"Os indicadores de prática de exercício físico (EF) e actividade desportiva (AD) em Portugal, comparativamente aos homólogos europeus, são preocupantes, com níveis de sedentarismo de 64%, tendência que tem vindo a piorar geracionalmente (dados do Euro barómetro). Urge, por isso, a generalização inclusiva da prática do EF e da AD que depende, além de outros factores, da necessidade de processos mais qualificados de diagnóstico num quadro variado de condições existentes (pessoas normais e pessoas com condições etiológicas e fisiopatológicas diferenciadas) para que a prática possa ser um importante factor na prevenção e tratamento das doenças não transmissíveis, como as doenças cardiovasculares, respiratórias, oncológicas e mentais e ainda a diabetes.
A qualificação dos recursos humanos assume vital importância, uma vez que o contexto profissional de aconselhamento e prescrição especializada é cada vez mais abrangente, face ao maior reconhecimento dos efeitos benéficos do EF com impacto na saúde das pessoas. Esta qualificação teve um impulso determinante a partir do momento que passou a estar inserida no âmbito da Formação Profissional, desde 1999.
A publicação do enquadramento legal subsequente (DL 271/2009; Despacho nº 5373/2011 de 19 Março; Lei 39/2012 e 40/2012 de 28 de Agosto) permitiram: (1) o reconhecimento da actividade profissional de treinador/a de desporto (TTD) e a de técnico de exercício físico (TEF); (2) o reconhecimento legal das entidades formadoras para além das organizações desportivas públicas e ou/privadas com ou sem Utilidade Pública Desportiva (UPD), entre as quais se destaca o Ensino Superior; (3) a existência do estágio profissionalizante tutorado na formação de certificação de nível; (4) a obrigatoriedade de realizar formação contínua para renovação do título profissional e para a progressão na carreira.
Em ambos os casos, TTD e TEF, a obtenção do título profissional pressupõe um modelo de requisitos repartidos entre a formação superior (licenciatura na área do desporto), qualificações profissionais reconhecidas nos termos da Lei e no âmbito do sistema nacional de qualificações, por via da formação ou através de competências profissionais adquiridas e desenvolvidas ao longo da vida, reconhecidas, validadas e certificadas (RVCC).
Em fase de discussão dos diplomas legais que regem, quer o regime da responsabilidade técnica pela direcção e orientação das actividades desportivas desenvolvidas em instalações desportivas que prestam serviços desportivos na área da manutenção da condição física (fitness), designadamente ginásios, academias ou clubes de saúde (healthclubs), quer o regime de acesso e exercício da actividade de TTD merecem algumas reflexões.
Existe, objectivamente, um desfasamento entre o reconhecimento das qualificações dos recursos humanos (RH) e os níveis de enquadramento à luz do Quadro Nacional de Qualificações, QNQ, (DL nº 396/2007, de 31 de dezembro, e Portaria nº 782/2009, de 23 de Julho) e o Quadro Europeu de Qualificações, em manifesto desalinhamento com outras áreas de intervenção profissional (enfermagem, a fisioterapia, a nutrição e a medicina).
Quer o caso do TTD quer o caso do TEF, e se se tiver em conta que as actividades contempladas nos perfis funcionais estabelecidos (Lei nº 39/2012 e 40/2012), se esgotam nos níveis 4 e 5 do QNQ, para os quais é apenas necessária a detenção do ensino secundário. Já as actividades desenvolvidas pelos detentores de Licenciatura, Mestrado e Doutoramento em áreas afins e/ou complementares com as ciências do desporto, deveriam enquadrar-se, de acordo com a Portaria nº 782/2009, nos níveis de qualificação, educação e formação 6, 7 e 8 do QNQ, facto que não se verifica.
No caso do TTD este problema foi parcialmente resolvido com a possibilidade de aos itinerários curriculares académicos específicos (1º ciclo; 2º ciclo e 3º ciclo, conferentes da licenciatura, mestrado e doutoramento) poder existir, mediante justificação comprovada, uma correspondência com os níveis II e II e futuramente IV da formação de treinadores.
No caso dos TEF e porque a carreira não pressupõe níveis de progressão de acordo com as especificidades e natureza de intervenção, existe uma posição clara de algumas Instituições de Ensino Superior (IES) e da associação portuguesa de fisiologistas do exercício (APFE) para resolver esta iniquidade, que passa pela alteração à lei 39/2012 de 28 de Agosto, propondo basicamente:
1. A criação de uma nova carreira profissional, para além da de TEF cuja habilitação de acesso seja, no mínimo, a licenciatura adequada (Ciências do Desporto), sem prejuízo de outra formação ao nível de pós-graduação, com uma estreita articulação com profissionais de outras áreas do saber, nomeadamente médicos, psicólogos, enfermeiros, nutricionistas e fisioterapeutas;
2. O aproveitamento da regulação da profissão de fisiologista do exercício, de modo a corrigir a discrepância existente entre os níveis de educação, formação e qualificação e respectivos descritores, estabelecidos no QNQ, e os requisitos de acesso e as competências funcionais do título profissional de TEF, de tal forma que o fisiologista de exercício e fisiologista do exercício especialista pressuponha, pelos conhecimentos, aptidões, qualificação e formação exigidos, o enquadramento, respectivamente, nos Níveis 6 e 7 do QNQ.
Compreende-se que o acesso à profissão de TEF seja permitido a titulares de cursos profissionais e a titulares de cursos superiores, tal como a referida Lei prevê, considerando as diferenças decorrentes da formação profissional e da formação superior, nomeadamente através do reconhecimento e atribuição do nível de qualificação de acordo com o respectivo grau de formação académica.
Coisa diferente, porém, é exigir carreiras distintas para conteúdos funcionais complementares e, para além disso, assumirem-se designações pouco consensuais na comunidade científica, facto que levanta dúvidas pela incongruência conceptual (1) e dificuldade de operacionalização (2).
Com base nesta proposta, pode-se inferir que a inexistência de um quadro legal que preveja e discipline a actividade do licenciado com formação superior, num contexto de: i) intervenção multidisciplinar na prescrição, supervisão e acompanhamento do EF e AD à população saudável e pessoas portadoras de patologias não impeditivas e/ou de doenças não transmissíveis, incluindo as que tenham condições clínicas ou apresentem risco elevado; e ii) prevenção de factores de risco, lesões desportivas e optimização do rendimento desportivo, seja unicamente assumido pelo fisiologista do exercício?
Porquê o fisiologista do exercício e não o prescritor do exercício, o metodólogo do exercício e especialista em exercício, o “biomecanicista” do exercício, ou mesmo por bondade legislativa, o TEF?
Ou será que foi a necessidade de criar um quadro legal regulador da profissão e da actividade do fisiologista do exercício, procurando reconhecer e consagrar um correspondente título profissional (estabelecer o seu conteúdo funcional, os deveres, as condições e os requisitos habilitacionais académicos de acesso ao título), que provocou a legítima discussão sobre a disparidade entre as habilitações académicas e o título profissional no âmbito do QNQ?
E o que se seguirá, se assim for?
A par da alteração das condições de realização profissional, vem a obrigatoriedade da modificação, por parte das IES e do sistema cientifico e tecnológico nacional (SCTN), da matriz curricular e designação das unidades de ensino e graus dos cursos conferentes de grau em Portugal? E, já agora, quem será a instituição que irá regular o processo de certificação e adequação de itinerários curriculares das IES, a exemplo do que sucede com as Federações desportivas dotadas de UPD para o título de TTD?
Estamos a caminhar para mais uma deriva “conceptualista” e “corporativista” com a tentativa institucionalizada de “biologização” do EF e da AD, com a proposta de criação de uma nova classe profissional: “fisiologistas do exercício”. Se a preocupação, legítima, for a saúde das pessoas, reconhecendo a falha que a supramencionada lei (39/2012) possui em não incluir o diagnóstico e prescrição especializada de EF e AD, adaptados a pessoas com patologias não impeditivas e/ou doenças não transmissíveis, relativamente às quais o EF tenha um papel importante, quer em termos profiláticos e de prevenção então, mais do que se discutir a designação:
1. Porque não propor alterações no âmbito das competências, só realizáveis num quadro de formação superior, limitando a intervenção na prescrição do exercício físico, em populações com necessidades especiais e em espaços de fitness e saúde, a profissionais com formações pós-graduadas, mestrados e Doutoramentos na área especifica de intervenção?
2. E, ao ser assim, não obstante a disparidade que irá ser gerada com carreiras complementares em termos de qualificações necessárias (TTD e TEF), porque não requerer para os licenciados em ciências do desporto e Ed. Física o nível 6 do QNQ e para os pós-graduados o nível 7 do QNQ, desde que satisfeita a condição de contemplarem em cada um dos itinerários curriculares das IES as competências necessárias e suficientes para que esta equiparação seja possível?
3. E, ao ser assim, independentemente da existência de uma APFE, com maior ou menor influência “lobista” na esfera governamental, cuja pretensão cria engulhos conceptuais desnecessários à bondade da proposta, porque não se criam, entre os TEF, níveis de intervenção a que correspondem níveis de qualificação determinados (respeitando o QNQ) tal como existem nas cédulas de treinador desportivo (I a IV)?
Como exemplo, competiria ao nível I e II (níveis 4 e 5 QNQ) entre outros, o planeamento e prescrição aos utentes de baixo risco (sem factores de risco de doença cardiovascular, assintomáticos e sem doença crónica conhecida), sob coordenação e supervisão do técnico responsável, das actividades desportivas na área da manutenção da condição física (fitness) e a orientação e condução técnicas das actividades desportivas na área da manutenção da condição física (fitness) desenvolvidas nas instalações desportivas.
Competiria ao nível III e IV (níveis 6 e 7 do QNQ) entre outros, o diagnóstico e prescrição especializada de EF e AD adaptados a pessoas com patologias não impeditivas e/ou doenças não transmissíveis, relativamente às quais o EF tenha um papel importante, quer em termos profiláticos e de prevenção, quer como coadjuvante no tratamento.
O percurso profissional não pode ser compreendido, exclusivamente, como meio de obtenção de graus formativos numa perspectiva meramente funcionalista. O processo formativo deve fornecer instrumentos de qualificação e desenvolvimento de competências que possibilitem o exercício adequado da função, considerando as idiossincrasias dos níveis e contextos onde intervêm, fundamentais para a construção de uma imagem e de uma reputação, ambas percebidas como sustentação da credibilidade profissional e social que a actividade requer, independentemente do nível de prática e contexto de intervenção.
Modificar as competências do já legislado para melhor apetrechar os profissionais é uma preocupação determinante. Fazê-lo na estrita dependência e necessidade de corrigir discrepâncias existentes entre os níveis de educação, formação e qualificação e respectivos descritores, estabelecidos no QNQ, e os requisitos de acesso e as competências funcionais do título profissional de TEF nela regulados, salvaguardando o correto enquadramento e distinção enquanto carreira profissional nos níveis 6, 7 e 8 do QNQ, seria melhor ainda. Fazer depender tudo isto do reconhecimento e regulação legal das profissões e actividades do Fisiologista do Exercício e do Fisiologista do Exercício especialista, está profundamente enviesado e, acima de tudo, não contribui para a resolução de um problema."
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