"Estão de boné na cabeça e casualmente vestidos, sem camisas ou gravatas. Têm casacos discretos, de quem agarrou um trapo do armário para ir bebericar algo ao café da esquina com um amigo e jogos houve em que se apresentaram de gorro. Sem adereços fancy, em preparos nada executivos e nus de quaisquer sinais a intuir uma separação entre eles e as gentes do clube, eis dois homens nos seus quarentas a pisarem o relvado enquanto tentam manter a postura para darem as palavras que lhes são pedidas após um sucesso.
O mais alto confessa não as ter, ainda está a “processar o que aconteceu”, entrelaçando os dedos das mãos postas em baixo e à frente da cintura, em pose ensinada a quem deve orar em público para controlar os nervos. Quando se cala, ajeita a pala do boné sem praticamente a mover na vez do amigo responder que “o mais importante” é o quão “a cidade está a sentir isto”, confessando ser “a honra da [sua] vida” o facto de terem sido “recebidos na comunidade e nesta experiência”. Rob McElhenney, criador de “It's Always Sunny in Philadelphia”, fala com cara séria e Ryan Reynolds, protagonista de dezenas de filmes afamados, os maiores quiçá os da saga “Deadpool”, acena em completa aprovação.
A barulheira a rodear dois atores de Hollywood denuncia o inusitado da ocasião: estão num estádio do País de Gales, em Wrexham, lugar com pouco mais de 60 mil pessoas, a celebrarem a promoção à IV Divisão do futebol inglês, primeira da Football League que gere os escalões profissionais, e a serem entrevistados por um canal de televisão e um repórter que estariam longe de lá se não fosse por eles, dois tipos tomados de assalto pela balbúrdia descontrolada de emoções que é o futebol ao qual chamam soccer. Até à pandemia, pouco ou nada sabiam de bola, reconheceriam as caras de um Messi, um Ronaldo, um Mbappé ou de um Neymar, mas isso é saber quem é quem no meio que desconheciam e onde se decidiram enfiar em finais de 2020.
Por culpa deles, sabemos agora onde fica Wrexham, terra do terceiro clube mais antigo do mundo, que em 2011 esteve a uma unha de desaparecer, salvo pela reunião de cerca de dois mil adeptos que lhe compraram a dívida; que o estádio ficou como propriedade da universidade local e o regresso aos escalões profissionais de Inglaterra parecia uma miragem. De repente, em questão de um par de anos, o resumo da história de uma equipa galesa virou parte do folclore do futebol, surge em temas de conversa, aparece nos cabeçalhos de jornais desportivos, gera interações nas redes sociais. Histórias, é isto que Ryan Reynolds e Rob McElhenney estão a dar à bola.
Seria redutor ficarmos pelo esperto engenho dos atores em catapultarem o investimento no clube através da notoriedade que ambos dispõem, fazendo e vendendo um documentário (“Welcome to Wrexham”) à Disney e FX, o que cativou pessoas para a aventura de um clube nas catacumbas do futebol europeu. Esse era o passo óbvio, fácil até. Mais complicado seria eles não parecerem uns alienígenas, corpos estranhos num mundo ao qual não pertencem, por muito que se informassem, lessem, vissem (o vício de McElhenney na série “Sunderland ‘Till I Die” durante o confinamento terá sido o embrião da ideia do investimento) e fossem aconselhados (certamente o são por gente batida no futebol).
Mas é essa alienação de conhecimento que devemos louvar.
Salteada com o bom fundo que ambos evidenciam ter, estes atores de Hollywood são presidentes de clube como há pouquíssimos. Em 2021, após os sócios do Wrexham aprovarem incognitamente a entrada de investidores estrangeiros, apresentaram-se a todos por videoconferência, ficando horas a responder a questões antes de nova votação (a sua entrada foi validada por 98% dos votantes). Desde então que assistiram a dezenas de jogos no estádio, vão a pubs da cidade conviver com os locais e mantém-se em contacto com os jogadores. Ryan Reynolds já comprou lá uma casa e ambos elogiaram, várias vezes, o “incrível” Notts County, segundo classificado do campeonato que também superou a centena de pontos e golos marcados, gabando-lhes a competição e defendendo que deveria existir mais do que um lugar de promoção direta à League Two.
Ryan e Rob parecem, genuinamente, gente boa e devota ao projeto, proprietários compenetrados nas vidas das pessoas que estão a afetar. Posso ter deixado pó acumular-se na mobília da memória, mas não me recordo de saber de algum milionário americano dono de equipas da Premier League (já agora, são 10) que tivesse elogiado constantemente clubes adversários e prezado a competição com os ditos cujos. Muito menos um zilionário catari, saudita ou dos Emirados preocupado em agradecer à comunidade que rodeia o seu alvo de investimento. “Esperamos jogar contra eles na próxima época”, frase dita por Ryan Reynolds, dificilmente sairia da boca de um presidente de clube na I Liga portuguesa.
Por cá nos habituámos a líderes de clubes a saltarem de cabeça para a facílima narrativa que inimiza adversários e faz da competição uma guerra, estimulando o incêndio emocional que mora nos adeptos e recheia a alma das equipas, mas transformando-a num “nós contra eles” de guerras, guerrilhas e ódio. Um presidente a elogiar um clube que não o seu?, mostrem quem e onde, para lhe atirarem a primeira pedra. É triste constatar, perante as evidências, como o comportamento que estrelas de Hollywood evidenciam enquanto caras de um clube é bastante improvável de detetar no futebol mais mediatizado em Portugal.
Os relatos de adeptos do Wrexham derretidos com Reynolds e McElhenney, elogiando-lhes a postura, a simpatia e o coração que dedicam ao lugar que há antes do clube, provam, para lá dos benefícios da empatia, que investidores endinheirados com fome de futebol não têm de ser apenas isso, pessoas com contas bancárias oceânicas. É óbvio que os atores o fazem por viverem com milhões de euros feitos à frente de câmaras e quererão um retorno do seu investimento, mas tal não significa, escrito em pedra, que têm de ser figuras inalcançáveis e frias, incógnitas e distantes. Pode-se argumentar que tudo ainda é muito bonito por estarem onde estão, agora na IV Divisão do futebol, longe dos holofotes e da pressão e das receitas do topo onde querem chegar. Afinal, dizem que o dinheiro ‘corrompe’ as pessoas e lhes embacia o discernimento.
Provas disso também há muitas, mas dinheiro é o que eles já tinham. E o que têm, pelos vistos, é lições a dar ao futebol onde aterraram como extraterrestres. Houvesse na bola mais cabeças temperadas como as deles e ar não seria tão rarefeito."
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