"Há fenómenos que o futebol explica mal. No Brasil, país onde a paixão dita as leis e a paciência é uma virtude quase extinta, Abel Ferreira é uma “anomalia” que virou referência. Em 1.800 dias à frente do Palmeiras, o treinador português tornou-se o símbolo de algo que há muito o futebol brasileiro tinha perdido: continuidade.
Desde a sua estreia no banco do Verdão, a 5 de novembro de 2020, Abel tem mais tempo à frente do Palmeiras do que a soma de 16 dos outros 19 treinadores da Série A. E também mais tempo do que a soma dos dias dos três treinadores que estão há mais de um ano à frente dos seus clubes. A soma do tempo de trabalho dos 16 treinadores que estão há menos de um ano à frente de clubes do Brasil resulta em 1.677 dias. Abaixo de Abel Ferreira aparece Rogério Ceni, que se estreou pelo Bahia há 754 dias. Léo Condé (Ceará) completa o top-3 com 459 dias.
É um número que impressiona e um contraste que ilustra o caos instalado na cultura desportiva do país do futebol. O treinador português não é apenas uma exceção estatística, é um exemplo de como se constrói uma dinastia num ambiente instável.
O futebol brasileiro vive refém do imediatismo. O ciclo é conhecido: derrota, crise, demissão, esperança, nova demissão. O dirigente cede à pressão da bancada, da torcida e o projeto morre antes de nascer. Nesse cenário, Abel Ferreira criou no clube uma genuína cultura humanista, onde todos se sentem parte de um só corpo, de um só propósito. Conseguiu unir jogadores, staff e adeptos em torno de um ideal coletivo, onde o sucesso individual só faz sentido quando serve o todo que é grupo. Ergueu um modelo de sucesso que resiste ao tempo e aos humores das redes sociais. O segredo está na liderança. O português trouxe para o Brasil uma ideia europeia de gestão, baseada em planeamento, meritocracia e processos claros, mas adaptou-a à realidade emocional e imprevisível do futebol brasileiro. Nunca procurou ser brasileiro, procurou compreender o Brasil. E talvez seja aí que começa a sua vitória mais silenciosa.
Abel não fala só de tática. Fala de pessoas, de propósito e de identidade. Nos momentos de maior pressão, o seu discurso não é sobre o adversário, mas sobre o que a sua equipa pode controlar: atitude, coragem, concentração e sem medo de arriscar. A palestra ao intervalo no recente clássico contra o São Paulo, em que o Palmeiras perdia por 0-2 e acabou a vencer 3-2, é um retrato fiel da sua filosofia: recomeçar, acreditar, agir. Disse no balneário: Agora vamos tentar ganhar nós a segunda parte, ok? Vamos por tarefas, está entendido? É isto que temos de fazer agora. A primeira parte, meus amigos, 2-0 para eles. Agora, 0-0, vamos começar a segunda parte, ok? Ganharmos a segunda parte, um golo de cada vez. Precisamos de entrar com calma e fazer um golo só, para entrar no jogo outra vez. Depois, se Deus quiser, ir à procura do segundo com calma. É isto que temos de fazer. E manter o controlo cá atrás, disse o técnico aos jogadores.
A lição foi colocada em prática no segundo tempo e com sucesso, já que Vítor Roque (70'), Flaco López (74') e Ramon Sosa (89') operaram a reviravolta.
Quando chegou em 2020 ao Allianz Parque, Abel foi recebido com desconfiança. O Brasil ainda vivia sob o eco do efeito Jorge Jesus, e muitos viam no novo português apenas uma tentativa de repetir a fórmula. Mas Abel rapidamente provou ser de outro molde. Rígido no trabalho, emocional no discurso, obsessivo nos detalhes e intransigente na disciplina, o seu estilo chocou primeiro e conquistou depois.
Hoje, o respeito é unânime. Dentro e fora do clube. A gestão do grupo, a clareza das ideias e a capacidade de extrair o máximo de cada jogador transformaram o Palmeiras numa equipa competitiva, regular e mentalmente forte. Não é o talento que explica tudo; é a organização, o foco, a exigência e a capacidade de gestão entre vendas e compras a bem da sustentabilidade e consolidação financeira do clube. Nos últimos cinco anos, o Palmeiras perdeu jogadores fundamentais, mas manteve o padrão. Onde outros viam problemas, Abel viu oportunidades para reinventar. E reinventou.
Sob o seu comando, o Palmeiras não venceu apenas títulos, dez troféus em menos de cinco anos, como também valorizou talento jovem de forma exemplar. Abel soube lançar, rentabilizar e proteger promessas. Foi assim com Endrick, hoje no Real Madrid (os merengues pagaram ao Palmeiras 35 milhões de euros fixos, com a possibilidade de mais 25 milhões em variáveis), com Estevão, contratado pelo Chelsea por 45 milhões fixos mais 16,5 milhões dependentes de objetivos, ou com Vitor Reis, transferido para o Manchester City por 35 milhões de euros. Três exemplos de jovens que cresceram sob o olhar atento de um treinador que, mais do que potenciar, educa. Abel Ferreira mostrou ao futebol brasileiro que a formação pode e deve ser parte de um projeto vencedor, não apenas uma solução de recurso ou de urgência.
Mas há uma dimensão que explica o seu sucesso e que o distingue de tantos outros: a forma como vive o ofício. Abel Ferreira é um influencer de comportamentos, alguém de cabeça fria e coração quente. Um treinador que pensa com racionalidade e age com paixão. Um líder que se desafia constantemente, que se coloca à prova todos os dias, que não se acomoda nem quando ganha. Não gosta de zonas de conforto, porque nelas não há crescimento, desenvolvimento nem evolução. Sem indagação, reflexão e inovação, o futebol morre. É essa inquietação permanente, essa fome de superação e de evolução, esse desejo de ser melhor amanhã do que é hoje, que o mantém no topo há quase cinco anos.
E porque, no futebol como na vida, ninguém ganha sozinho, é justo reconhecer o papel da sua equipa técnica composta pelo João Martins, Vítor Castanheira, Carlos Martinho e Tiago Costa, profissionais de enorme competência e lealdade, que partilham da mesma ética, competência e visão. A coesão e a complementaridade deste grupo são parte essencial da longevidade e do sucesso do projeto. Da mesma forma, é impossível ignorar o trabalho discreto e eficaz do seu empresário, Hugo Cajuda, cuja gestão de carreira tem permitido a Abel crescer em estabilidade, serenidade e foco. São pilares invisíveis de uma caminhada que é coletiva, não individual.
A diferença entre Abel e a maioria dos treinadores brasileiros não é apenas de nacionalidade, é de coerência. Enquanto muitos técnicos se moldam à pressão dos resultados e aos caprichos dos dirigentes, o treinador português mantém a sua linha. Fala o que pensa, mesmo quando isso incomoda. Grita, confronta, explica. É emocional, sim, mas é sobretudo lúcido. E é também por isso que o seu nome se tornou intocável no Palmeiras. Mesmo quando fala em regressar à Europa, o clube protege-o e a torcida venera-o. A relação é de respeito mútuo e de confiança construída. Não é fácil ficar tanto tempo num banco brasileiro sem rachar por dentro. Abel conseguiu e com resultados.
Atualmente, conduz o Palmeiras na liderança do Brasileirão, com os mesmos 55 pontos do Flamengo, mas com menos um jogo, (joga esta noite frente ao Juventude). Está também nas meias-finais da Libertadores, pela quarta vez em seis anos. Repito: é a quarta vez em seis anos que Abel coloca o Palmeiras entre os 4 melhores da América do Sul. É uma máquina competitiva, capaz de se adaptar a cada momento da época, de cada jogo tirar lições, e de cada obstáculo fazer um motivo para crescer.
Abel Ferreira é, já sem contestação, o melhor treinador da história do Palmeiras. Mas talvez seja mais do que isso: é um caso de estudo sobre liderança no desporto moderno. Num futebol cada vez mais tóxico, onde o resultado da próxima jornada define o valor de uma carreira, Abel representa a ideia de que o tempo ainda é uma das maiores ferramentas.
O seu legado vai muito além dos troféus: está na cultura que deixou. No profissionalismo que exigiu, na mentalidade que construiu, na crença que devolveu a um clube e a uma massa adepta inteira. Talvez por isso, mesmo quando partir, o que será inevitável, Abel continuará a ser o símbolo de um tempo em que o Palmeiras voltou a ser grande. Não apenas por ganhar, mas por saber porque ganha.
Em tempos de projetos descartáveis, Abel Ferreira é o raro exemplo de que, no futebol e na vida, a grandeza nasce da coerência, do trabalho e da coragem de acreditar quando os outros já desistiram.
Um caso raro.
Um caso à parte. Um caso chamado Abel Ferreira."

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