"O Humanismo Clássico, fundamentado no humanismo grego e no humanismo latino, assim o define o Padre Manuel Antunes: “um movimento europeu dos séculos XV e XVI, com ramificações nos séculos seguintes e significa, animando esse movimento e dele emergindo, um ideal de razão e de vida abundante, de ordem e de proporcionamento ao cosmos, de limite e de lucidez, de disciplina mental e de gozo sensorial, de expansão e de comedimento, de aliança, no mesmo homem, da torre de marfim e da cidadania do mundo, da filosofia e da retórica e, não raro, da filosofia e da religião, ideal esse cultivado através das litterae humaniores, formadoras no homem da sua verdadeira humanitas (Indicadores de Civilização , Verbo, Lisboa, 1972, p. 3). O Padre Manuel Antunes (1915-1985), meu professor de História da Cultura Clássica e de milhares de estudantes, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, ao longo de um quarto de século, já que esta disciplina era transversal a todas as licenciaturas – o Padre Manuel Antunes foi sempre um “clerc”, em defesa da pessoa humana contra a anti-cultura das oligarquias do dinheiro, do racismo, da violência militarista e ditatorial, ou contra o sectarismo de certas ideologias que favorecem uma desenfreada ânsia de monocultura do saber científico, decorrente da globalização neoliberal. Aliás, o humanismo clássico já representou um “corte epistemológico” (e até político) em relação a uma linguagem trivial, semeada de lugares comuns e de muitas crendices que cheiravam ao mofo medieval. Em Portugal, Sá de Miranda, António Ferreira, André de Resende, Damião de Goes, o helenista Aires Barbosa, André de Gouveia (e quedo-me aqui, pois muitos mais nomes seria de realçar) o que foram eles, acima do mais, senão diligentes estudiosos e respeitados Mestres, que mereceram a estima e admiração de Erasmo e doutras figuras incontornáveis do pensamento e das letras dos séculos XV e XVI? Erasmo, aliás, exerceu, no século XVI, uma influência só comparável à de Voltaire, no século XVIII. E com semelhante mordacidade e coragem…
André de Resende (1500-1573) na sua célebre Oratio pro Rostris, declarou-se “Cristianus sum et ciceronianus”, para não deixar dúvidas a ninguém que o cristianismo não era inimigo da ciência, nem das belas letras. Joaquim de Carvalho não tem dúvidas do “humanismo cristão” de André de Resende, “tão visceralmente hostil à paganização do Homem como à divinização da natureza” (Estudos sobre a Cultura Portuguesa do século XVI, vol. II, p. 57). Mais próximo de nós, têm sido vários os humanismos. Manuel Antunes, em estreita aliança com a filosofia e a teologia (e a política) do seu tempo, deu especial realce ao humanismo cristão e ao humanismo marxista. “O Marxismo partiu da análise de certa zona da realidade (a miséria do proletariado originada do Liberalismo) sistematizou-se, apoderando-se da dialéctica de Hegel e, porque era fácil e trazia em si aquela parcela de verdade que correspondia às aspirações do homem, tornou-se a grande esperança de muitos milhões de seres humanos, uma autêntica mística que lhes levanta os corações como o vento levanta o mar” (Manuel Antunes, Do Espírito e do Tempo, Edições Ática, Lisboa, 1959, p. 25). Marx, apropriando-se da metodologia dialéctica, enquanto lei do processo histórico, levado por perspectivavas históricas que no seu tempo se ergueram (refiro-me ao socialismo, à economia de Ricardo, à evolução darwinista, ao positivismo comteano e ao materialismo filosófico mecanicista) rejeita o idealismo de Hegel, pois que não é o pensamento o produtor da realidade e faz da luta de classes o motor da História, rumo (pensavam Marx, Engels e Lenine) à ditadura do proletariado, a formas mais justas das relações sociais, isto é, sem classes, sem exploração, sem alienação. Só que as teses ortodoxas do marxismo, quando politicamente materializadas, resultaram em ditaduras esvaziadas de liberdade, igualdade, fraternidade. E dogmáticas, sem a possibilidade de discussões ou desvios. De facto, como já o disse noutras ocasiões, não há ditaduras boas e ditaduras más – há ditaduras e são todas más!
Para Manuel Antunes, Tomismo (a corrente teológica oficial da Igreja Católica) e Marxismos são duas “sínteses críticas e dialécticas, mas com uma diferença que, por ser de tanta importância, se deve acentuar desde já. De facto, mais que de diferença, trata-se de contrariedade. Construída por um santo, a síntese tomista é sobretudo tese, afirmação; afirmação de Deus e do mundo, do homem e de Cristo. Construída por um revolucionário, a síntese marxista é sobretudo antítese, negação; negação de Deus e de Cristo, negação deste mundo e deste homem, para que da destruição de ambos possam nascer o mundo futuro e o homem futuro”. E continua, linhas adiante: “Mas os contrários partem expressivamente de duas definições do Homem. Um espírito encarnado. Assim poderíamos definir o Homem, segundo a filosofia tomista (…). Que é o homem, segundo Marx? Um corpo consciente de si. Um composto físico-químico que um dia, por si, depois de transformações sucessivas, chegou ao pensamento. Por isso, segundo Marx, o homem é, antes de mais nada, parte, não pessoa. Parte de um todo homogéneo, materialmente homogéneo, cósmico e social. O homem é o mundo do homem, lemos na Contribuição à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel” (op. cit., p. 104). Enfim, tomismo e marxismo são dois humanismos, mas com sentidos diferentes: um, a caminho da Transcendência; o outro, através da ditadura do proletariado, movendo-se, em luta incessante, na Imanência; um, aceitando Deus como o alfa e omega da História, dando sentido ao sem sentido aparente da existência humana; o outro, lutando por um mundo de justiça social, mas sem a ponte entre este mundo e a eternidade (uma eternidade de comunhão com Deus, onde a morte foi superada e o ser humano inserido na própria esfera divina); um, sabendo-se pela fé filho de Deus; o outro, julgando-se matéria que em matéria se resolve e se completa.
Também Manuel Antunes teve em conta a sede de justiça social que anima e põe em marcha o marxismo, pois que, no cristianismo, quem rejeita o seu semelhante (o seu irmão) rejeita o próprio Cristo. Por isso, Manuel Antunes escreveu, no seu livro Repensar Portugal, em Abril de 1979: “Que espécie de sociedade desejamos? Que espécie de sociedade deseja o povo português? Uma sociedade em que estejam definitivamente para trás o liberalismo atomista e o colectivismo totalitarista. Uma sociedade que enterre de uma vez para sempre os monstros inumanos de um passado mais ou menos próximo, ou mais ou menos remoto. Uma sociedade em que não se maximize o lucro, nem se sacralize o poder. Uma sociedade em que o Estado, em vez de fim em si mesmo e de fim dos grupos que o compõem se encontre de verdade, ao serviço da comunidade das pessoas que o excedem em toda a linha” (p. 11). No cristianismo, como em Manuel Antunes, pensar o essencial começa no amor ao próximo (sem o sacramento do irmão ninguém poderá salvar-se) e portanto no ato de fé a que nos leva uma autocrítica da razão. Sem tombar na irracionalidade que, como onda imparável, está a invadir o mundo todo. Mas, assumindo o cultivo de virtudes morais e cívicas e, por isso, dando primazia à antropologia sobre a tecnociência, à paz sobre a violência, à utopia sobre qualquer fixismo dogmático, ao social sobre o individual, ao ser sobre o ter, à práxis sobre a retórica de todos os sofistas, à filosofia perennis dos grandes espíritos da humanidade sobre a falsa actualidade de certos modismos, de certas políticas e de certas infantilizações do sagrado. Vale a pena relembrar o verso de Píndaro: “Homem sê o que és, sê quem és”. Para tanto, diz-nos Manuel Antunes, importa considerar o humanismo como visão, o humanismo como acção, o humanismo como invenção. No humanismo como ação, como visão, como invenção, cabe perfeitamente o Desporto. Aliás, o Desporto, se quer transformar-se numa Grande Esperança, não pode ser outra coisa senão um humanismo. E portanto ciência e sabedoria, factos e valores. E que cultive o ter para o ser. E que eduque para o “homem integral”."
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