento. Voltando atrás. Um dia aparece-me um senhor aqui que pega em mim para ir ver um jogo Sporting-Benfica e disse que, quando o jogo acabasse, eu ia falar com o presidente do Sporting. Tudo bem. Fui com esse senhor ver o jogo - isto ainda foi antes de eu treinar no Benfica. Lembro-me que o Benfica perdeu 1-0 nesse jogo, foi o ano em que o Benfica foi campeão só com uma derrota e foi nesse jogo que perderam com o Sporting. O senhor disse para eu ir ter à porta 10A, deixou-me e foi lá para dentro falar com o presidente do Sporting para depois me ir buscar à porta 10A. Eu estou na porta 10A muito bem e quem é que me aparece à porta? Manuel Galrinho Bento [risos]. Ai Nossa Senhora, quando vejo o Bento a sair pela porta 10A, eu já o conhecia, com medo que ele me visse, meti-me no meio das pessoas e fui para casa. E foi na semana a seguir que o Bento veio ter comigo.
O Sporting não voltou à carga?
Quando o Bento falou comigo, o meu sonho realmente era o Benfica, o senhor do Sporting ainda foi ao Barreiro umas duas vezes, mas eu já tinha falado com o Bento e o Bento era o meu ídolo.
Neno em cima e Oceano em baixo, na selecção regional de Setúbal de sub-15
Voltando à historia do Barrreirense e do Sr.Mariano que o queria convencer a ficar...
Ele perguntou o que eu queria, mas eu disse-lhe que já tinha um compromisso com o presidente Fernando Martins e não queria voltar atrás. E ele vira-se: "Ó Neno, não foi o Fernando Martins que te levou para o Santoantoniense nem que te trouxe para o Barreirense, fui eu pá. Tens de obedecer mais mim do que ao Fernando Martins. Vais ficar aqui, porque ele depois vem-te aqui buscar. Vais assinar mais um ano com o Barreirense e vamos dar-te 60 contos e um carro e ficas aqui bem". Aquilo magoou-me, devo confessar, mas acabei por dizer: "Está bem, faça lá como você quiser então". E assinei com o Barreirense mais um ano, mas o carro nunca o vi [risos]. O presidente do Barreirense ficou chateado, aquilo foi imposição dos directores, porque o presidente queria vender-me e sacar o dinheiro dele. Entretanto, passado uns dias vem no jornal que tinha assinado mais um ano com o Barreirense.
E o Benfica?
Pois. O Fernando Martins chama-me e diz: "Você guarda-redes são todos loucos, pá. O Bento também é louco, vocês são todos louco, pá. Mas já assinaste, está feito. Vamos lá a ver. Vais obrigar-nos a fazer aqui outras despesas". Então é assim. Eu ia para o Benfica, o Benfica além de dinheiro ia dar mais cinco jogadores ao Barreirense. O problema é que o presidente do Barreirense não queria jogadores, queria era o dinheiro que ele tinha enterrado lá, queria levar o dinheiro dele [risos]. Uma grande confusão, mas o problema acabou por ser resolvido, eu fui para o Benfica, fui ganhar os 100 contos.
Quando chega ao Benfica como foi o primeiro impacto?
O Eriksson já lá não estava porque de um momento para o outro assinou pelo Roma. E quem estava? O Ivic. E o Benfica tinha quatro guarda redes: Bento, Delgado, Silvino e Neno. Claro, o mais novo e inexperiente era eu. E disse ao presidente: "Ó presidente você tem estes guarda-redes todos, eu não estou aqui a fazer nada". "Neno, o treinador é que vai dizer quem fica e quem é que sai". A verdade é que o Ivic disse: "Eu quero o Neno como 2.º guarda-redes". O campeonato começa, mas o Ivic, julgo que por causa de um problema de dinheiro, porque ele assinou em dólares e depois pagavam-lhe em escudos, uma coisa assim, foi-se embora. E entra o maluco do Csernai, que aparece do nada e não queria saber nada desta porcaria, aliás, toda a gente no Benfica estava contra o Csernai, ele teve lá grandes problemas. Porque era louco. Lembro-me de uma vez em que fomos jogar a Bragança: nós chegámos, o campo era pelado e ele não viu um minuto do jogo, passou o jogo todo a olhar para o chão [risos]. Então, quando ele entra, e me apercebo que é louco, fui falar mais uma vez com o presidente.
Para dizer o quê?
Para sair, para ser emprestado. Ele disse-me outra vez para esperar, mas eu comecei a fazer força para sair. Ao Csernai também não interessava quem era o 1.º, o 2.º ou o 3.º guarda-redes. Então, o presidente chamou-me e disse-me que tinha um clube para mim: o Vitória de Guimarães.
Qual foi a sua reacção?
Espectáculo. Vamos embora.
Era a primeira vez que ia sair de casa dos pais?
Era a experiência que eu precisava para cortar um pouco o cordão umbilical.
Como é que foi essa adaptação?
Fantástica, porque Guimarães é uma cidade que sabe receber. Quando cheguei, senti-me logo em casa. Até hoje. Naquela altura o jogador da bola era visto como um príncipe, porque rei já temos o D. Afonso Henriques [risos]. Quando cheguei pensei: "Esta cidade ama o seu clube, ama os seus jogadores como ninguém". Em casa sempre me desenrasquei. A única coisa que não sei fazer bem é cozinhar, o resto sei fazer tudo. E não sou bom cozinheiro, porque acho que um bom cozinheiro tem de ser um gajo muito bom à mesa e eu sou muito mau.
O que é que isso quer dizer?
Eu gosto é de doces. Não gosto muito de salgados. Gosto é de leite condensado, tudo o que é doce.
Quando chega o treinador era o Goethals.
Sim, o belga. Eu chego à sexta jornada, salvo erro. O Manuel Machado depois explicou-me porque é que joguei logo muito. Porque era muito mais alto do que o Jesus, o guarda-redes titular do Vitória, que era muito pequenino, e era muito mais rápido do que ele também. E o belga queria que jogássemos muito em contra ataque. Foi essencialmente isso que fez com que eu jogasse, porque o Jesus era muito mais experiente. Fiquei dois jogos no banco e depois comecei a jogar e a época correu-me muito bem. Fiz um ano maravilhoso. Quando acaba a época, o Benfica manda-me regressar.
Queria regressar?
Eu não pensei muito na altura. Eu tinha contrato com o Benfica e se me disseram "tens de voltar", eu tenho de voltar. Na segunda vez é que não queria voltar. Mas da primeira, eu tinha de voltar. Eu tinha contrato, o homem cumpriu a parte dele ao emprestar-me no primeiro ano.
Quando regressa a Lisboa, volta a viver em casa dos pais?
Sim. Mas aí já começo a pensar em comprar casa.
E regressa com outro moral ao Benfica ou não?
Com outro moral, mas o titular era o Bento ainda. Tirar o Bento era complicado. Volto e está lá o John Mortimore. E tinha coisas que eu não gostava.
O quê?
O Carlos Manuel, principalmente o senhor Carlos Manuel, que é um gajo muito gozão, sabia que sou um homem de riso muito fácil, que se ri por tudo e por nada, e punha-se ao pé de mim a dizer parvoíces. Eles eram todos ídolos para mim e quando tens um ídolo ao teu lado a fazer grandes porcarias, tu ris-te por tudo e por nada. E eu ria, ria, ria.
Que género de coisas é que ele fazia?
O Carlos vinha para junto de mim e punha-se a gritar para o outro lado do campo onde estava o John Mortimore: "Ó João vai para puta que te pariu" [risos]. Eu era só gargalhadas. O homem estava a montar os exercícios que íamos fazer a seguir, parava, olhava para nós, e vinha lá do outro lado. Ele sabia que era o Carlos que estava a fazer aquela merda toda, mas ele vinha ter comigo: "Neno quer ir fora? Quer ir fora?". Era o mais fraco. Ele ia-se embora e o Carlos continuava: "Ó João, vai mas é para a puta que te pariu" [risos].
Faziam-lhe partidas?
Faziam. Eu não dizia nada, era um miudinho, eles eram mais velhos. Bento, José Luis, Oliveira, Nunes, Jorge Silva, Diamantino, éramos cinco ou seis pessoas do Barreiro. Tenho outra história. Nós vínhamos do Barreiro para Lisboa na carrinha do Bento. Só que o Bento tinha de acordar cedo para ir entregar o peixe para vender e depois vinha-nos buscar. A carrinha vinha com um cheiro a peixe lá dentro [risos]. Agora, quem é que dizia ao Bento que aquilo cheirava a peixe? A malta ficava a olhar uns para os outros [risos]. E contavam muitas histórias. Eu só ouvia. Como o cheiro a peixe era demais, começámos a combinar que cada um trazia o carro um dia por semana [risos]. O engraçado é que quando era o Bento que trazia a carrinha, ele era sempre o primeiro a estar pronto. Nós ainda estávamos a tomar banho e o Bento já estava à nossa espera; quando éramos nós a levar o carro ele era o último [risos]. O Carlos Manuel na altura tinha um Porsche e éramos nós na carrinha e o Carlos passa por nós no Porsche e a gozar connosco.
São campeões nesse ano.
Sim, mas eu faço dois jogos apenas, porque era o Bento que jogava sempre.
Ele ensinava-o? Corrigia-o nos treinos?
Não. Naquela altura não havia muito isso. Uma ou outra coisa é normal que me tivesse dito, mas não havia aquela intenção de ensinar ao outro, ao miúdo. Hoje ensina-se. Mas naquele tempo havia aquela mentalidade: "Não, não vou ensinar o gajo porque de hoje para amanhã o gajo joga e eu estou no banco". Naquele tempo não era fácil. A verdade é que ele depois passou a ser meu treinador. E tive o Eusébio também como treinador de guarda redes.
Como é que ele vos treinava?
Com ele sabíamos as manhas do ponta de lança. Ele gostava muito de chutar à baliza e ia-nos ensinando as manhas. Ele dizia: "Ouve lá ó miúdo, eu vou pôr a bola a bater naquele sítio ali". Ele atirava e nós já lá estávamos, era bola ao ângulo, nós tínhamos de sair antes para a agarrar. Ele dizia: "Tu saíste antes. Se te voltas a mexer eu vou atirar para outro lado. Eu vou atirar para lá, mas se tu te mexeres antes eu atiro para outro lado". Então tu eras obrigado a ficar até à última. E ele metia a bola mesmo no ângulo, não tinhas hipótese. Onde ele dizia que a bola batia, ela batia lá, é que não tinhas hipótese. O homem nasceu com esse dom, assim como o Messi. O Cristiano também nasceu, mas o Cristiano trabalhou e trabalha muito esse dom. Agora ao Messi, você pode dizer "Messi vai para casa e vem ao domingo jogar", que ele vem e faz um grande jogo. O Cristiano, não; o Cristiano tem de treinar, porque para chegar onde chegou foi através do treino. O Messi não, o Messi não precisa de treinar. Então, nós apanhávamos a manha do ponta de lança com o Eusébio. Dizíamos se um gajo defende um remate de Eusébio aqui em Portugal defende de todos [risos]. Treinávamos bem, embora ele não tivesse muito bem a noção do treino em si, mas nós aquecíamos entre nós, só as mãos, e depois era remates à baliza.
A segunda época no Benfica foi idêntica à primeira. Faz poucos jogos.
Sim, mas aí já estou mais ou menos garantido como suplente de Bento. Já estou com mais estatuto.
Então porque vai para o Vitória de Setúbal?
Eu era muito amigo do Paulo Oliveira, filho do presidente do Vitória de Setúbal. E um dia fui jantar à casa dele, ele vivia com os pais ainda, e o pai gostava muito de mim e no jantar disse: "Eu gostava de te ver no Setúbal. Eu gosto muito de ti, tu és um guarda-redes formidável. Eu vou ter aqui também um grande guarda-redes, o Meszaros". O Meszaros tinha sido campeão pelo Sporting com o Allison e é o Allison que o leva para Setúbal, assim como ao Roger Spry. E eu disse-lhe. "Está bem. Vou falar com o meu presidente e vou para Setúbal".
Estava na disposição de trocar o Benfica pelo Vitória assim tão facilmente?
Eu trocava. Na altura, eu era deixa andar, vamos embora. Em qualquer lado joga-se futebol, quero é jogar. E fui para lá. Lembro-me até que o Benfica não me queria deixar ir. Aquilo foi uma imposição minha, porque eu disse: "Aqui não jogo, quem vai jogar é o Bento. Não quero ficar aqui." Tinha notoriedade por ser jogador do Benfica, mas não jogava e eu queria jogar. Só tinha um ano ainda de I divisão.
Foi viver para Setúbal?
Não, continuei a viver no Barreiro mas numa casa já minha.
Como foi essa época em Setúbal?
Apanho lá um grande guarda-redes, a nível mundial era o 6.º ou 7.º, muito bom. Uma experiência atroz. Um indivíduo calculista, detalhista, fantástico, esse sim já me ensinou. Ele dizia: "Neno, alguém isolado contigo não faz golos, agora, tens de ter cuidado um pouco nessas saídas".
Nessa época em Setúbal também tem o Manuel Fernandes como treinador.
Sim, é quando o Manuel Fernandes deixa de ser jogador e passa a treinador. Lembro-me que apanhei lá o Eurico e o Jordão também. O Jordão tinha deixado de jogar à bola no Sporting e o Manuel Fernandes foi a casa dele convencê-lo a voltar a jogar pelo Setúbal. Apanho esses três grandes nomes no Setúbal. Entretanto, a época está quase a acabar e o Setúbal queria que eu ficasse por lá, mas recebi um telefonema do Dr. Pimenta Machado, presidente do V. Guimarães e eu tinha uma adoração por aquele homem, ele era fantástico, comigo portou-se lindamente. Ele disse que gostava que eu fosse para lá outra vez e disse-lhe que não havia problema, que falasse com os homens do Benfica que eu nem me apresentava no Benfica, apresentava-me directamente me Guimarães. E assim foi.
De regresso a Guimarães, quem está a treinar o Vitória?
É o Geninho, um treinador muito conceituado no Brasil, ganhámos a Supertaça com ele. Ele depois foi despedido na parte final e quem assumiu o comando foi um jogador chamado Nené. A época correu-me muito bem, fiz todos os jogos, e tive um papel preponderante na conquista da Supertaça, porque tivemos dois jogos com o FCP que tinha sido campeão europeu. Ganhámos em Guimarães 2-0, fiz um jogo extraordinário, e depois empatámos nas Antas 0-0, em que até um penálti defendi. Na época seguinte veio o Paulo Autuori.
E que tal?
Um treinador amado por todos os jogadores. Ele tinha feito uma época brilhante no Nacional da Madeira, tanto que traz alguns jogadores com ele. No primeiro ano do Paulo Autuori, na 1.ª volta estamos em 2.º lugar, a um ponto do FC Porto, e fomos jogar às Antas, empatámos 0-0. Estávamos convencidos que se o Vitória tivesse ido buscar alguns reforços lá para a frente, tínhamos conseguido discutir o campeonato taco a taco com o FCP até final. Mas tivemos azar com uma serie de lesões. Primeiro, com o próprio Autuori, que foi operado a uma perna; depois, o Rene também foi operado, depois eu e o Bené.
Foi operado a quê?
Ligamento cruzado posterior. Estive dois meses de fora e a equipa oscilou bastante porque saíram três jogadores essenciais. O René Weber, o central Bené e era eu. As três pedras basilares do Vitória. A equipa caiu muito. Mas a começar a 2.ª volta nós já sabíamos que íamos à Europa. Os pontos que nós já tínhamos davam para ir à Europa.
Depois o Benfica já não o deixa ir para mais lado nenhum.
Pois. Aí eu lembro-me que o Pimenta me chamou ao escritório e disse: "Neno, diz ao Benfica que queres ficar aqui". E eu comecei por ligar ao presidente do Benfica para dizer que queria ficar aqui em Guimarães, ele começou a dizer-me que não. Na altura quem estava jogar era o Silvino, que também era titular da selecção. Mas eu com o Silvino era taco a taco, não tinha problemas com ele. O presidente disse-me que quem me queria era o Eriksson, que me tinha levado para o Benfica. Aí não fiz mais nada, liguei directamente ao Eriksson.
E?
E ele disse-me naquele italiano dele: "Ma Neno hoje em Portugal os dois melhores guarda-redes és tu e o Silvino. Eu não te posso dizer que vais ser titular, mas vais partir de um bom principio, porque são os dois melhores guarda-redes nacionais, por isso é que eu te quero aqui no Benfica". Então, sim senhor, o ser titular agora só depende de mim, desafios desses eu gosto, vamos embora.
Nessa altura não deixou nenhum coração partido em Guimarães?
Eu sempre fui uma pessoa muito discreta.
Ainda não tinha conhecido a sua mulher nessa altura?
Foi mais ou menos nessa altura: conheci a Simone em 1989, um ano antes.
O que é que ela fazia profissionalmente?
Trabalhava numa loja. Casei-me aqui em Guimarães, em 1990.
Volta casado para Lisboa então. E começa a jogar.
Na primeira época, acho que o Silvino foi mais vezes titular do que eu. Faço alguns jogos para o campeonato e faço muitos jogos para a Taça. No Benfica havia um ano em que eu era titular e o Silvino era o suplente, no ano a seguir o Silvino era o titular e eu era o suplente. Agora, o que se passava era que quando alguém jogava mal, saía da baliza. Então nem eu nem o Silvino tivemos estabilidade para sermos titulares, porque sabíamos que à mínima falha saíamos da equipa e isso foi muito prejudicial para ambos.
Mas isso só com o Eriksson ou também com o Toni?
Com o Toni e com praticamente todos os treinadores que treinaram o Benfica. Lembro-me que o Silvino acabou por sair do Benfica; nós fomos campeões em 1993-94 e eu fui titular. E depois chegam o Michele Preud'homme e o Artur Jorge.
Como foi lidar com o Artur Jorge?
Não era uma figura muito amada pelos benfiquistas, porque ele praticamente destroçou aquela equipa campeã. Não era muito próximo dos jogadores, nós na altura estávamos sintonizados com aquele treinador que te abraçava, que falava contigo, dialogava contigo - o Artur Jorge não tinha esse diálogo com ninguém. O Toni estava no meio de nós, íamos almoçar, o Toni fazia tudo connosco. O Artur Jorge já não, estava muito na dele. Os adjuntos é que falavam muito connosco, o Filipovic e o Neca, agora ele não. Tinha essa postura um pouco austera, muito senhor de si, só falava com a gente para o jogo e depois não falava mais. Enfim, tinha uma forma muito diferente de estar e nós não estávamos habituados a isso.
Foi duas vezes campeão pelo Benfica. Qual o título que o marca mais?
Todos os títulos são marcantes, porque nós de certa forma tínhamos sempre o FC Porto à perna, em todas as situações. Houve uma altura que tivemos o Sporting, no tal jogo em que ganhámos 6-3 em Alvalade. Mas o FC Porto é que era o clube a abater, até porque nós, jogando com o FC Porto, é que éramos sempre prejudicados em todos os sentidos.
Estava naquele jogo nas Antas em que tiveram de se equipar no corredor?
Estava. Ganhamos 2-0, equipámo-nos no meio do corredor, nem fomos para os balneários. Essa época foi muito estranha, foi uma época muito estranha mesmo. A equipa do Benfica era muito boa. Lembro-me que empatámos aqui com o Barcelona 0-0 e fomos jogar com o Barcelona, que nesse ano foi campeão da Taça UEFA. Lá, estando a perder 2-1, no último minuto do jogo, há um jogador qualquer do Barcelona que põe a mão à bola dentro da área, era penálti, empatávamos 2-2 e passávamos logo à fase seguinte e o árbitro não marcou, porque era o Barcelona todo poderoso na altura. Nós é que passávamos à fase seguinte e não o Barcelona que acabou por ganhar a Taça UEFA nesse ano.
Quando é chamado pela primeira vez à Selecção A?
A primeira vez estava no Vitória de Guimarães. Foi em 89, fui chamado mas na altura quem jogou foi o Silvino. Eu estou no Vitória e o Silvino está no Benfica. Os clubes grandes tinham um peso muito grande na Selecção, não é como hoje. Hoje, com a globalização, praticamente todos jogam fora; na altura quem jogava no Benfica, no Sporting ou no FC Porto tinha mais notoriedade, tinha mais probabilidade de jogar a titular. Na Selecção apanhei o Silvino e depois o Vítor Baía, quando o Silvino sai. Eu fazia quase sempre parte do núcleo. Agora, o que foi marcante pela negativa foi isto: fizemos nove jogos de preparação para o Euro 96, em oito deles fui suplente do Vítor Baía e uma vez titular, e quando saíram os convocados para o Europeu, o António Oliveira deixou-me de fora e levou o Alfredo, que tinha sido meu suplente num jogo da Selecção.
Porque é que ele fez isso, alguma vez explicou?
Ele posteriormente pediu-me desculpas mas a verdade é que não me levou. Eu acredito que tenha sido pelo Alfredo ser do Boavista e estar no Porto junto dele. Ele depois veio pedir-me desculpas, porque quem tinha que ter ido era eu. Obviamente que não gostei, acho que foi um handicap na minha carreira que não valia a pena, porque não foi correcto e vir-me pedir desculpas demonstra que a pessoa não foi correta nem sensata na posição que tomou.
Voltando ao campeonato e aos clubes, volta a Guimarães, como e porquê?
Então é assim: quando somos campeões e quando entra o Artur Jorge, vem o Michel Preud’homme. O Artur Jorge começa por dispensar alguns jogadores mais influentes do Benfica, como o Isaías, o Vítor Paneira, o William, os gajos que tinham uma certa preponderância na estrutura do Benfica dentro do campo. O Michel foi o melhor guarda-redes que eu conheci na minha vida. Michel Preud'homme e Bento, não há mais ninguém. Michel Preud'homme a nível mundial e Bento a nível nacional. E fui falar com o Artur Jorge quando o Benfica me mandou a carta para ficar lá mais três anos. Perguntei-lhe: "Olhe lá mister, aqui no Benfica nós fazemos sempre assim. O Michele Preud'homme realmente é o melhor, vai jogar para o campeonato, mas eu quero jogar para a Taça", porque era assim nos anos que passei por lá. E o Artur Jorge disse-me: "Não Neno, aqui só vai jogar o Michel, só joga aquele que estiver bem”. "Então, mister eu não acho isso correto porque se fico para marcar passo não estou aqui a fazer nada”. "O Michel só sai quando estiver aleijado". Atenção que não estou a pôr em causa o valor do Michel. Ele era titular por mérito próprio, ele veio como melhor do mundo e provou que era o melhor do mundo.
O que acontece depois consigo e com o Artur Jorge?
Ele quer que eu fique, eu não quero e aparece o Sporting outra vez.
Através de quem?
Na altura o presidente era o Santana Lopes. Mas atenção eu já era para ir para o Sporting no tempo em que houve aquela confusão do Pacheco, do Paulo Sousa. Eu também estava incluído nesse pacote, mas não tive coragem. Não conseguia, não conseguia, tinha um compromisso com o Benfica e não podia desrespeitar esse compromisso.
Mas foi aliciado também nessa altura?
Fui, sim, já estava tudo acertado mesmo. Não cheguei a falar com o Sousa Cintra, falei com o Queiroz.
Não vai para o Sporting novamente porquê? Por causa do Artur Jorge?
O Benfica não me queria deixar sair. O Benfica quis que eu assinasse um documento em como não podia ir nem para o Sporting nem para o Porto.
E assinou?
Eu afirmei categoricamente que não assinava esse documento. Não sou uma mercadoria, sou uma pessoa, eu penso e eu é que tenho que resolver a minha vida, não são vocês que têm de dizer para onde é que eu tenho de ir. Só que o Benfica tarda em libertar-me e com a carta estava preso.
Então ainda faz a pré-época com o Benfica?
Não, não apareço lá. Lembro-me que treinava sozinho, fiz essa pré-época sozinho no Barreiro. Até que o Pimenta Machado me liga: "Neno, o Vitória está interessado em ti. Quero que venhas cá para cima”. "Ó doutor, atenção que eu estou em conversações com o Sporting. Mas claro, alguma coisa eu vou para o Vitória." Então o Pimenta faz uma jogada de mestre.
Então?
O Sporting estava interessado em dois ou três jogadores do Vitória. O Pedro Martins e o Pedro Barbosa. Então quando ele vem falar com o presidente do Sporting, que era o Santana Lopes, disse-lhe: "Olhe meu amigo, você quer esses jogadores, eu dou-lhe, mas você não toca no Neno, porque eu quero que ele venha para o Vitória." E acabo por ir para Guimarães.
Quando chega quem é que lá está com treinador?
É o Vítor Oliveira. Fantástico pá, fantástico. Até começámos bem, mas depois as coisas começaram a correr menos bem e vem o Jaime Pacheco. Fantástico também. O Jaime tinha uma coisa muito boa, ele tirava rentabilidade aos jogadores. Tudo aquilo que os jogadores tinham para dar, o Jaime tirava. Então um jogador do Jaime quando acaba a época está completamente de rastos. Ele era muito exigente e dava grandes porradas aos jogadores justamente por isso. Ele dizia que se conseguíssemos aguentar no treino, no jogo era mais fácil.
Depois do Jaime vem o Quinito…
Ó pá, o Quinito é um mestre. As preleções do Quinito antes dos jogos eram autêntica história de conhecimento, uma coisa fabulosa... Muita filosofia, mas era uma filosofia encantadora que as pessoas gostavam de ouvir. O Quinito tinha essa essência, era um futebol mágico, lírico, percebe? A malta gostava muito disso, porque aprendia. Por exemplo lembro-me de uma vez ele ter convocado 17 jogadores, antigamente eram 16, mas ele convocou 17, foi para o balneário com as camisolas debaixo do braço e quando lá chegou pôs 16 camisolas em cima da mesa e disse-nos: "Olhem o último a apanhar é o que fica de fora". Houve um gajo que foi o mais rápido a apanhar, foi logo o primeiro e ele: "Olha, és justamente tu que ficas de fora" [risos]. Recordo-me de outra história.
Força.
Nos jogos com o Porto, que na altura tinha o Jardel, tínhamos um defesa central brasileiro, o Alexandre, e o Quinito conhecia-o muito bem e esse Alexandre... Bom para tu teres o gajo vivo, motivado e atento a tudo, tu tinhas de falar com ele todos o dias. Tinhas que ser carinhoso para o jogador poder render ao fim de semana. Então, o Quinito abraçava-o e dizia-lhe: "Alexandre, o Jardel - e abria o bolsos das calças - já está aqui, está aqui dentro. Olha se ele pedir para beber, tu também vais lá, abres só a boca. Pões o olho no Jardel e abre a boca só. O Jardel corre para o lado contrário, vai atrás dele. Algum gajo que adiante a bola e tu podes cortar a bola, Alexandre deixa a bola, cuida-me só do Jardel. E quando o treinador o tirar, tu fica atento, porque eu não te vou tirar, não te tiro Alexandre, tu é que me dizes assim: ‘mister, o Jardel já não está a jogar, e então eu tiro-te e tu podes sair quando tu quiseres’. O teu jogo é o Jardel, eu não quero saber de mais ninguém aqui dentro, só quero saber do Jardel". Bom, o gajo marcava o Jardel com uma pinta, que em quase todos os jogos que ele fazia contra ele, não marcava golos. Azar do caraças: o Pimenta Machado manda o Quinito embora e vai buscar o Jaime Pacheco. O Jaime quando chega aqui não conhece o Alexandre, não sabe como é que ele era, não tinha noção e quem é que nós tínhamos logo nessa semana? FC Porto, nas Antas, e ninguém fala com o Alexandre [risos]. E mais azar ainda por cima. Antigamente não havia essa história de director de imprensa e um gajo ter que perguntar se pode falar ou não pode falar. Um jornalista pegava no telefone e ele falava. Então alguém falou com o Alexandre que dá uma entrevista e sai no dia do jogo: "Jardel estou esperando por ele no ar" [risos]. O Jardel fazia muitos golos de cabeça. Fomos jogar às Antas, perdemos 3-0, o Jardel marca dois golos com os pés [risos]. Foi a semana toda com o pessoal a gozar com o Alexandre: “É, fica lá no ar à espera do Jardel, fica, fica” [risos].
E para si, enquanto guarda-redes, o Jardel era tramado?
Era tramado porque ele tinha um instinto goleador, matador mesmo. Parecia que estava sempre no sítio certo, na hora certa e ao teu mínimo deslize, para quem é que a bola ia? Jardel [risos]. Era uma coisa impressionante. Ele tinha instinto e é esse instinto que falta agora aos grandes pontas de lança. O Bibota [Fernando Gomes] também tinha esse instinto de goleador. Lembro-me que sofri um golo aqui em Guimarães com o Bibota em que ele chuta a bola, a bola vai na minha direcção, mas ele conforme chuta, não pára. Ele chutou e continuou, chovia muito em Guimarães e o relvado era uma vergonha na altura, a bola parou e eu estou a meio da viagem porque saí da baliza para a apanhar, só que a bola pára mais perto dele do que de mim. Se ele tivesse chutado e ficado quieto, eu tinha saído da baliza e apanhado a bola, mas não: o Gomes chuta a bola, corre atrás dela... parecia que estava a adivinhar aquilo. A bola parou e o Gomes como não tinha parado, apanha a bola, isola-se, finta-me e faz o golo. É instinto goleador mesmo.
Ele foi o ponta de lança mais difícil que apanhou ou houve alguém que para si tivesse sido a dor de cabeça maior?
Todos os pontas de lança davam muito trabalho e eram complicados. Havia alguns que não marcavam muitos golos mas davam muito trabalho. Havia remates que a gente agarrava e mesmo assim os gajos vinham confirmar, está a perceber? E isto é perigoso, porque bastava que largasses a bola para que ele na recarga fizesse golo. Eu muitas das vezes dizia aos meus defesas: “Vocês acompanhem-me este gajo, daqui a bocado se eu largo uma bola, este gajo vem e se vocês não acompanham, ele faz golo”
Falava muito com a sua defesa durante os jogos ou não?
Falava, falava bastante, estava sempre a falar: “Olha aqui este, olha o outro lado, olha o não sei quê, olha o não sei que mais”. Às vezes até era muito irritante [risos], mas eu precisava disso, isso mantinha-me vivo. O futebol dava-me gozo, dava-me prazer, não podia estar muito concentrado, tinha que estar vivo no jogo, era só o que eu queria.
Na última época em Guimarães, já pressentia que estava quase a arrumar as luvas?
Não. Eu aleije-me. Num treino fiquei agarrado às redes com os dentes. Aqui no Vitória quem fazia as balizas na altura eram os presidiários e eles faziam as balizas sem profundidade, em que a rede ficava colada ao poste. Defendo uma bola, caio para dentro da baliza e os meus dentes ficam agarrados à rede. E desloquei o maxilar, fui operado nessa mesma noite e estive de fora um mês e meio, dois meses. Entretanto, o Pedro Espinha começa a jogar, faz uma época brilhante, e eu claro, volto para suplente dele. Mas eu tinha um problema: em todos os campos onde o Vitória ia jogar, quando eu ia para o banco, a bancada toda levanta-se e começava a bater-me palmas. Mas estes gajos estão a bater palmas por alma de quem?! Eh pá eu nem vou jogar, nem posso dar o meu contributo, estou aqui no banco. Está bem, é o reconhecimento daquilo que já fiz, mas gosto de receber palmas quando jogo, agora quando não jogo... isto parece um reconhecimento mas eu ainda estou no activo, pá. Então aquilo martirizava-me um pouco a cabeça. Sentia-me muito mal no banco e no ano a seguir, o Pimenta chama-me e diz: "Ó Neno, estou a precisar de alguém que fique aqui comigo, que faça a direcção da equipa técnica. Quero alguém que faça esse transporte das situações que acontecem no departamento de futebol para a direcção. Não tenho ninguém e tu és o homem ideal para isso”. "Mas ó doutor, eu queria jogar mais um ou dois anos ainda”. E aparece-me o Marítimo com umas condições muito boas. O meu único problema era semana sim, semana não, andar de avião para a Madeira, era complicado. E o Pimenta foi inteligente. Fala comigo num dia, mas passados dois dias manda-me chamar e começa-me a pressionar: "Neno, ficas cá, fazes esse cargo de director desportivo e ficas como terceiro guarda-redes também, podes treinar com eles, podes ir a onde quiseres com eles...”.
Então em 1998/99, está como director e como terceiro guarda-redes?
Sim.
Até essa altura já tinha pensado no futuro ou era coisa que não o preocupava?
Não, quem joga à bola não pensa no futuro, está tão focado no presente que não pensa muito no futuro. São poucos os que pensam, porque, repare bem, quando jogas à bola não podes estar a pensar muito naquilo que há de ser, tens que pensar naquilo que está a ser.
Mantém-se director desportivo durante quando tempo?
Até o Pimenta sair. O único director desportivo que o Pimenta teve fui eu. Quando o Pimenta Machado sai, entra o Vítor Magalhães, ainda continuo um pouco como director desportivo. No ano a seguir, passo a secretário técnico. As funções eram praticamente as mesmas, mas só que tinha que reportar ao director desportivo, uma pessoa que estava acima de nós.
Foi mais complicado para si?
Não, eu fazia as mesmas funções. Não tinha tanta responsabilidade. Depois, passo a relações públicas e depois passo a treinador de guarda-redes. Isso é quando o Nilson vem para cá. O Nilson quando chega a Guimarães, sou eu quem o começa a treinar. Só saio dessa função creio que com o presidente Julio Mendes. Aí passo a secretário técnico outra vez.
Ser treinador de guarda-redes era uma coisa de que gostava?
Gostei muito. Eu faço tudo com muito amor, foco-me no que tenho para fazer.
Tem uma filha, a Juliana. O que ela faz?
Ela vive em Londres. Faz papéis como actriz. Tudo o que é palco, ela gosta de estar lá. Faz muitas vezes de figurante, até num filme do Tom Cruise já entrou, como figurante. Tudo que o que é interpretação ela está lá.
Isso ligar-nos à sua outra faceta de que ainda não falámos, a de cantor. Como é que nasce a paixão pelo Julio Iglesias? Quem é que o apresenta e porque é que se identifica tanto com ele?
Não sei dizer o porquê. Eu dizia ao próprio Julio: "Ó Julio, tu em 1962 tiveste um acidente e dedicaste-te à música. Se tivesses ficado no futebol, quem era o Julio Iglesias hoje era eu" [risos]. Ele teve um acidente e dedicou-se à música e em 1962 nasci eu. Portanto, estava destinado a mim. Mas pronto ele foi mais inteligente [risos]. Gostava dele pela forma como ele cantava. Pela voz e pelas músicas românticas que cantava. Gostava muito do Roberto Carlos também, mas o Julio entra muito mais, a forma como ele canta, a forma como se veste, enfim há várias coisas que fui vendo, principalmente a voz dele.
Achava que a sua voz é parecida com a dele do que com a do Roberto Carlos?
Era mais parecida com a dele, e as minhas qualidades davam mais para ele do que para o Roberto Carlos. Até mesmo a nível de figura.
Mas como nascem as actuações em palco?
Como já disse, eu era um palhaço no balneário e há um belo dia que me convidam para cantar no 90.º aniversário do Benfica. Eu acho que foi no 90.º aniversário do Benfica. Fui lá cantar e quando fui cantar, música de quem? Do Julio. E nessa gala do Benfica estava lá o Tozé Brito. Viu-me a cantar: “Porra pá, este gajo tem jeito para cantar estas merdas”. Chamou-me lá no dia a seguir e disse-me: "Olha lá uma coisa, porque é que nós não fazemos uma colectânea de músicas, eu também faço umas músicas e fazemos aqui um CD, um disco, mesmo que se cantem algumas do Julio....". "Ó pá, algumas do Julio tem que ser, não há hipótese". É aí que começa tudo, porque eu no balneário cantava Julio, cantava Roberto, imitava o Michael Jackson. Os gajos no balneário estavam sempre a pedir para eu imitar [risos]. O treino era às dez horas, às oito já tínhamos de estar lá dentro e então tínhamos duas horas de espectáculo do Neno dentro do balneário [risos].
E grava o disco.
A partir dessa altura começo a gravar com o Ramón Galarza, o filho do Shegundo Galarza, e começo a aprender alguns truques, algumas manhas, a pôr melhor a voz, a entrar melhor nas músicas. Isto em 94, 95 mais ou menos. Tanto que o CD sai em 96, já eu estava em Guimarães e tinha que ir a Lisboa para gravar com ele.
Quando é que conhece o Julio Iglesias?
A primeira vez que eu estive com o Julio estava no Benfica ainda, porque um indivíduo chamado João Afonso, da CBS, numa conversa com o Julio disse : "Tu sabes que há aqui um indivíduo que é guarda-redes do Benfica, e é o Eusébio até que o treina - o Julio conhece o Benfica e conhece o Eusébio - Eh pá, ele é louco por ti, em todas as entrevistas que ele dá só fala de ti”. "A sério, quem é esse?". E o Julio vinha actuar ao Estádio do Bessa, só que eu estava no Benfica e o concerto era à noite. Então o que é que eu fiz? Mandei o meu irmão trazer-me o carro para cima, acabou o treino, pego no avião e venho aqui para cima ver o concerto do Julio. E no concerto, esse senhor, o João Afonso, viu-me e foi falar com o Julio. "Está aí o tal indivíduo que só fala de ti, em Portugal é conhecido por Julio Iglesias”. "Então mas traz o gajo aqui". Quando chego aos bastidores, aquilo estava cheio de mulheres, pá, porra. Eu disse-lhe: “Eh pá tenho de ir embora para baixo, não vou estar aqui muito tempo não”. E estou lá no meio daquela gente toda, envergonhado, lá atrás e aparece-me o Julio à porta. "El portero, el portero Neno? Dónde está el portero Neno?” [risos]. Eu estava lá ao fundo. Eh pá "portero" sou eu pá, vamos embora [risos].
Estava nervoso?
Sim, ali era capaz de estar um pouco nervoso. Eu a passar no meio daquela gente toda. Bom, o gajo depois lá no camarim deu-me um fato, deu-me sapatos, porra, o homem tratou-me lindamente.
Fato esse que tem história com a sua mulher, não tem? Conte-nos lá.
Pois é, disse-lhe: "Tu não tocas nesse fato, senão vai haver problemas aqui em casa". É um fato que eu guardo religiosamente porque é um fato que o Julio me deu. É um fato que já tem mais de 30 anos, mas que eu visto de vez em quando. Mas tenho uma história ainda mais engraçada com o Julio.
Conte.
Estou de férias no Brasil, no Rio de Janeiro e o João Afonso, da CBS, liga-me: "Ó Neno, tu sabes quem é que vem a Portugal? O Julio vai cá estar no dia 23”. "Estás a brincar comigo? Mas eu só tenho viagem lá para o dia 5 ou 6. Espera aí”. Virei-me para a minha mulher e disse-lhe: "Vou desmarcar as minhas férias, tu ficas aqui, mas eu vou para Portugal, para ver o Julio” [risos]. Dia 22 apanhei o avião e cheguei a Portugal de manhãzinha cedo. A viagem era feita à noite ainda nessa altura. Estou com as malas para sair do aeroporto, olho para o lado e no Correio da Manhã: "Vou cantar com o Neno". Eu a passar com o carrinho das malas, vi aquilo, voltei atrás - parece aqueles filmes que um gajo passa e volta a olhar para a capa do jornal - e lá estava: "Vou cantar com o Neno esta noite". Este gajo é um palhaço - eu já conhecia o Julio, está a perceber - este gajo é um palhaço, agora vai cantar comigo, pôrra, e comprei dois ou três jornais e comecei a ler "Vou cantar com o Neno hoje à noite". O que é isto pá!? Liguei para o João Afonso: "Ó João Afonso, é pá, então o Julio diz que vai cantar comigo?". "Ó pá Neno, já sabes como é que é o Julio, é meio doidinho, mas deixa estar que já te ligo e já te digo alguma coisa". Ele depois liga-me: "Neno, o Julio quer que estejas aqui às cinco e tal para vocês ensaiarem”. Ensaiar com o Julio? Na hora estou lá.
Como correu?
Ajeitei-me todo, lembro-me de convidar o miúdo, o Paulo Oliveira, que é o filho do presidente do Setúbal, ele veio ao espectáculo, e o Pimenta Machado também. Foram as duas pessoas que eu convidei para a primeira fila. Quando cheguei os músicos estavam a jogar à bola, porque foi no estádio da Maia. Sentei-me lá longe. Às tantas, num momento, ele olha para mim e pára: "Neno há quanto tempo estás aí? Vem arriba, vem arriba. Tu vais cantar comigo. Que músicas sabes?”. “Eh pá Julio de ti sei tudo de frente para trás e de trás para a frente. Canto o que quiseres contigo”. "Não, não pode ser, nem eu sei as minhas músicas todas, como é que tu dizes que as sabes cantar!?”. "Ó Julio qualquer música que tu queiras, vou ali e canto para ti”. E ele diz: "Vamos cantar La Paloma”. E lá fui eu. Nunca mais me esqueço, ele tinha um director artístico chamado Ramon Arcusa, já morreu. Chego lá, "El portero" como quem diz, atenção é guarda-redes, não sabe cantar, vê lá tu como é que vais lidar com ele. Ele começa a cantar :"Una canción me recuerda aquel ayer...". Eu tinha um micro na mão, quando ele acaba uma parte da música, diz-me, agora és tu Neno e eu começo a cantar. Sabe o que é que ele fez?
Não.
Parou, tira o meu micro, dá-me o micro dele, que é um microfone especial, porque tem uma sonoridade especial, o Julio canta e a voz ainda se prolonga, parece um eco. Ele dá-me o micro dele, desce do palco, vai ficar ao pé das meninas e põe-se a olhar para mim e eu canto a música toda. Deixou-me a cantar sozinho e foi-se embora. Ele pensava que eu não sabia cantar ou que teria dificuldade em cantar com ele. Comecei a cantar e depois comecei a imitá-lo, a pôr a mão na barriga, aquilo que ele faz, ele começa-se a rir [risos]. Depois claro, à noite, ele chamou-me, eu tenho até essa gravação em audio, e começa assim: "Esta noite tenho uma prenda para vos dar, a Portugal. Essa mistura, essa mescla de raças que os portugueses fizeram no mundo todo deu neste homem que é como um filho para mim. Hoje vou chamá-lo aqui para ele cantar connosco. Eu sei que ele gosta de mim e eu também gosto dele de verdade. Neno vem cá”. Entro e cantámos os dois. Eh pá, que coisa, foi fantástico. Foi uma noite memorável. Eu encontro pessoas na rua que ainda me falam disso. Cantámos essa música, eu e ele, e depois ele chama o António Sala e cantámos os três uma música que nem ensaiámos, aquele música "Coimbra é uma lição, de sonho e tradição..." Foi magnífico, magnifico. Quando acabámos o espectáculo, deu-me o fato dele também e pronto, aquilo foi uma noite mágica.
Voltou a cantar com ele?
Não. Agora quando ele vem cá, são as pessoas que pedem para eu cantar com ele [risos]. O Julio não costuma cantar com muita gente. Ele não gosta muito, o espectáculo é dele, não gosta que as pessoas se metam no espectáculo dele.
Porque é que não seguiu a música quando deixou de jogar?
Eu dou grandes espectáculos aqui no norte. Não vou ao sul, é mais a norte, mas a maior parte dos espectáculos que dou é para ajudar as pessoas. Tenho um espectáculo que dou todos os anos aqui em Penafiel com 7 mil pessoas. Faço a primeira parte dos The Gift, do Matias Damásio, do Quatro. Agora é assim, o futebol toma-me a minha vida toda. Aos fins de semana é justamente quando eu estou ocupado.
Continua no Vitória?
Sou embaixador do Vitória de Guimarães. Em todos os jogos do Vitória tenho de estar presente. Mesmo com essa pandemia, fomos agora jogar ao Algarve contra o Portimonense, eu estava lá também. E todos os dias estou com os jogadores, tenho de estar sempre ao pé deles.
Hoje olhando para trás, trocava a sua vida de guarda-redes pela de cantor?
Não, não posso ser tão maldoso para trocar de vida. Eu acho que a vida foi muito generosa para comigo, não posso trocar nada, tudo aquilo que ela me deu foi na altura certa e estar a dizer que trocava, nada disso. Fui muito feliz como jogador e sou feliz como cantor também, cada um no seu tempo. O carinho que as pessoas têm por mim é uma coisa que vem do futebol, a música aparece depois como hóbi, mas não posso dizer que trocava ou que fazia alguma coisa de forma diferente. Tudo aquilo que fiz, voltava a fazer da mesma forma. Sou e fui um homem feliz. Mas como estava a dizer, os meus espectáculos são mais de solidariedade e participo em montes de programas de solidariedade porque toda a gente me convida. Vou todos os anos cantar aos hospitais. Nas prisões também vou lá cantar. Qualquer ação solidária que existe quem é a primeira pessoa a ser convidada? É o Neno, porque o Neno nunca vai dizer que não. Só vou dizer que não se o Vitória jogar, mas mesmo que haja um jogo e dê para vir, venho mesmo que fique para o fim. Quando há espectáculos aqui sou sempre o último a cantar. Só o facto da energia que trazes para as pessoas, elas ficam aqui à tua espera.
Onde é que ganhou mais dinheiro?
No Benfica.
Onde é que investiu o seu dinheiro, foi em imobiliário ou alguma vez se meteu em negócios?
Nunca me meti em negócios, porque sou um mau negociante [risos], os meus amigos se fossem lá comprar coisas e se aquilo valesse 100, passava para 10 e e ficava a perder dinheiro, não valia a pena. Investi em algum imobiliário. Mas os meus contratos eram feitos na hora e na altura não se ganhava muito dinheiro. Ganhei algum, mas não se ganhava como se ganha hoje.
Qual foi a maior amizade que fez no futebol?
Foi com todos eles. Faça-me a pergunta ao contrário, qual foi o inimigo que eu tive, a pessoa com quem me dei menos bem. Também não conheço. É difícil destacar um pela positiva e é difícil destacar um pela negativa também. A verdade é que todos esses gajos que jogaram comigo lembram-se de mim, de alguma coisa que fiz, da amizade que tinha por eles, principalmente respeito e algum conselho que lhe tivesse dado, durante os tempos todos em que andei no futebol.
A maior alegria e a maior frustração no futebol?
Alegria: ser campeão e ter pertencido à selecção nacional e ter ganho a Supertaça para o Vitória, que foi o primeiro troféu que este clube ganhou. A frustração: talvez não ter ido ao Euro na altura, mas também não tem muita importância porque não guardo rancor, não gosto de guardar mágoas.
Acredita em Deus?
Acredito. Não na forma como toda a gente fala, mas acredito à minha maneira. Tenho muitos amigos padres, sou capaz de ir à igreja, mas dizer que saio de casa para ir a uma igreja ver uma missa, não; fiz isso muitas vezes quando era criança, que o meu pai me obrigava a ir.
E superstições tem ou teve?
Tinha na altura em que jogava. Era entrar sempre com o pé direito. Lembro-me do Bento me ter dado um saco que ele utilizava nos jogos. Ele passou para mim e eu comecei a usar também. Claro que ele tinha algumas coisas dele e eu pus algumas coisas minhas lá dentro também.
Pode revelar o que tinha o saco?
Ele nunca revelou, não gostaria de ser eu a revelar um segredo que era dele. Aliás, confesso-lhe, nunca vi aquilo que estava lá dentro. Agora, o que eu punha lá dentro até posso dizer. Era uma santinha que a minha mãe me tinha dado e uma fotografia da minha filha.
Tatuagem tem alguma?
Não, não tenho tatuagens. Gosto de ver, mas acho que não era capaz de pôr em mim uma tatuagem.
Qual foi a maior extravagância que fez na vida?
A partir do momento em que sou feliz, independentemente daquilo que se possa gastar ou daquilo que se possa fazer… Se vim ao mundo para ser feliz, tenho de agarrar essa oportunidade. Não comprei muitos carros, os carros que comprei foram os carros que eu gostava na altura, por isso não posso dizer que foi extravagância. É a mesma coisa que quando você vai comer a um restaurante normal paga 20 euros, se vai comer a um bom e paga 100, você diz “pôrra, mas eu saí daqui muito bem”. Portanto não foi extravagância. Se eu sou feliz a fazer isso e as pessoas à minha volta são felizes, deixa de ser extravagância. Extravagância é nós fazermos alguma coisa inútil e dizer “porra, isto foi uma merda que eu fiz”.
Algum outro desporto que goste de seguir ou praticar?
Quando era miúdo praticava tudo e mais alguma coisa, até hóquei em patins que era sem patins na altura. Nós íamos roubar bolas aos matraquilhos, fazíamos sticks e jogávamos hóquei sem patins obviamente [risos]. Andebol, basquetebol, velocidade, corrida, essas coisas todas pratiquei e gosto. Sigo qualquer desporto, posso ir ver um jogo de futebol feminino, como posso também ver um jogo de basquetebol."
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