"Entrou com estrondo, ajudou a construir uma das melhores equipas da história do jogo e foi senhorial na Europa. Berlusconi, que morreu aos 86 anos, vítima de complicações decorrentes de uma leucemia, tornou-se num dos presidentes mais bem-sucedidos da história do futebol e partiu ainda com o sonho de ver o Monza, que comprou em 2018, sagrar-se campeão de Itália
Em junho de 1986, a neoclássica Arena Civica de Milão tremia em sobressalto. Os adeptos, uns 10 mil, dizem os relatos da altura, esperavam apenas ver a apresentação da equipa do AC Milan para a nova temporada, mas do nada as colunas começaram a gritar a épica “Cavalgada das Valquírias” de Wagner, enquanto os jogadores aterravam de helicóptero.
Nos anos 80, aquilo não era normal.
Silvio Berlusconi, empresário que tinha salvado o clube da bancarrota uns meses antes, apresentava assim as suas ambições para o clube. Seria grande, esplêndido, monumental, o regresso ruidoso, como ele, do bicampeão europeu nos anos 60, do histórico 10 vezes vencedor da Serie A, caído em desgraça à conta de um escândalo de resultados combinados, o Totonero, que havia atirado a equipa para a Serie B pela primeira vez no início dos anos 80.
Daí até ao dia em que entregou o clube a investidores chineses, em 2017, o polémico magnata italiano, que morreu esta segunda-feira com 86 anos, vítima de complicações decorrentes de uma leucemia, tornou-se, também, um dos presidentes mais bem-sucedidos da história do futebol, com um total de 29 troféus, entre eles cinco Taças dos Campeões Europeus/Liga dos Campeões e oito títulos da Serie A. E mudando a face do futebol tão rápido quanto as suas primeiras decisões.
Não por causa dos helicópteros e das apresentações over the top, diga-se. No dia em que Arrigo Sacchi, antigo futebolista amador e vendedor de sapatos, eliminou o AC Milan com o seu modesto Parma na Taça de Itália, a história do futebol começava a desenhar-se. Berlusconi não descansou enquanto não levou Sacchi para San Siro, ignorando as desconfianças de quem não acreditava em alguém tão pouco experiente, e o técnico italiano forjou ali uma das melhores e mais influentes equipas da história do jogo.
De Sacchi a Capello
Com um futebol de ataque, pressionante, entusiasmante, a antítese do tradicional catenaccio transalpino, aquele AC Milan de Sacchi dominou a Europa: a Milão chegaram Marco van Basten, Ruud Gullit e Frank Rijkaard, um trio neerlandês como o futebol total que Sacchi tanto gostava, apoiado por históricos italianos como Franco Baresi, Alessandro Costacurta, Roberto Donadoni, Paolo Maldini e Carlo Ancelotti. Campeão em casa logo em 1987/88, o Milan sagrar-se-ia campeão europeu em 1988/89 e em 1989/90, esta última final frente ao Benfica. A influência, essa, ficou. Até hoje: de José Mourinho a Pep Guardiola, tantos citam esse Milan como essencial para a sua educação futebolística.
Já com Fabio Capello no banco, Berlusconi veria o seu clube, o mesmo que o pai o levava a ver em criança, vencer mais três títulos internos entre 1992 e 1994, fase em que o Milan chegou a estar 58 jogos da Serie A sem perder. Chegou ainda a três finais da Liga dos Campeões seguidas, de 1993 a 1995, vencendo a edição do meio, um arrasador 4-0 ao Barcelona de Johan Cruyff.
Pelo caminho, Milanello tornou-se a referência entre os centros de estágios da Europa. Berlusconi, sempre despudorado, dizia por esta altura que o Milan era a coisa mais conhecida de Itália “depois da mafia e da pizza”.
O início do século traria uma nova fase de sucesso para o clube, com Carlo Ancelotti no banco: mais um título na Serie A, em 2003/04, e duas vitórias na Liga dos Campeões, em três finais. Andrea Pirlo, Andriy Shevchenko, Kaká ou Alessandro Nesta entravam numa galáxia onde ainda orbitavam Maldini e Costacurta.
Um Presidente dentro do balenário
Interventivo e muito presente, Berlusconi arrogava-se de tomar decisões no clube que iam bem além do papel do presidente. “Toda a gente fala do Milan do Sacchi, do Zaccheroni e do Ancelotti, mas nunca se ouve falar do Milan de Berlusconi. Há 18 anos que escolho titulares, dito as regras e compro os jogadores”, lamentou-se em 2004, frase recuperada pela AP.
Berlusconi chegou também a dizer publicamente que exigia a todos os treinadores do Milan que jogassem com dois avançados, ficando por saber se a regra era real ou apenas um desabafo. Certo é que dos técnicos que marcaram o seu reinado em San Siro, só chegaram elogios: “Foi um grande homem que tentou melhorar Itália e o seu desporto, mas nem sempre foi compreendido”, sublinhou Arrigo Sacchi. À agência italiana ANSA, o treinador frisou ainda que Berlusconi era “um homem generoso”.
Já Ancelotti, citado pela AP, lembrou que Berlusconi era um presidente diferente: "Criticava-nos quando as coisas estavam bem e dava-nos todo o apoio quando as coisas corriam mal. A maior parte dos presidentes fazem exatamente o contrário”.
A entrada na política, a venda e o Monza
O que Berlusconi deu ao futebol, também tirou para benefício próprio. Talvez sem os sucessos do Milan não haveria uma carreira política para Il Cavaliere, que em 1994, apenas quatro meses após fundar o Forza Italia, se tornou primeiro-ministro italiano pela primeira vez, numa carreira política que durou até ao dia da sua morte. O Milan, disse, era a “única coisa sagrada” onde se havia envolvido, tudo o resto era “profano”.
A segunda década do século 21 seria de menor fulgor para o Milan, que em 2006 foi um dos clubes condenados no caso Calciopoli. Outrora um dos homens mais ricos do Mundo, Berlusconi deixou de conseguir combater os rivais dentro casa e também na Europa, onde ainda era mais senhorial. Até ao título de 2021/22, já sem Berlusconi, foram 11 temporadas sem vencer a Serie A. O clube seria vendido a um consórcio chinês em abril de 2017, por mais de 700 milhões de euros.
Mas a lenda de Silvio Berlusconi, empresário, político, polemista profissional e presidente de clubes de futebol, não terminaria por aí. Um ano depois de vender o Milan, juntou-se de novo a Adriano Galliani, seu braço direito durante toda a caminhada nos rossoneri, comprando o Monza por módicos três milhões de euros. Em cinco anos, o clube subiu da Serie C, o terceiro escalão do futebol italiano, para a Serie A. Em 2022/23, na temporada de estreia na primeira divisão, o Monza terminou em 10.º. O sonho de Berlusconi era levar o clube até ao título italiano, mas agora o caminho será feito sem ele. E há muito que o futebol não sabe o que isso é."
Sem comentários:
Enviar um comentário
A opinião de um glorioso indefectível é sempre muito bem vinda.
Junte a sua voz à nossa. Pelo Benfica! Sempre!