Últimas indefectivações

domingo, 18 de setembro de 2022

Era uma vez um torcedor


"João tem apenas nove anos. Nem sequer pregou os olhos na madrugada anterior, tamanha era a ansiedade que percorria cada centímetro do seu pequeno corpo em formação. Domingo era dia de bola. A sua tão sonhada estreia na arquibancada.
Fez questão de guardar a mesada daquele mês. Levou comida para a escola para economizar toda e qualquer moeda. Quis pagar o próprio bilhete. Aquela satisfação única de chamar algo de "meu" e flertar com a ainda distante maioridade.
Acompanhado do pai, Francisco, apanhou transporte público boas horas antes de a bola rolar. Queria sentir cada segundo da atmosfera de um grande jogo, um espetáculo que outrora parecia distante. Guardar com carinho na memória os pormenores de uma data marcante.
Assim que pisou fora da estação, foi prontamente recebido com gás de pimenta e balas de borracha. Confusão generalizada. Não sabia o que fazer diante do despreparo da polícia para conter uma briga agendada de torcedores.
Não pôde desfrutar um belo sandes de pernil na Roulote do Zé, beber uma Coca-Cola quente e, quem sabe, trocar cromos do Mundial com outras crianças. Assustado, correu diretamente para dentro do recinto.
Quando estava a um passo da sua cadeira, foi abordado por três homens bêbados. Entre berros e ameaças, acabou obrigado a tirar a camisa comprada com muito suor de trabalho pela mãe Nazaré. Era presente de aniversário.
Vestia as cores do seu clube do coração, mas não havia adquirido ingresso para o setor visitante. O terreno era inóspito. Os olhos ameaçavam encher de lágrimas enquanto o pai tentava, em vão, conversar com os agressores. De nada adiantou. Em tronco nu ali ficou.
Só pensava em voltar para casa. Tinha vergonha de pedir para ir embora. Resolveu ficar e assistir aos seus ídolos. Ronaldo, o maior deles, um craque brasileiro de mão cheia, era preto como ele. Havia então ali uma identificação. Química pura. Representatividade.
Mal o juiz apitou o começo da partida, os xingamentos começaram: "Preto!". "Macaco!", "Favelado!", "Volta para a tua terra", entre outros. Não entendeu o motivo de tamanha perseguição contra um jogador que era a essência do esporte que tanto amava.
Fechou os olhos e tapou os ouvidos durante quase todo o jogo. Teve tempo de sobra para refletir diversas vezes o que poderia ter feito com o dinheiro que economizou. Comprar um tênis ou levar os pais para jantar fora, talvez.
Houve muitos obstáculos, mas o seu time ganhou por 1-0. Pouco importou, até porque perdeu o lance do gol. Angustiado, apressou o passo para sair dali o quanto antes. Teve, entretanto, que esperar. Havia uma multidão sedenta por vingança para dispersar.
Já na rua, mas ainda no entorno do estádio, ficou à espera da boleia de um amigo da família. De repente, ouviu um estrondo. Correria. Pânico. Um carro com uma mulher ao volante e duas crianças no banco traseiro foi apedrejado.
A gota d'água. Começou a chorar. Colocou para fora toda a angustia, a dor e o sofrimento de um dia que tinha tudo para ser especial. Largou a mão do único que o protegia e desatou a correr. Sem destino.
Ofegante e desnorteado, atravessou a rua sem verificar os dois lados. Quase foi atropelado. Foi salvo por uma torcedora rival, uma simpática senhora dos seus quase 80 anos. Desabafou então no colo de Maria: "Obrigado, mas não volto nunca mais"."

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