"Meu caro senhor Jorge Jesus:
Antes de lhe falar do que quero, vou contar-lhe o que aconteceu no fim. Da janela do hotel via cidade que parecia fantasma, tinha gente na rua sim, mas a arrastar-se, mortiça.
Disfarcei-me de Bogart, com chapéu até ao nariz e casacão de colarinho levantado e saí. Passei a noite cervejando, abraçado aos vencidos, que choravam. Ninguém me reconheceu.
Num balcão de Copacabana ouvi a rádio dizer que no estádio tinham morrido dez pessoas de ataque cardíaco e já havia outros tantos suicídios. Senti-me culpado. Não, não foi aí, foi em Montevideu, vendo que diretores ficaram com medalhas de ouro e a nós deram de cobre que tive aquele desabafo:
- Se jogasse de novo a final fazia golo contra! (Não seria capaz, foi revolta a uivar por mim, a uivar por isso e porque com o dinheiro do prémio consegui comprar só um Ford de 1931, dias depois roubaram-mo, nunca mais apareceu...)
Sim, sou o Obdúlio Varela, o Herói do Maracanazzo. Herói, falam, porque, nessa final do Mundial de 50, quando a avalanche nos caía em cima era eu que acalmava o jogo, levava a equipa aos ombros; pondo em todos nós dois corações e quatro pulmões.
Por causa disso alguém escreveu que não tinha as chuteiras atadas com cardaços, tinha-as atadas com as minhas veias. E tinha.
No estádio ardinas vendiam jornal com foto da equipa do Brasil e duas palavras apenas: Campeões do Mundo! - e, eu, comprando-o, avisei:
- É para pisarmos no diário e mijar nele (Mijei mesmo, nem todos pisaram...).
À saída do túnel, o ambiente era um arrepio pegado: 205 mil pessoas gritando: Brasil! Brasil! Brasil! - e um dos nossos cartolas, estremecido, murmurou:
- Se perdermos por quatro é bom.
Irritado, eu mandei calá-lo e bradei:
- Não tenham medo! Olhem só para a relva, deixem de ver as bancadas, não mordem.
É na relva que vamos ganhar.
Assim lhes limpei o pó ao medo (e ao resto) - e o Uruguai ganhou mesmo.
PS: Vendo-o, agora, a caminho de Barcelona, eu, mesmo morto, quis lembrar-lhe esta história. Imagina porquê..."
António Simões, in A Bola
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