"O primeiro atleta a morrer durante os Jogos Olímpicos virou lenda em Portugal e o neto que não se sabia que existia conta o que nunca se contara: «a verdade das mentiras». Garante que a história do sebo foi criada como «nuvem» para esconder os responsáveis pelo drama do maratonista.
O telemóvel tocou. No outro lado da linha, Rosa Mota. Coutou-me que acabara de encontrar-se, ela e José Manuel Constantino, o presidente do COP, com o neto de Francisco Lazáro. De espanto, foi a minha reacção:
- Mas como? Se o único familiar que se lhe conhece é uma sobrinha-neta? Será que é mesmo verdade?!
Marcado, de pronto, encontro com ele, mal cheguei, de uma pasta retirou medalhas e documentos, recortes e fotografias - e exclamou:
- Para quem desconfie de que sou mesmo neto de Francisco Lázaro, aqui tem a certidão a prová-lo. Eduardo Lázaro da Silva. E repare: no meu avô materno tem: Francisco da Silva ou Francisco Lázaro. Sabe porquê? Porque o meu avô não se chamava Francisco Lázaro, chamava-se Francisco Silva, filho de Lázaro da Silva. Quando ele começou a ganhar as corridas, lá em Benfica, o povo, em euforia, dizia: «Olha o Francisco do Lázaro». Nos jornais passou a ser tratado por Francisco Lázaro - e, depois, foi a um cartório mudar de nome, de Francisco da Silva para Francisco Lázaro...
Nasceu em 1888, em Benfica. O pai era carpinteiro e, pequeno, foi trabalhar para seu aprendiz numa oficina do Bairro Alto onde se fabricavam carroçarias para automóveis:
- Como não tinham dinheiro para o bilhete ia de Benfica para o Bairro Alto ou do Bairro Alto para Benfica a correr atrás do eléctrico. Uma vez, no eléctrico estava o dono de um jornal chamado Tiro & Sport e vendo que nunca mais lhe faltava o fôlego, saiu do carro, perguntou-lhe onde era atleta. Ficou de boca aberta ao saber que não era atleta, desafiou-o para uma corrida que ia organizar...
Foi em 1908, chamou-lhe Maratona Portuguesa, teve apenas 24 quilómetros por temer que ninguém conseguisse fazer 40 - e Lázaro arrasou toda a concorrência.
- Logo depois, meu avô ficou doente dos pulmões. Durante mais de um ano, não pôde voltar às corridas. Só em 1910 fez a primeira maratona a sério, correu os 42.800 metros num tempo que teria dado para ser campeão olímpico, dois anos antes...
Na época seguinte, Cosme Damião levou-o para o Benfica - venceu o primeiro crosse que se organizou em Portugal e os 30 Km do Progresso:
- Está aqui a medalha dessa vitória. A propósito vou contar-lhe coisa que me chocou muito. Em 2003, vim do Brasil a Portugal mostrar que não era verdade o que se dizia que Francisco Lázaro não tinha descendentes directos. Pedi audiência a Vicente da Moura, presidente do Comité Olímpico para lhe provar que tinha, tinha-me a mim e à minha irmã. Emocionei-me vendo no COP uma camisola que o meu avô usara, uma das poucas coisas suas que não ficara com a minha avó. Decidi, então, a doar a primeira medalha que ele ganhou para colocar sobre a camisola. Deixei todos os contactos para que se alguém quisesse saber a verdade sobre Francisco Lázaro não continuasse a ir pela mentira. Não serviu de nada. Pior: em Dezembro de 2012, o Secretário de Estado do Desporto, Alexandre Mestre, foi à Suécia para suposta homenagem ao meu avô e levaram como familiar senhora que disseram ser sua sobrinha-neta, mas que nós, na família, nem conhecíamos. Tentei contactar a senhora através do Facebook, nunca me respondeu. Ou seja, para nós isso, lá na Suécia, não foi uma homenagem a Francisco Lázaro, foi uma farsa. Porque a homenagem que a verdadeira família de Francisco Lázaro - é a resposta à pergunta que nos atormenta há 100 anos: quem é o responsável pela sua morte? E quando, agora, voltei ao COP e fui recebido por José Manuel Constantino e Rosa Mota tive mais uma tremenda decepção: ninguém sabia onde estava a primeira medalha que o meu avô ganhou, a medalha que eu tinha deixado a Vicente de Moura. Mas, repito-o: o que nós queremos é a verdade, o fim das mentiras com que se continua a fazer a história de Francisco Lázaro...
«Mentira, a história do sebo...»
Eduardo Lázaro remexe documentos, mostra, emocionado, o cartão de acreditação do avô nos Jogos Olímpicos. Depois, passa os olhos pelo livro que Romeu Correia escreveu sobre a saga. Para no pedaço onde Armando Cortesão, que lá correu os 800 metros, conta: «Ainda há pessoas que me fala nisto: que o Lázaro fora envenenado, que lhe fizeram essa patifaria para ele perder a corrida. Um disparate! O Lázaro morreu por dois motivos: primeiro, porque se untou de sebo. Fui eu e o Fernando Correia, quando ele não aparecia à partida da maratona, que o procurámos no balneário e o encontrámos a besuntar-se com sebo. Não faço a menor ideia como o Lázaro conseguiu arranjá-lo, ele que mal falava português. Ainda tentámos que ele tomasse banho, mas não havia tempo. E ele lá foi correr a maratona todo besuntado com sebo, com os poros da pele tapados, o que impedia a transpiração. E outro coisa: só ele e um japonês é que foram de cabeça descoberta àquele sol». Para num suspiro, dispara, sem pestanejar:
- Sim, a história do sebo é pura invenção. Mito. Mentira. Aliás, nessa passagem do tal livro fica desmontada quando Cortesão diz que não sabia como é que o meu avô tinha arranjado o sebo. Não arranjou, nem usou, nunca tal usou. A minha avó, passou toda a sua vida contando que um dos participantes nos Jogos, penso que o António Pereira da luta, que era com quem o meu avô se dava melhor, lhe disse, uma vez: «Sofia, o melhor é você aceitar o destino e não mexer mais com isso porque eles são pessoas muito influentes, pode dar problemas, mas o que eu quero dizer-te é: não, o Chico não passou sebo no corpo. O que o matou foi não terem aceite o que até os médicos exigiam: que a prova fosse mudada para o fim da tarde...»
Eduardo abre páginas de O Século do Desporto de A BOLA, onde se vê a frase: Ou ganho ou morro! - onde se diz que o largou ao fugir do balneário quando Armando Cortesão e Fernando Correia pensaram passá-lo pelo duche para lhe retirar o sebo (e isso também foi o que eles disseram...):
- Com 'Ou ganho ou Morro' se despediu o meu avô da minha avó no cais de Lisboa. Mas, nesse livro de Romeu Correia e em toda a história do meu avô também se fala de Sofia como sua mulher - e não, não era. Sim, estava grávida da minha mãe, mas não eram casados, ele tinha pulado a cerca, deixara-lhe, porém, a promessa: quando voltar, casamos, mas já com a medalha que vou trazer dos Jogos Olímpicos. Chegou atrasado à partida? Isso é verdade, mas não o fez por ter acontecido o que se disse. Também foi contado à minha avó: diante aquele calor, o meu avô decidiu: «Já que não vão adiar a prova, não corro». Convenceram-no, dizendo que era a grande esperança de Portugal para a medalha, que não podia abandonar assim o sonho de uma nação, enfim, essas coisas que se imagina e, então, ele disse: «Está bem, eu vou... ou ganho ou morro!» E já a correr para a largada, ainda afirmou: «Já que não querem adiar, por revolta não vou botar nada na cabeça, vou sem nada...»
Estranho remédio para dentes
Os Jogos de Estocolmo começaram a 6 de Julho de 1912 - e a Francisco Lázaro foi dada a honra de levar a bandeira de Portugal à cerimónia de abertura. Cortesão também o revelou: 'Como víamos todos os atletas a levar massagens, resolvemos comprar as emborcagens. O farmacêutico, que era um pirata qualquer, vendeu-nos um frasco com um líquido incolor. Depois dum treino, o Joaquim Vital começou a dar-me massagens com o tal líquido. Espantado pergunta-me um sueco: «O que estão a fazer?» Respondi-lhe que quisermos comprar emborcagens e foi o que nos deram na farmácia. Ao que retorquiu: «Mas isso é remédio para os dentes!»'
Acreditava-se, então, que a emborcação, mistela que metia mistura de ovos e vários ácidos, dava aos músculos «perfeita elasticidade», tornando-os «insensíveis à dor e à fadiga». Não, Eduardo também não aceita a ideia de que possa ter sido o erro no modo como se fez a emborcação que arrastou Francisco para a tragédia:
- Se já se tinham apercebido de que era remédio para os dentes o que lhes tinham vendido na farmácia, iam usá-lo no meu avô?! Aliás, a minha avó também passou toda a vida a negar isso: que nunca viu o meu avô com essa coisa da emborcação...
Corpo esteve 60 dias numa capela por falta de dinheiro
Do fígado que parecia numa pedra à dúvida óbvia: «Se houvesse sebo, os médicos não falavam?!...»
Tudo o que Eduardo Lázaro da Silva guarda do avô talvez desse já para um pequeno museu. «Quem sabe, um dia faça isso, o que está vendo aqui é só uma parte minúscula de tudo, de toda a história». Do rol de documentação, solta-se mais uma revelação: que 8 dos 11 médicos encarregados dos Jogos de Estocolmo tentaram em vão que a organização passasse a maratona para o fim do dia. O tiro de partida foi às 13.48 horas. A temperatura andava pelos 36 graus - e subiu para lá dos 40. O resto foi o que se sabe:
- Ao entrar no hospital, percebeu-se logo que só por milagre é que meu avô se salvava. Sofrera uma meningite, à meia-noite ainda lhe deram injecções de água salgada, pareceu que melhorou, mas não: entrou em delírio, fazendo movimentos como se ainda estivesse a correr a maratona, às 6 horas e 20 minutos do dia 15 de Julho de 1912 ouviram-lhe o último suspiro. Pierre de Coubertin tinha estado lá à sua beira, pouco antes, saiu do hospital com a ideia de nunca mais deixar que se corresse a maratona nos Jogos...
Na autópsia, descobriu-se que o fígado de Francisco Lázaro «estava completamente minado, do tamanho de um punho fechado e rijo, a tal ponto que só se conseguira partir a escopro, como se fosse uma pedra».
- Provavelmente foi o que levou à mentira do sebo. E eu digo: se a história do sebo fosse verdade, se o meu avô tivesse chegado ao hospital com o sebo no corpo, o sebo no equipamento, os médicos não teriam falado disse? Teriam, decerto. Porém, na certidão de óbito só se fala da meningite causada pela insolação - e nenhum documento médico diz que foi achado produto estranho ou químico no corpo do meu avô. Por isso, o sebo, a emborcação, a estricnina só podem ser nuvens para esconder os responsáveis por não se ter mudado a hora da maratona.
Fez-se um festival desportivo para angariar fundos para a filha que estava para nascer. Nasceu quatro meses depois. Sofia baptizou-a como Francisca. Colheram-se 14.040 coroas suecas, que valiam cerca de 3500 escudos - ou seja mais ou menos aquilo que Lázaro ganharia em 20 anos de trabalho na oficina do Bairro Alto:
- Dos Reis da Suécia, a minha avó foi tendo ajudinha, uma pequena pensão durante algum tempo. Mas nada com que pudesse viver não digo bem, mas assim-assim. Passou, pois, por muitos sacrifícios. Por estar grávida do meu avô e não estar casada, a minha avó foi abandonada pela família dele até. A minha mãe não teve condições de estudar, só aprendeu a ler e escrever. Por isso, acho que as 14 mil coroas não foi a minha mãe que as recebeu, pelo menos na totalidade...
Sabendo que Portugal não tinha dinheiro para transladar o corpo, o Rei ordenou que navio da marinha sueca o trouxesse para Lisboa, pagando a Coroa todas as despesas fúnebres:
- Com o caixão mandaram latinha de terra do local onde o meu avô caiu - e uma fotografia da capela católica onde o corpo dele esteve à espera que o trouxesse, durante 60 dias.
A foto da capela também a mostrou, Eduardo.
O fantasma que não o deixou ser atleta
Eduardo Lázaro revela o sentido da sua luta e o que aconteceu à avó e à mãe, onde elas estão
Eduardo Lázaro vive no Brasil. É dono da Lázaro's Representações, empresa do Estado do Espírito Santo com negócios que passam por cafés e papéis, esponjas e colas, azeites e azeitonas:
- Como vê, essa ligação é tão forte, tão forte que mesmo que o nome de baptismo do meu avô não fosse Francisco Lázaro, a nossa empresa tem o seu nome.
Eduardo nasceu em Lisboa, foi para Moçambique, com um ano e três meses:
- Francisca, a minha mãe só passou a ter vida melhor quando se casou com o meu pai que era secretário da Embaixada de Cuba. De lá saiu para gerente de uma madeireira na Gorongosa. Da Gorongosa saltou para a Beira, a minha avó continuou morando com a minha mãe. E, claro, eu cresci a ouvi-la falar da história do meu avô, a verdadeira história do meu avô.
Não desporto nunca fiz a sério, apesar de ter vontade. Em Moçambique, aos 14 anos, cheguei a correr no colégio, acharam que tinha jeito, mas a minha mãe pediu-me para deixar. Tinha a ver com o drama, vivei sempre com o fantasma da morte do meu avô na cabeça. Dizia-me: corrida não, escolhe o que quiseres: natação, futebol. Mas aí não tinha jeito.
Aos 16 anos, mudou-separa o Brasil:
- Com a guerra colonial, meu pai ficou com medo que me mandassem para o exército, fomos embora da Beira. Com seis ou sete anos de Brasil, minha mãe faleceu. E a minha avó logo depois. Estão ambas enterradas no Rio de Janeiro, ambas morreram com o fantasma que continua em mim - mas diferente: eu quero espantá-lo para sempre. Por isso é que luto para que acabem as mentiras em torno do meu avô. Ou seja, só quero que quem foi responsável pela sua morte assuma a sua responsabilidade, o Comité Olímpico, o Comité Organizador. Assim, ficaremos todos pacificados - e a história de Francisco Lázaro mais honrada, sem o sebo, a emborcação, a estricnina. Apenas se contando que morreu porque não quiseram adiar a hora da maratona, a fizeram à torreira do sol, a 40 graus...
Estricnina? Mais uma mentira!
Naquele tempo não era 'doping', mas nenhum relatório médico fala desse outro mistério...
O salário médio diário de um operário em Portugal andava, em 1912, pelos 6 tostões. Era, mais ou menos, o que Francisco Lázaro recebia pelo seu trabalho de carpinteiro no Bairro Alto. Com os Jogos Olímpicos à porta, D. José de Mascarenhas, e excêntrico Marquês de Fronteira, que com Lázaro correra no Velo Clube de Lisboa, prometeu-lhe: «Vou dar-te condições de preparação, de higiene de vida e de alimentação que possam fazer de ti campeão olímpico...» Exigiu-lhe, apenas que deixasse o Benfica, passasse a correr pelo clube que criara para si: Lisboa Sporting Clube - e ele disse-lhe que sim. Foi já com a nova camisola Lisboa Sporting Clube que, a 1 de Abril de 1912, se lançou ao ataque do recorde mundial da meia-hora de Jean Bouin. Não o bateu, mas deixou Lisboa em euforia. E ainda mais quando, a um mês do início dos Jogos de Estocolmo, correu a Maratona Nacional em 2.52.08 horas, o segundo classificado só chegou 15 minutos depois. Quatro anos antes, em Londres, num percurso de 42.196 metros (que a partir e então haveria de ficar como distância uniformizada para a maratona), o americano John Haynes ganhara a medalha de ouro em 2.55.18 - para cortar a meta pelo seu pé, teve de receber nos últimos quilómetros três doses de brandy misturado com um miligrama de estricnina. Mais um e tê-lo-ia matado, se soube. A estricnina virou moda - e houve quem lançasse essa suspeita também: que talvez tenha sido o truque fatal de Francisco Lázaro. Eduardo Lázaro garante que não:
- É mais uma mentira. Basta só pensar: se a causa da morte fosse a estricnina, o médico ia omitir isso na autópsia? Claro que não. Também tenho documentação que fala dos relatórios médicos que estão nos arquivos do Comité Olímpico Sueco. Todos eles são categóricos no que afirmam: que Francisco Lázaro morreu vítima de insolação, não morreu por outra coisa qualquer. Ou seja, nesses relatórios só se fala da insolação, nunca se fala de estricnina, se sebo, de emborcações..."
Entrevista de António Simões, a Eduardo Lázaro, in A Bola
Mais uma de muitas histórias que passam anos a serem dadas como verdades absolutas!
ResponderEliminarObrigado por estas verdades!
Olá! Poderia me informar o link dessa Entrevista no Jornal A Bola?
ResponderEliminarNão tenho link.
EliminarA entrevista saiu na versão papel do jornal, não tenho acesso à versão online.
Transcrevi o artigo para o blog.
Abraços
Boa noite,
ResponderEliminarPor acaso alguém tem o contacto do neto? Seria para um trabalho escolar. Obrigado