"Aos 36 anos, em New Jersey, Eusébio faz um golo fantástico, de pontapé de bicicleta. Antes venceu em Alvalade o Sporting, comandado pela última vez a equipa do Benfica num jogo de homenagem a Carlos Lopes.
Tive a sorte de escrever muito sobre Eusébio. Tive também a sorte de ler muito sobre Eusébio, de ouvir muito sobre Eusébio, de ouvir o próprio Eusébio.
Publiquei dois livros sobre ele que foram uma espécie de presentes. Foi certamente maior a minha satisfação em oferecer-lhos do que a dele em recebê-los.
Busco na «Viagem em Redor do Planeta Eusébio» alguns dos momentos finais da sua carreira extraordinária. Assim como forma de encerrar Janeiro, mês de Eusébio, um ano após a sua morte, o ano em que completaria 73 anos.
E que encontro?
Um Eusébio triste.
À beira de um ponto final. Um ponto final cada vez mais final...
Eusébio em Tomar, com António Simões. 75 contos por mês para cada um, diz-se.
José Maria Barbosa, dirigente do União de Tomar, não confirma as verbas. Mas também não as desmente. Eusébio e Simões foram oferecidos ao clube por um grupo de amigos...
Em 1978, o União de Tomar jogava na II Divisão. Sonhava em regressar à I, de onde caíra na época anterior. Eusébio viaja pelo país, de autocarro.
Joga na Covilhã e enche o estádio. Deve ter-se recordado da sua chegada à Metrópole, dezoito anos antes, e da viagem que fez com o Benfica, ainda sem poder jogar, ainda sem roupa que lhe minorasse o frio da serra no Inverno português.
Eusébio ainda vai a tempo de marcar dois golos na II Divisão. Mas já não corre o risco de aceitar o convite do seu velho companheiro de equipa, Malta da Silva, para jogar no Benfica de Castelo Branco.
Os parêntesis: devagarinho, mas fecham-se. A gente lê, escuta, revê os momentos, e compreende. De certa forma, compreende.
Eusébio perdido na confusão absurda do futebol das Américas: as marjorettes, as flâmulas, as bandas, os instrumentos de sopro, as mascaradas. Mas Eusébio também no balneário, com os camaradas de equipa, escutando o treinador, sentido a relva, o prazer da bola nos pés.
Futebol e Eusébio são quase sinónimos: na América, o futebol era diferente, mas futebol apesar de tudo.
Eusébio: «No Toronto Metros-Croatia, na véspera da final do campeonato, eu estava com um problema no pé e sem condições para jogar no dia seguinte. Estava deitado no meu quarto, batem-me à porta, era a equipa toda para me pedir para jogar. Disseram "Eusébio, desde que o senhor é o 'capitão', nunca mais perdemos um jogo. Amanhã é a final e o nosso 'capitão' não joga!?" Respondi-lhes que não podia ser, que estava cheio de dores, que ganhariam na mesma sem mim mas, quando chegámos ao vestiário e vi aquele ambiente de desânimo, toda a gente calada, com ar de 'funeral', disse por minha vez: 'Bom! Que não se perca por minha causa. Vamos lá para dentro, vamos a eles!' Fomos. E ganhámos. E marquei o primeiro golo. É isto que me faz feliz!»
A gente compreende, de certa forma a gente compreende.
«Eu jogo sempre a sério!»
Esse livro que escrevi não é só feito de letras: é som e imagens.
Não é apenas para ser lido: é para ser ouvido e visto.
Sentem-se, portanto, e vejam: vou agora transmitir dois dos últimos momentos da carreira de Eusébio. Quadros irretocáveis que poderemos pendurar nas paredes brancas da aldeia da nossa memória.
Estádio de Alvalade: festa de homenagem a Carlos Lopes, o medalha de prata dos 10.000 metros dos Jogos Olímpicos de Montreal.
Estádio de Alvalade: mais de 40.000 pessoas.
Eusébio com a camisola do Benfica. Ele não o sabe ainda, mas é a última vez que vestirá a camisola do Benfica. Ele tem ainda a esperança, viva, de voltar a jogar pelo Benfica nos grandes jogos do campeonato, quem sabe se na sua Taça dos Campeões...
Na cabine, antes do jogo começar, pede a Mortimore para usar da palavra. E diz:
- O futebol, para mim, nunca pode ser uma brincadeira. Eu jogo sempre a sério! E mais: não gosto de perder! Venham comigo, vamos ganhar mais este jogo!
Ganharam. Logo de entrada, o Benfica faz dois golos; faria ainda mais um, contra outro do Sporting.
É o último jogo de Eusébio com a camisola do Benfica: vence em Alvalade por 3-1.
A História raramente é injusta para com os seus filhos dilectos.
Roosevelt Stadium, em Neu Jersey: o New Jersey Americans recebe o Indiana Daredevils.
Eusébio joga com a camisola do New Jersey Americans. Tem 36 anos.
O New Jersey Americans vai perder por 2-3, mas isso não é muito importante.
Estamos na segunda parte: há uma bola que vem da direita e sobrevoa a área do Indiana Daredevils; alguém a corta de cabeça para a frente e Eusébio está lá, no local para onde a bola se dirige; sem tempo para se virar, para dominar, Eusébio voa; voa de costas, como se tivesse, por um passe qualquer de mágica, desfeito o poder imenso da gravidade; por segundos está parado, em segundos as suas pernas multiplicam-se sobre a sua cabeça, em segundos está consumado o seu pontapé de bicicleta, insubmisso, imperdoável.
Golo!!! O último grande golo de Eusébio.
Desmond Hackett, jornalista inglês, chamou-lhe um dia «Black Panther». A «Pantera Negra»: o nome pegou. Nenhum outro, aliás, lhe ficaria tão bem. Vejam as fotos: os seus movimentos plásticos, elegantes, intuitivos. Uma «Pantera Negra» que persegue a bola e à qual a bola não foge nunca.
Eusébio: talvez não seja um nome e sim um adjectivo.
Eusébio da Silva Ferreira.
O seu nome tornou-se tão grande que merecia ocupar mais espaço do que o de um parágrafo."
Afonso de Melo, in O Benfica
isto é bonito que dói
ResponderEliminar