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sábado, 21 de abril de 2018

Les Herbiers, Ave Maria

"Aquilo que o Caldas SC não conseguiu em Portugal, fizeram-no Les Herbiers. Daqui a três semanas, esta equipa do terceiro escalão disputará a final da Taça de França. Têm mais mérito que os portugueses? Não necessariamente. Em França, as eliminatórias da Taça jogam-se numa só partida, no estádio do primeiro clube sorteado (e sempre no campo do clube mais pequeno caso haja duas divisões de diferença entre os adversários). Além disso, para chegarem à decisão do Stade de France, Les Herbiers ultrapassaram variados obstáculos mas nem um único clube da Ligue 1.
Mas, afinal de contas, será isso assim tão grave? Para chegar à final do Euro’2016, Portugal não teve de ultrapassar grandes selecções, com excepção da França, a 10 de Julho. Foi exactamente o que aconteceu ao Les Herbiers.
Peguem no orçamento do Paris Saint-Germain (700 milhões de euros), dividam-no por 350, e chegarão ao do seu adversário na final da Taça de França, no próximo fim-de-semana. Les Herbiers é uma pequena vila de 11 mil habitantes no coração de um departamento rural bastante periférico, La Vendée. No entanto, para o futebol como para o resto, este território tornou-se nos últimos meses um modelo. Aqui, entre Nantes e Bordéus, não há nenhuma riqueza natural ou indústria em particular. No futebol é igual: os clubes desta zona nunca foram além da segunda divisão.
E, no entanto, toda a gente olha hoje para esta zona do hexágono francês, onde a taxa de desemprego passa por pouco os 4 por cento. Les Herbiers é o parque de diversões do Puy du Fou, esse extraordinário sucesso que é um pequeno espectáculo de luz e som transformado em máquina de sonhos. Milhões de turistas chegam anualmente a este canto perdido de França. La Vendée são centenas de PME – Pequenas e Médias Empresas – ancoradas no seu território, que apostaram tudo no savoir-faire, na inovação e na competência. Na moderação, também. Aqui, os assalariados recebem retribuições bastante modestas, mas têm empregos seguros e sabem que a fidelidade é uma virtude partilhada. Os empresários locais não vão buscar os melhores elementos à concorrência quando procuram desenvolver-se. Esta é uma regra não escrita. Aqui, faz-se o desafio, mas respeitam-se as regras. Uma forma de ética.
Isto vale igualmente para o clube de futebol. A equipa do Les Herbiers, como a maior parte dos clubes do grande Oeste, quer ganhar a jogar. Com a bola no chão, com movimento e jogo a dois toques. É a escola do FC Nantes, que festejava esta semana o seu 75º aniversário. E esta grande casa do futebol francês ainda espalha pela sua zona de influência essa bela ideia segundo a qual “a vitória não é o objectivo, é a consequência”.
Na terça-feira, a equipa de Les Herbiers manteve os seus princípios, face ao opositor, do mesmo campeonato, na meia-final da Taça de França. Chambly é o futebol pragmático: jogo longo, directo, com impacto físico. Era o favorito desta meia-final, mas perdeu-a. Esta devia ser a primeira lição para o FC Nantes e para o futebol francês. Perante 35 mil espectadores. E esta deveria ser uma segunda lição para o FC Nantes e para o futebol francês. Quando lhe oferecemos entusiasmo e autenticidade, ambição, o público vai aos estádios. De resto, Waldemar Kita, o presidente do FC Nantes, reconheceu-o esta semana: ficou impressionado por este serão em particular, por este público fervoroso mas não belicoso, por este futebol alegre. O futebol é a Liga dos Campeões, aqueles incríveis quartos-de-final da semana passada. E é também o choque de contrários, esse desporto colectivo em que os pequenos têm mais hipóteses do que em qualquer outro. Toda a França – ou quase toda a França – apoiará Les Herbiers na final. Cada telespectador se reverá naqueles desqualificados que vão enfrentar os melhores jogadores da Ligue 1.
La Vendée, historicamente, foi ainda assim um território de fanáticos, teatro de horríveis massacres durante a revolução francesa, quando o terror laico chocou nesta zona com uma firme resistência, ligada à fé católica. Uma zona durante muito tempo difamada pelo seu aspeto tradicionalista, no limite do atraso. A 8 de Maio, será mais uma vez este território a desafiar a capital, os seus brilhantes, as suas lantejoulas, o seu PSG. No aniversário do armistício da II Guerra Mundial, La Vendée poderá apanhar uma tareia do PSG. E então? Serão mais uma vez os “Chouans” contra a França do alto e todo um país se reverá nesses jogadores rejeitados pelos clubes grandes que, numa noite, tentarão inverter a ordem natural das coisas. Les Herbiers não têm Ronaldo no pontapé de saída, quando alguns dos seus adeptos arriscarão cantarolar uma Ave Maria. E rezarão para que um qualquer Eder se esconda nas suas fileiras.

PS – Esta semana, Maria sucumbiu a um longo combate contra a doença. Como todos os portugueses de França, ela vibrara como nunca, a 10 de Julho de 2016, quando as selecções dos seus dois países se defrontaram pelo título de campeão da Europa. Esta crónica é dedicada a ela."

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