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domingo, 26 de outubro de 2025

Tudo o que (não) convém dizer sobre a multipropriedade de clubes


"Multi-Club Ownership ou, no jargão do futebol internacional, MCO. Três letrinhas apenas e um conceito que em português se traduz por multipropriedade de clubes. Eis o tema do momento para muitos apaixonados do desporto-rei.
As multinacionais de futebol vêm para melhorar o jogo ou são a sua maior ameaça? Este foi um dos temas em debate no recente Portugal Football Summit, organizado pela FPF.
Num modelo de organização desportiva piramidal — que vigora na maioria dos países — o objetivo dos clubes da base passa por ascender ao topo, ganhar títulos e participar em competições continentais.
Exemplos em Portugal, para mais fácil entendimento: o (renascido) Estrela da Amadora iniciou caminhada dos distritais até à I Liga. Tem-se mantido pelo topo e, naturalmente, alimenta a esperança de conseguir um lugar que dê acesso à UEFA Europa League. Mais a norte, o SC Braga com lugar cativo nas provas da UEFA sonha, agora, com o dia em que será campeão nacional. Da mesma forma, adeptos de Benfica, FC Porto e Sporting (ordem meramente alfabética), alimentam a esperança de mais cedo que tarde erguerem de novo um troféu na Europa.
Clubes de dimensão intermédia tornaram-se hoje alvo privilegiado de MCOs por funcionarem como plataformas de desenvolvimento e de arbitragem salarial dentro de redes multinacionais, pois o interesse económico destes clubes estende-se à capacidade de valorizar ativos (jogadores) dentro da rede de clubes.
Há dois tipos de MCO: o vertical, no qual toda a estrutura de clubes é programada para melhorar o desempenho do topo; e o horizontal, no qual todos os clubes da holding estão em (suposto) pé de igualdade. O primeiro tende a gerar dependência hierárquica; o segundo, a mascará-la sob retórica de igualdade entre clubes.
Sabendo que a lógica do desporto é a de superação, e que cada sucesso é sempre um degrau para subir mais, muitos acabam tentados pela ideia de fazer parte da cadeia de uma multinacional de futebol. É mais provável, desta forma, receber alguma estrela que precise de desenvolver-se e, assim, aumentar as probabilidades de marcar mais uns golos por época.
O Girona, em Espanha, beneficiou da inclusão no City Group para melhorar índices competitivos. E acabou por chegar à UEFA Champions League, onde, para alívio da UEFA, não foi longe. Afinal de contas, que seria da integridade da Champions caso Girona e Manchester City se defrontassem? Ou se um deles tivesse de ser impedido de avançar, mesmo que por mérito desportivo alcançasse passagem a fase em que pudesse cruzar-se?
Até ao momento, a UEFA vai encontrando respostas para estas questões, aplicando o chamado test of independence, ainda que de forma pouco consistente — e para alívio de todos — ainda não houve um caso realmente grave de ameaça à integridade da competição. Mas qual o impacto dos riscos entre aqueles que são a base de sustentação do jogo?
A questão não é apenas de perceção ética, mas também de valor económico: se os resultados parecerem condicionados por relações societárias, a atratividade comercial e o valor do produto futebol diminuem.
Como é que um adepto de um qualquer Girona olha para a possibilidade de ser excluído da Champions no dia em que forem aplicadas regras mais restritivas? O risco, note-se, é idêntico para o SC Braga, que tem participação na SAD dos donos do PSG, para o Vitória de Guimarães, que integra o grupo do Crystal Palace, para o Rio Ave que é irmão mais pequeno do Nottingham Forest, etc, etc.
Quanto maior for o sucesso de um grupo de multipropriedade de clubes, mais trágico poderá ser para a indústria. Façamos o exercício de imaginar que um investidor compra clubes em Portugal, Espanha, Itália, Grécia, Alemanha, França, Inglaterra, Bélgica, Países Baixos e Inglaterra. Imaginemos ainda que em determinado ano tudo corre tão bem que cada um dos seus clubes é campeão dos respetivos países.
Os alarmes soariam na UEFA, na FIFA, e em cada um de nós: provavelmente, 9 desses clubes seriam impedidos de participar na UEFA Champions League… 8 na Europa League e, provavelmente, 7 seriam afastados da Conference League.
Mesmo um cenário de dois ou três clubes do mesmo grupo apurados simultaneamente para competições europeias já seria suficiente para gerar distorção sistémica e abalar a credibilidade do sistema.
A verdadeira vocação do desporto europeu seria ferida de morte. Afinal, chegar ao topo da pirâmide traria o mais amargo dos sabores possíveis… Qual o impacto da frustração dos adeptos? Em que medida a credibilidade da competição seria afetada? E quem continuaria a acreditar no futebol como campo para a superação — aquele desporto incrível em que tudo é possível?
Não se procura neste texto apresentar soluções — até porque todo o cuidado é pouco na hora de abordar este tema. O tempo é de refletir, discutir o assunto até à exaustão, traçar cenários e testar soluções. Tudo para que seja ainda possível evitar danos irreparáveis para a indústria.
É legítima a preocupação de que muitos dirigentes se agarrem ao MCO sem ponderar as consequências potencialmente devastadoras do mesmo, isto a troco de garantir meia dúzia de anos de maior desafogo e de desenvolvimento.
Importa também reconhecer o risco cultural: o MCO altera a perceção de identidade e pertença dos adeptos, podendo gerar desafeição e quebra de legitimidade social dos clubes, sendo Portugal, como mercado intermédio, particularmente vulnerável a estas dinâmicas. A regulação deve, pois, antecipar problemas e não apenas reagir a crises.
Como tudo na vida, talvez a solução não passe pela proibição, mas sim pela criação de regras rigorosas, e por regulação forte e independente, convocando para o debate a separação entre organização e regulação das competições e a criação de uma autoridade externa de regulação independente com responsabilidades na regulação deste mercado, retirando lições do que se implementou no Reino Unido.
Provavelmente será possível proibir multi-propriedades na mesma confederação continental (e rezar para não se encontrarem todos no Mundial de Clubes) ou por estabelecer critérios claros sobre a participação de equipas do mesmo grupo empresarial na mesma prova (tal como as federações nacionais não permitem equipas B nas Taças ou na mesma divisão da equipa principal).
Ainda assim, regulação forte significa regulação mensurável, exequível e auditável: i) teste de influência comum que some participações, acordos de voto e financiamento; (ii) limites e cool-off periods a transferências/ empréstimos intragrupo; (iii) auditoria independente e divulgação pública de transações com partes relacionadas; (iv) obrigação de constituição de blind trusts ou estruturas fiduciárias equivalentes sempre que acionistas detenham interesses em mais de um clube, garantindo separação efetiva de gestão e decisões desportivas; (v) golden share estatutária para matérias de integridade e veto a mudanças de controlo; (vi) sanções proporcionais e previsíveis. Sem isto, os ganhos de eficiência do MCO transformam-se em renda oligopolística e erosão da incerteza competitiva que dá valor ao produto futebol.
Se há verdade universal que bem pode aplicar-se a este caso, é que não há maior perigo do que avançar cheio de certezas, sem questionar o que pode correr mal.
No caso da multipropriedade de clubes há vantagens inquestionáveis, mas os riscos falam alto. Sem regras robustas e independência efetiva, a multipropriedade poderá transformar o futebol europeu numa liga de filiais, e não de clubes."

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