Últimas indefectivações

quarta-feira, 29 de outubro de 2025

Quando David vence Golias


"Regresso hoje, depois de uma ausência muito necessária para trazer ao mundo uma leoazinha apressada que deveria nascer a meio de novembro, mas que decidiu dizer olá a este mundo logo no início de outubro. Uma leoazinha que me tem mantido tão inebriada de amor que me faz querer escrever apenas sobre coisas bonitas e, pelo menos por uma semana, deixar de lado as habituais questiúnculas e quezílias que dominam o futebol.
Sabem, de todas as histórias que alimentam o nosso coletivo, poucas têm o mesmo poder de nos encher de esperança do que aquelas em que os mais fracos vencem os mais fortes. Ver vencer o fraco, que quase sempre nos representa, dá-nos uma sensação de equilíbrio moral como se, por uma vez, o universo corrigisse as desigualdades. E talvez a história que melhor representa este sentimento seja a de David contra Golias que, para quem possa não estar recordado, opôs numa luta um gigante de três metros de altura armado com lança, escudo e armadura e um jovem pastor que, para o defrontar, utilizou apenas uma funda e uma pedra do rio. Nesta história bíblica, David, com um lançamento certeiro, acerta na testa de Golias e acaba por matá-lo. Ao contrário do que seria expectável, o mais fraco vence o mais forte. E sabem onde podemos encontrar muitas histórias com um desfecho semelhante a esta? No futebol, pois claro. Querem exemplos?
Em 2016, a Islândia, país com pouco mais de trezentos e cinquenta mil habitantes, qualificou-se para o Euro-2016 e, nos quartos de final, derrotou a Inglaterra por duas bolas a uma. O espanto foi global: como assim aquela seleção pequenina derrotava a gigante Inglaterra, pátria-mãe do futebol? Mas de um lado ao outro do mundo a admiração pela seleção islandesa foi notória. Aqueles Davids tinham vencido Golias.
Foi também um bocadinho isto que aconteceu no início deste século em Portugal quando o Boavista se sagrou campeão nacional de futebol. De repente, uma equipa que não era nenhuma das três grandes atingia o patamar mais alto do futebol português (algo que não acontecia desde 1946) e o país espantava-se. Às mãos de Jaime Pacheco, com um futebol pouco bonito, mas muito eficaz, o Boavista, também ele, vestia a pele de David.
E o Leicester City, em 2015/2016? Pois é. Começou a época como forte candidato à descida de divisão, acabou um David campeão da Premier League.
E finalmente Cabo Verde, o David que conhecemos este mês e que merece um destaque especial por ser o segundo país mais pequeno de sempre a apurar-se para a fase final de um Mundial. E isto tem ainda mais valor se olharmos para o percurso realizado durante a fase de grupos, onde acabou em primeiro lugar, com vinte e três pontos, após defrontar as seleções de Angola, Camarões, Líbia, Eswatini e Maurícia.
Cabo Verde foi ao delírio com o apuramento. A Cidade da Praia quase explodiu. Os 550 mil habitantes foram ao céu com o feito da equipa que é absolutamente gigante para a dimensão do país. O seleionador nacional, Pedro Leitão Brito, conhecido como Bubista (crioulização do nome da ilha onde nasceu — Boa Vista), fez um discurso emocionado onde dedicou o apuramento ao povo e a todos os que lutaram pela independência do país. E a festa foi verdadeiramente bonita.
Sabemos bem que os recursos financeiros da seleção cabo-verdiana são curtos quando comparados com os de outros países e que este apuramento é, acima de tudo, resultado de muito trabalho, disciplina e de um espírito de união de grupo extraordinário. Pedro Brito teve o mérito de conseguir uma equipa forte e coesa composta por jogadores de diferentes proveniências — hoje, a seleção de Cabo Verde é um misto de jogadores nascidos no país e na diáspora. Veja-se, como exemplo de tudo isto que escrevo, o caso de Roberto Pico Lopes, estrela maior desta seleção, nascido em Dublin, filho de pai cabo-verdiano e de mãe irlandesa. Pico, como é mais conhecido, foi contactado pelo Instagram por um dirigente da Federação Cabo-verdiana de Futebol que o convidou por ali para jogar pela seleção. Assim mesmo, através de uma mensagem numa rede social. Porque quando há efetivamente vontade, todas as barreiras se derrubam de forma mais ou menos convencional. Pico diz que inicialmente nem ligou muito à mensagem, mas que quando percebeu que era a sério não hesitou um único momento. Com pai cabo-verdiano, o país corria-lhe no sangue e no coração. Hoje, feito símbolo da seleão, é adorado pelos adeptos e é extraordinário ver a energia que estes lhe dedicam.
E como Pico há outros. Cada um com a sua história. Alguns saídos de uma vida de pobreza na infância. Outros tão longe de Cabo Verde que nunca pensaram jogar pelo país que, por ser dos pais, também era seu na origem. Mas todos igualmente felizes por um apuramento que nos faz acreditar que nem sempre o poder vence e que, às vezes, o trabalho, o esforço e o empenho valem mais do que todos os recursos materiais deste mundo.
Sabem, acho que é também por aqui, por esta mística, por esta sensação de que, no final, são onze contra onze e uma bola nos pés, que passa um bocadinho do fascínio de competições como, por exemplo, a Taça de Portugal. Ainda na época passada experimentámos em Évora esta sensação de ser David ou, como se costuma chamar na Taça, a sensação de ser tomba-gigantes. Deixando para trás Estoril e Aves SAD, todos acreditámos que era possível derrotar o Sporting de Braga. Não foi. Mas o sonho comandou-os e mostrou-nos que sim, no futebol e na vida, há Golias que podem mesmo ser derrotados.
Voltando a Cabo Verde, que nos entregou de presente a sensação de que todos podemos ser heróis, gostaria tão somente de lhes desejar boa sorte para o Mundial que aí vem. Talvez a jornada seja difícil, mas aquilo que eles conseguiram até aqui já os torna vencedores. E é tão bom quando assim é.
Haja Davids no nosso futebol!

No pódio
Madalena Costa, a extraordinária atleta de 17 anos do Sporting Club Santacruzense, sagrou-se, na China, campeã do Mundo em Patinagem Livre no escalão de seniores. Depois de dois títulos mundiais juniores (Ibagué-2023 e Rimini-2024), conquistou a primeira medalha de ouro para Portugal na categoria sénior onde defrontou atletas mais velhas e experientes. Madalena, deixem-me que vos diga, é um caso sério de superação e resiliência e, prova disso, são as declarações que fez após o ouro, onde relembrou todas as horas de treino intensivo enquanto os colegas saíam, todas as quedas, todas as quebras de confiança e toda a disciplina necessária para chegar a este resultado. Treinada pela própria mãe e vítima da falta de apoio que o nosso país concede às modalidades que não o futebol, há anos que Madalena brilha na patinagem mundial, quase sempre em escalões acima do seu, com ótimos resultados e exibições perfeitas. Uma pena que, enquanto país e como povo, não olhemos para ela mais vezes!

Na bancada
Uma investigação federal nos EUA destapou esquema de apostas desportivas ilegais que afeta enormemente a integridade dos jogos da NBA. Com várias figuras de topo, como o jogador Terry Rozier, acusadas formalmente por estarem envolvidas no esquema, este caso está já a ser classificado como um dos maiores escândalos da NBA. E enquanto se aguardam novos desenvolvimentos, de uma coisa podemos ter a certeza: as apostas desportivas, especialmente as ilegais, são o grande flagelo do desporto atual. Porque mais do que ferirem a integridade das competições e incentivarem a corrupção, estas apostas prejudicam os atletas mais vulneráveis e fazem erodir a confiança dos adeptos. Mas sobre este tema falarei de forma mais aprofundada na crónica da próxima semana."

Sem comentários:

Enviar um comentário

A opinião de um glorioso indefectível é sempre muito bem vinda.
Junte a sua voz à nossa. Pelo Benfica! Sempre!