"A determinado momento da Vuelta, Jonas Vingegaard desfez-se do bigode que a esposa considerou hirsuto. Da camisola vermelha foi mais difícil livrar-se até porque o valor que a licra tingida acrescenta à sua carreira é bem maior que uns pelos na cara. Na última corrida de três semanas da temporada, o dinamarquês esteve 15 dias vestido à líder da classificação geral. Um decrépito João Almeida deixou cair do tubo de escape pingas de sofrimento na Bola del Mundo, enquanto o rival levitava o figurino seco que aparenta não ter bolsos para tanta força.
Jonas Vingegaard está numa fase da carreira que se assemelha a um voo de ligação entre a Terra e a dimensão de Tadej Pogacar. João Almeida agarrou-se às asas do avião e fez o nórdico parecer superável, acabando batido pela perspicácia do agora vencedor de três grandes voltas. Vingegaard não venceu a Vuelta sozinho. Sepp Kuss, a Ursa Menor que em 2023 ganhou o périplo espanhol quase sem querer, e Matteo Jorgenson foram dois motores a suplantar o líder da Visma nos momentos de maior aperto.
Ao contrário do que a UAE pensa, uma equipa não são oito ciclistas – que por acaso têm o mesmo patrocínio, vestem-se de igual e vão para as etapas no mesmo autocarro – a correr ao desbarato. Entre eles é preciso estabelecer uma hierarquia e delinear uma estratégia. Não o fazendo, a equipa de João Almeida mancou contra uma Visma que usou as cartas todas. A UAE ganhou sete etapas, a Visma ganhou a classificação geral. Isto não significa que o jogo ficou 7-1, porque as duas equipas estavam a disputar competições diferentes. A UAE andava entretida com a Taça da Liga, a Visma com a Liga dos Campeões.
A equipa de João Almeida não lhe deu a mínima razão para pensar que podia ganhar a Vuelta. Tratou-se da crença individual de um gigante a fazer por si o que ninguém fez.
A gestão desportiva imberbe da UAE ultrapassou o prazo de validade no dia em que alguém considerou justo equivaler Juan Ayuso a João Almeida, dando uso à conversa dos “dois líderes”. Levantado o véu, o espanhol até já tinha a saída do conjunto dos Emirados decidida antes da Vuelta. O despautério teve novo capítulo quando o êxodo de Ayuso foi tornado público em plena corrida.
O desnorte atingiu o auge na etapa 19. Após o contrarrelógio em que Almeida conquistou dez segundos a Vingegaard, a UAE deixou o líder da classificação geral escapar numa meta volante e conquistar quatro segundos em bonificações de forma gratuita. Pode-se dizer que, perante a falta de colaboração dos companheiros, devia ter seguido o oponente por conta própria. O mesmo na etapa 2, onde entrou na subida mal posicionado e foi surpreendido. No entanto, apenas uma equipa sem voz de comando se cala na orientação dos corredores.
Marc Soler e Juan Ayuso foram lobos solitários, correndo desligados do interesse comum. Matxin, o diretor da UAE, vinha a público dizer coisas como “todos com o João” ou “não vamos estar nas fugas”, sendo ridicularizado pelas ações concretas dos ciclistas. Todos acabaram por sorrir, menos quem mais merecia. O português podia, mesmo com toda a ajuda do mundo, não conseguir vencer a Vuelta, mas pelo menos não seria o único a dormir descansado.
A insuficiência lógica da UAE já tinha custado o Giro a Isaac Del Toro. O mexicano passou três semanas a carecer de proteção enquanto a direção desportiva acreditava cegamente que tinha em Juan Ayuso um todo-poderoso. Na falta de orientação, Simon Yates completou uma reviravolta épica no Colle delle Finestre e usufruiu de um plano exímio da Visma. A única grande volta em que a UAE superou os neerlandeses foi no Tour, sucesso que se justifica com a capacidade financeira para pagar qualquer coisa como €8 milhões ao autossuficiente Tadej Pogacar.
João Almeida está na melhor forma da sua vida. Esperemos que se mantenha nesse planalto durante muito tempo para não recordarmos esta edição da Vuelta como uma oportunidade desperdiçada. Igualar o melhor resultado de sempre de um português (Joaquim Agostinho, 1974: 2.º lugar) numa grande volta e vencer no Angliru são momentos que vão ficar tatuados na história. Ainda assim, soa a sonho por cumprir."

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