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terça-feira, 23 de setembro de 2025

A comichão que fazem Pichardo e Nader, os portugueses de ouro


"A pior cegueira está na que é auto-imposta, para uma pessoa ver apenas o que lhe convém. Se existe vulgaridade no atletismo que pratica o extraordinário, ela mora no traje e nos costumes da vitória: a licra do atleta pinta-se com as cores do país, o nome de quem, e do que representa surge em grande, estampado no peito ou no tronco, e poucos segundos tarda, acabada a prova, a enrolar-se na bandeira da sua nação como um herói a exibir a sua capa, envolto nela, para todos verem de onde vem.
Não importam latitudes. Quando se ganha é quase sempre assim, os vitoriosos fervem em exuberância ao mostrarem a sua proveniência e a descrição assenta em Pedro Pablo Pichardo e Isaac Nader, um fresco de se tornar bicampeão do mundo do triplo salto, nos Mundiais de Tóquio, onde o outro foi o melhor do planeta a correr os 1.500 metros. Nos seus pescoços ficaram penduradas medalhas de ouro, mal sustiveram o peso do metal tocou o hino nacional no estádio, ambos recompensados pelo quão se esfolaram, esmifraram e sacrificaram para vencerem e com eles Portugal.
Tenham-no visto, ou não, enquanto cumearam a sua existência desportiva, houve quem, refastelado no sofá ou na esplanada, acéfalo a constatar os feitos de Pichardo e Nader no telemóvel a descansar, com tremendo esforço, nas suas mãos, se tenha indignado ao ver a cor da pele ou a ler os seus apelidos. Aberta a conduta a céu aberto que são as redes sociais, decidiram comentar as publicações feitas pela Federação Portuguesa de Atletismo a enaltecer as conquistas: “Português só no papel”, “Isto está cheio de ‘novos portugueses’”, “Afinal, os refugiados também têm coisas boas” ou “Era melhor que corresse para o país dele”. Eis o esgoto do racismo a jorrar um pouco do seu nauseabundo conteúdo.
Este tipo de tolices, algumas denunciadas pelo Grupo de Ação Conjunta contra o Racismo e Xenofobia, visaram, no exemplo do triplo-saltista, um atleta nascido em Cuba e naturalizado português desde 2017, com vida assente em Setúbal e desde março, devido a troca clubística, com viagens ocasionais a Itália. No caso do meio-fundista, Nader nasceu em Faro, é algarvio de gema, filho de mãe portuguesa e pai marroquino, está ligado ao Benfica e faz poucos anos residente em Espanha, com a namorada e também atleta Salomé Afonso, para ambos treinarem. Isto é contexto, pouco importa para esta estirpe da idiotice humana, a mais incurável das pandemias: julgar as pessoas pela aparência, a cor da pele.
Tais comentários têm aparição cíclica, curiosamente saem da toca quando os atletas ganham, aí é que parecem provocar maior comichão, quando se equipam à Portugal, fazem da bandeira de Portugal seu lençol e dão destaque a Portugal. Esses laivos de discriminação são larga minoria, um caso pode ser advogado de que não mereceriam atenção de modo a não lhes dar palco, mas o sem sentido infeta, sabemos como os algoritmos se banqueteiam com polarizações e mensagens que acicatam o ódio, há que contestá-los, irradiar um pouco de luz sobre a entrada das grutas.
Rescreve-se que Isaac Nader nasceu em Portugal, cita-se o próprio quando disse não ter “qualquer tipo de ligação a Marrocos”, onde nasceu o pai, outrora futebolista do Farense, nos tempos em que conheceu a mulher portuguesa. “Fui criado e vivi a minha vida inteira em Portugal. Poderia pedir a dupla nacionalidade, mas não quero, não me sinto marroquino, nunca fui, nem nunca serei”, afirmou, há dois anos, à RFi, rádio francesa de emissão no estrangeiro, em vários idiomas, um deles o português. E assim também salienta-se o que é curioso.
Foi a um microfone vindo do país para onde mais de um milhão de portugueses emigraram, no século passado, quando a pobreza e o analfabetismo grassavam em Portugal, que o atleta constatou o óbvio: “Eu, como português, revolta-me um pouco porque não sou menos português do que qualquer cidadão que tenha nascido em Portugal, sou igual a todos - e aqueles que não nasceram, a partir do momento em que lhes atribuem a nacionalidade, são portugueses, descontam igual aos outros, pagam as suas contas, não são cidadãos diferentes daqueles que dizem ser portugueses.”
É o caso de Pedro Pablo Pichardo, nado em Cuba e de lá fugido para Portugal, com o equipamento a verde e vermelho se fez campeão olímpico em Tóquio (2021), conquistou o primeiro ouro mundial em Eugene (2023) e o revalidou agora, no Japão, onde aproveitou a atenção para em bom português, cheio de trejeitos de “epá” e tudo, pedir maior atenção, outro investimento, para atletas portugueses que não ele. “O atletismo é das modalidades onde, no nosso país, infelizmente temos pouco apoio. Dão-nos um bocadinho, olham para nós e pensam que já é muito”, lamentou, jamais falando no singular quando o tema foi o apoio a quem faz vida disto.
No palco conquistado por ele por ocasião do seu ouro, no breve tempo de que dispôs em canal aberto, na antena pública (falou à RTP e Antena 1), escolheu pluralizar: “Por acaso não tenho tantas dificuldades pelos contratos e resultados que tenho, mas seria bonito que o Governo, o IPDJ, a Federação e o Comité Olímpico de Portugal estivessem aí para nós, que nos apoiassem como os profissionais que somos.” Com umas quantas frases, por mais inconsequentes que venham a ser, chamou a atenção para a magra manta de apoios que o país futebolcêntrico tricota para todo o restante desporto. E por mais umbiguista que possa ser no seu quotidiano, só ao dizer “nós” e ao escolher falar, Pichardo certamente fez mais pelo desporto nacional do que qualquer autor de comentários desmiolados nas redes sociais.
Como disse Isaac Nader, “são pessoas que não têm mais nada que fazer na vida do que irem para o Facebook mandar esse tipo de piadas”, simpático no uso do eufemismo. Deviam, aconselhou ele, “perder um pouco mais de tempo e preocupação com as suas famílias, com a sua vida”. Ou como explicou Rochele Nunes, judoca nascida no Brasil e com Mundiais e Jogos Olímpicos disputados por Portugal, ao reagir aos devaneios racistas: “No meu currículo desportivo não consta nada sobre o local onde nasci. Vai estar sempre o resultado e a bandeira do país ou clube que defendi.” Deveria ser de simples compreensão, mas a cegueira seletiva embacia bastante, é coisa maldita."

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