"Sim, todos os benfiquistas gostam de ganhar 10-0, mas (...) quer apresentar-nos as virtudes do 0-0: “Diz o meu amigo que, a partir de uma determinada quantidade de golos, um jogo deixa de ser um jogo, um combate, e passa a ser uma orgia”
Amigo com quem costumo ver os jogos do Benfica em casa (peço desculpa a Domingos Soares Oliveira, mas entre BTV e Netflix, neste momento opto pelo segundo, embora Benfica de Lage possa vir a desequilibrar os pratos da balança) é um grande partidário do zero a zero. Diz ele, pragmático e adulto e não sem toda a razão, que o zero a zero é a prova definitiva da superioridade filosófica do futebol sobre qualquer outro desporto. O maior pesadelo deste meu amigo é que um dia algum infeliz burocrata se lembre de proibir por decreto o zero a zero, como há alguns anos se pensou fazer no campeonato norte-americano. Como bom adepto de futebol que é, este meu amigo gosta de golos, sim, mas também encontra no culto primário do golo um certo sentimentalismo, uma fraqueza da vontade, como aquelas músicas gordurosas com que os jornalistas decoram certas reportagens para provocar a lágrima e a compaixão fácil do espectador.
Diz o meu amigo que, a partir de uma determinada quantidade de golos, um jogo deixa de ser um jogo, um combate, e passa a ser uma orgia. O jogo parte-se, os jogadores, inebriados pelo frenesi do golo, esquecem-se das obrigações, acabam-se as tácticas, suspendem-se as regras, a bestialidade impera, os golos sucedem-se. Para ele, um zero a zero equivale à reposição da ordem e da legalidade após um breve e ígneo período revolucionário. É o mais belo resultado no futebol, de acordo com esta visão heterodoxa, e a prova é a de que ao fim de tantos anos e de tantos jogos sem golos os adeptos não esmorecem. Em vez de um monumento ao tédio, de pináculo da indecisão, o zero a zero seria o equivalente aos jejuns místicos findos os quais se consegue apreciar com mais propriedade a beleza e a sacralidade do golo. É que o zero a zero também serve para recordar que um golo, qualquer golo, é sempre especial.
É tão bonita a festa do golo, não é? O golo, o leitor sabe como é, pode vir de qualquer maneira que a gente festeja sempre. De pé esquerdo, de pé direito, de cabeça, de cima para baixo, como mandam as regras, ou de baixo para cima, se as circunstâncias o exigirem, de canela ou calcanhar, de costas, até com a mão; em fora-de-jogo, sem intenção, de ressalto, às três tabelas, de trivela, do meio da rua, na cara do guarda-redes ou à boca da baliza; em jeito, em força, de bandeira, de letra, de livre, penálti ou na sequência de um canto; de bola parada, de bola corrida, de rosca ou de bico; de primeira ou na recarga, sem preparação ou de laboratório, individual ou colectivo; de bicicleta, de carrinho, de coice de mula, peixinho ou escorpião; no primeiro minuto, no último suspiro, após o período regulamentar, nos descontos, à beirinha do intervalo ou logo no reatamento; do avançado que marca muito, do defesa que marca pouco ou do trinco que nem chutar sabe; do estreante, do veterano, do regressado, seja como for, seja de quem for, golo é golo. Há sempre lugar para mais um no coração faminto do adepto que se realiza quando, no tumulto da bancada, grita “só mais um.”
Tem razão o meu amigo quando compara o excesso de golos a uma orgia. Acrescentaria eu, a uma orgia gastronómica, a um festim descontrolado. O futebol convida a metáforas bélicas e sobre os 10-0 do Benfica ao Nacional já se falou em massacre e muitos, de formação bíblica, terão pensado em degola dos inocentes, em falta de misericórdia ou, os mais dados à meteorologia, em vendavais e furacões. Mas ontem, no Estádio da Luz, houve, sem dúvida, qualquer coisa de “La Grande Bouffe”, de comer após a fome saciada, de comer até rebentar. A haver algum pecado foi o da gula, mas, para os adeptos, o golo é como aquelas comidas saborosas que não enchem, não enfartam. Se alguém acabou o jogo de ontem a precisar de sais de frutos para a azia não foi nenhum dos 55 mil adeptos que estiveram no estádio nem aqueles que, como eu, saborearam pela televisão cada um dos dez pratos servidos como se fosse o primeiro. Até o meu amigo, defensor da elevação teológica do zero a zero, apologista das virtudes filosóficas do jogo que termina sem golos, apesar de condoído pelo destino e as lágrimas dos nacionalistas, lamentou que o árbitro não tivesse dado descontos. “Ainda dava para mais um ou dois”, dizia ele no final, rendido à festa pura e insaciável do golo."
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