"Quinhentos e um dias. Por força de uma pandemia que infecta e mata milhares diariamente eu e tantos fomos obrigados a ficar em casa e assistir pela TV a peladinhas glorificadas. A jogos nuns estádios vazios em que 22 jogadores vestiam os seus equipamentos, compareciam no relvado na hora acordada e jogavam para câmaras de TV, sabendo que por força da tecnologia todo o seu esforço não seria visto apenas pelas vazias cadeiras de um estádio abandonado. Repito, não foi futebol, foram peladinhas glorificadas. O futebol tornou-se "futebol", apenas ligado à máquina artificialmente para que os contratos televisivos e publicitários se mantivessem intactos e para que os viciados no jogo não perdessem a sua droga. E bem, que já tinham bastado os 3 meses em que realmente o futebol esteve parado.
Mas quinhentos e um dias depois, um ano e cinco meses depois...o regresso. O retomar do ritual: Combinar nos grupos de whatsapp. Comprar o bilhete. Vestir a camisola. Colocar o cachecol nos ombros. Entrar no carro com destino ao estádio. Estacionar. E onde antes o encontro era nas roulotes, agora passou a ser na esplanada de um restaurante. Cenário diferente, mas o mesmo ambiente. Saber que durante umas horas antes do jogo vamos estar de cerveja na mão a falar com amigos de táticas, memórias, presidentes, planos, treinadores, a vida, jogadores, família, o vírus, comida, eleições, séries de TV, rivais, música, deslocações, os piores jogadores do clube, os melhores jogadores do clube...de tudo e mais alguma coisa e entretanto falta 1/4 de hora para o jogo começar e é altura de ir para o estádio. Percorrer corredores familiares, a visão do relvado, subir a escadaria, esticar o cachecol, entoar o hino e entretanto a bola rola e o estado de espírito alterna entre o silêncio do nervosismo, o protesto da irritação e as palmas e o cântico do contentamento.
O árbitro apita para o final e o Benfica vence. Levantar da cadeira e sentir que após quinhentos e um dias uma parte importante da vida está de regresso. Falta o reencontro com os amigos, nova ida para a esplanada para mais cerveja, mais conversas, mais outro reencontro com novos amigos, mais uma cerveja, mais uma conversa já no meio da rua e entretanto são 2 da manhã. Chegar às imediações do estádio às 14h da tarde, sair às 2h da manhã. Doze horas a Benficar é um bom medidor das saudades que eu e tantos tínhamos disto. Nós, os últimos dos Moicanos, os índios que ainda vão ao estádio.
Há uma reflexão a fazer e que ninguém está a fazer: mesmo depois de tanto tempo com os adeptos afastados do futebol, mesmo com as lotações reduzidas a 33%, os bilhetes não estão a esgotar. Nem na Luz, nem em lado nenhum. Já houve um jogo na Primeira Liga com apenas 500 curiosos. Cada vez mais as pessoas resolvem assistir pela TV e parece que ninguém se preocupa. Pior, parece que fazem de propósito para acelerar a queda do futebol enquanto passatempo de famílias e espetáculo ao vivo. E qualquer dia até enquanto espetáculo de TV. O inenarrável "cartão do adepto" é o mais recente exemplo. Uma burocracia que obriga ao gasto de mais 20 euros, que proíbe os jovens nos estádios, que ataca a dignidade dos adeptos, que presume o crime ainda antes de qualquer crime, que coloca uma estrela de David nas suas palas e que resolve absolutamente zero.
Tomaram todos os membros dos grupos organizados como criminosos e patetas e agora são eles que gozam com os políticos. Deixam os sectores do cartão e mudam-se para o sector ao lado. Queriam enjaulá-los, separá-los dos restantes adeptos e agora ainda mais misturados estão. Com a lamentável excepção dos Super Dragões, tem havido um boicote total ao cartão do adepto e é isso que fará esta miserável experiência morrer. Mas o mal já está feito: Mais cadeiras vazias, mais arma de arremesso para os dirigentes: adeptos do Vizela querem ir a Alvalade? Não vão porque o Sporting só vende a quem tem cartão. Adeptos do Sporting querem ir a Braga? Bilhetes a 93 euros. Os dirigentes matam o futebol e qualquer dia já ninguém vai aos estádios. Vêem pela TV? Qualquer dia nem isso. Quem quer ver ad eternum um espetáculo com jogadores medianos e cadeiras vazias?
Contra isto tudo, os índios, os últimos dos Moicanos, continuam a tentar ir à bola. Uma espécie em vias de extinção que aguarda a semana à espera do dia de vestir a camisola, colocar o cachecol aos ombros, ir em direção ao estádio (às vezes com duas, três, seis horas de viagem), passar a tarde a falar de tudo e mais alguma coisa, subir a escadaria, entoar o hino e sofrer, gritar, chorar, protestar, amar o futebol.
O problema? O problema é que segundo o último census, já só sobram 3000 Moicanos nos EUA."
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