"No que se refere à liberdade de expressão e à verdadeira justiça - não a justiçazinha portuguesa, sempre ao lado do poder e disponível para o compadrio - continuamos a precisar que a Europa nos dê lições. E afronte a «Lei a Oeste de Pecos».
Oito anos se passaram. Sei eu, sabemos todos, como a justiça em Portugal é lenta. Lenta e injusta - porque beneficia aqueles que têm meios para dirimir os seus casos durante anos a fio, suportando despesas; porque é subserviente aos poderes, por muito fátuos que sejam.
Houve tempos em que sei juiz era mais do que assumir uma profissão: era um desígnio, quase um sacerdócio. Nesses tempo não era juiz quem queria. E o caminho era longo e espinhoso. Entrava-se na magistratura por baixo e atingia-se a possibilidade de julgar numa fase da vida em que a maturidade fundamental para o acto acompanhava a idade exigível.
Infelizmente, nada disso acontece hoje em dia.
Qualquer garoto enverga a beca. E sujeita advogados e arguidos a lamentáveis situações sempre que se dispõe a vergar a cerviz a queixosos que recolhem as suas inaceitáveis simpatias.
Foi o que me aconteceu durante estes oito anos.
Muitas vezes o escrevi nestas páginas: de Gaia para cima existe uma «Justiça a Oeste de Pecos».
No dia em que, à minha frente, um segurança do Tribunal do Bolhão, depois de ter identificado um a um todos os que entraram no edifício, escrevendo na folha à sua frente os nomes e os números de BI, se limitou a fazer uma vénia a Pinto da Costa rabiscando no papel «Sr. Presidente», sem mais, fiquei esclarecido - o ridículo não mata, nem num tribunal.
Não foi surpreendente a decisão do juiz de primeira instância no primeiro dos processos que me foi movido pelo presidente do FC Porto - outros decorrem. O chaleirismo e os rapapés de figura perante o assistente envergonhariam qualquer magistrado digno desse nome. Como não foi surpreendente a ratificação da decisão por parte da Relação do Porto, não conhecesse eu tantos desembargadores que se enfileiram nos camarotes das Antas e se esgatanham por um convite para acompanhar a equipa numa qualquer eliminatória europeia. É assim a «Justiça a Oeste de Pecos».
Um colapso curado a xanaxes...
Mas, afinal, o que não era então possível escrever sobre o ilustre presidente do FC Porto que causasse tanta indignação ao sr. dr. juiz e aos digníssimos desembargadores para que não tivessem quaisquer dúvidas em avançar para uma condenação por difamação com mão dura na pena a aplicar ao vil escriba, neste caso este aqui que vos maça com tal assunto?
O livro em causa chamou-se «A Pátria Fomos Nós» e debruçava-se sobre a presença da Selecção Nacional no Mundial de 2006. Um ignorante opinador, especialista em copiar prosas alheias, chegou ao desplante de considerá-lo um título fascista, pois obviamente nunca leu o poema da liberdade:
«De repente eu disse: camaradas a pátria somos nós...»
Nele, escrevi: «Ontem, numa dessas deprimentes festarolas, o campeão nacional dos arguidos do Futebol português e inimigo fidagal da Selecção Nacional, usou e abusou, como é seu hábito da linguagem chocarreira que sempre deliciou os pés-de-microfone».
Aqui d'el rei! Um tal de Dr. Póvoas, testemunha arrolada pelo advogado do queixoso - advogado este que teve um passado interessante nos Tribunais Plenários do Estado Novo (consultar «Os Tribunais Políticos» de Fernando Rosas) - garantiu que o dito senhor ficou à beira de um colapso quando foi confrontado com frase tão assassina e teve de ser medicado a xanaxes. Outra figurinha, conhecida como «O Conde Redondo», exaltou-se na sala de audiências:
«É uma vergonha! Linguagem chocarreira é a inguagem de cabras e de cabrões» (sic)
Um tal de Paradela de Abreu, editor famoso do salazarismo, ausente em Inglaterra à data da publicação, jurou que a imprensa britânica tinha dado grande destaque ao soez ataque por mim perpetrado ao presidente do FC Porto. A sala de audiências, transformou-se num circo e, para que a palhaçada fosse completa, o meritíssimo decidiu a favor das dores do campeão dos arguidos. Até porque, como sentenciou, repeti a expressão do livro, o que revelou segundo o douto mamífero, a minha intenção de o achincalhar pessoalmente. Dando como exemplo outra frase acabrunhante par ao dito cujo:
«No seu comentário ao final do ano de 2004, no «Público», Miguel Sousa Tavares não tem pejo em afirmar que o FC Porto é um exemplo a seguir pelo país. Não importa que o seu presidente fosse suspeito em casos de corrupção e tráfico de influências: quando vivemos momentos de desertificação intelectual, qualquer asneira propagada aos quatro ventos parece uma ideia brilhante».
Contra a «Justiça a Oeste de Pecos», não me restou alternativa senão saltar fronteiras e recorrer ao Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. Porque aí a influência destes régulos de pacotilha que intimidam juízes e desembargadores não se faz sentir. Os anos passaram. O TEDH decidiu de forma inequívoca: «Os factos não constituem crime». E absolveu, quer do crime a que fui condenado, quer do pedido de indemnização civil levado a cabo pelo queixoso. Com base nesta decisão, coube recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, agora lavrada:
«A única decisão que pode ser proferida, em consonância com o acórdão do TEDH, é aquela que, perante a factualidade dada como provada, considera não haver crime, uma vez que o TEDH considerou que tal factualidade não justificava a sua integração no tipo de crime em causa (difamação), motivo pelo que a considerou ilícita e condenou o Estado Português por violação do art. 10.º, n.º 1, da Convenção Europeia».
E assim, o que não se podia escrever, agora pode. Por muito que custe ao presidente do FC Porto - para mim sempre o campeão nacional dos arguidos do Futebol português até que outro lhe retire o título - ao afervorado juiz do Tribunal de Gaia e aos deferentes desembargadores do Tribunal da Relação do Porto.
Porque o Mundo, como dizia o Torga, não se resume às bordas de um prato de sopa, e a liberdade de expressão se levanta mesmo a «Oeste de Pecos»."
Afonso de Melo, in O Benfica
Brilhante.
ResponderEliminarpatriarca disse:
ResponderEliminarExcelente e inaudito texto.
Força Afonso de Melo.
Bravo!
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