"Chegou o tempo de dizer adeus aos leitores de A Bola. Um adeus que não pode deixar de ser sofrido depois de cinquenta anos e cinco meses a escrever neste jornal. Porém, um adeus seguro e consciente. Continuarei a escrever. O único futuro que me preocupa é o dos jornais e o do jornalismo
Sim, esta é a crónica da minha despedida de A BOLA. Um adeus que não pode deixar de ser sentido e sofrido, depois de cinquenta anos e cinco meses a escrever neste jornal, onde fui redator, subchefe de redação, chefe de redação e, sobretudo, diretor durante trinta anos. Foi um amor longo e retribuído. Foi neste jornal que cresci na juventude e aprendi com os grandes mestres. Foi neste jornal que me cumpri como jornalista e tive o privilégio de dirigir grandes profissionais, infelizmente, nem todos devidamente valorizados e reconhecidos.
Foi, também, neste jornal que conheci o mundo. Cinco continentes, seis Jogos Olímpicos e nada menos de oito campeonatos do mundo de futebol. Dei muito, ao longo da minha vida, mas também recebi muito. Penso que não exagero se disser que estive mais tempo no 23 da Travessa da Queimada do que na minha própria casa. Portanto, acho que ninguém ficou em dívida.
Ao longo de cinquenta anos, também promovi e incentivei muitas mudanças no jornal. Do trissemanário ao diário, do preto e branco para a cor, do formato broadsheet ao tabloide. E todas as edições internacionais. Da Europa à América e, sobretudo, às edições diárias de grande sucesso em Angola e em Moçambique, que tornaram A BOLA numa das marcas portuguesas mais fortes em África. Também ajudei a criar e a desenvolver, com uma equipa notável, que teve o José Manuel Delgado e o João Bonzinho como principais responsáveis, A BOLA on-line e a BOLATV. Fizeram-se verdadeiros milagres…
Fui, pois, um ator em muitas transformações e tive sempre comigo gente competente e de alta qualidade profissional, em todos os setores do jornal, a acompanhar-me e a sustentar o sucesso de cada projeto. Lembro que no ano do Campeonato da Europa, em Portugal, A BOLA chegou ao incrível número de 300 mil exemplares de venda, no dia seguinte ao Portugal-Espanha. Foi já neste século e apenas há 20 anos! Todos festejámos em equipa e será sempre à equipa ou, melhor, a todas as equipas que se foram formando, que eu me afirmarei profundamente grato, até para evitar referências particulares que, apesar de devidas, acabariam por levar à injustiça de não poder referir todos, um a um.
Registe-se, pois. Nunca fui avesso às mudanças. Sempre disse que um jornal, mesmo com muitos anos, deve ter a idade dos seus leitores no dia em que sai à rua. Por isso, um jornal queima muito rapidamente as gerações que o servem. O tempo é inexorável e importa ter a sensibilidade e o sentido de realismo para perceber quando termina o nosso tempo. Foi por isso que também fui tão determinado a autoexcluir-me da direção de A BOLA. E o meu pedido oficial só não se concretizou antes porque me foi pedido que ficasse até que passasse a crise da pandemia. Em tais condições, não consegui recusar.
Sinceramente, penso que ainda mantenho muito apurada essa sensibilidade de entender a medida do tempo. Há uns escassos meses informei pessoa responsável da atual redação, e por quem tenho estima pessoal e consideração profissional, de que já não me sentia suficientemente confortável nesta nova A BOLA nova. E confidenciei que tinha intenção de sair até ao final deste ano. As circunstâncias, sobre as quais mantenho, aqui, reserva, apressaram essa decisão.
Continuarei a escrever enquanto a cabeça no consentir e enquanto mantiver o prazer único e insubstituível da escrita. E, sem mim, A BOLA continuará naturalmente o seu percurso, cumprindo o que destina para o seu futuro e para a sua renovada vida, que continuarei a desejar longa e feliz.
Não temo pelo meu futuro de jornalista, que serei sempre até morrer, e de curioso aprendiz de escritor, mas mentiria se não dissesse que temo pelo futuro dos jornais e do jornalismo em Portugal. Não apenas de A BOLA, mas de todos os jornais e de todo o jornalismo.
A questão do papel ou do digital, sempre me pareceu uma escolha despropositada, porque manifestamente incompreensível. Hoje em dia, as marcas de comunicação devem conjugar-se num crescimento equilibrado e complementar de todas as suas plataformas, não deixando nenhuma para trás. É um desafio complexo e que obriga a grande determinação, conhecimento e coragem.
Em países pequenos, e cuja escala de leitura é mínima, como acontece em Portugal, o segredo está em dominar a abrangência de uma complementaridade de meios diversos. E no equilíbrio entre projetos autónomos, mas dependentes de uma mesma personalidade, de uma mesma alma, de um mesmo caráter de uma marca que não pode dissolver-se ou apagar-se a meio caminho da sua história.
Uma das questões preocupantes, em muitos dos media portugueses, está na metamorfose de um certo jornalismo multifuncional que procura apostar nos generalistas em detrimento dos especialistas. Trata-se, na nova linguagem empresarial, de uma esperta política de gestão de meios e de rendimento dos ativos. A ideia é que se todos fizerem igual, não se notará tanto a desertificação da qualidade. Em cúmulo, pode até acontecer que se transformem meros carregadores de piano em solistas, obrigados a interpretar Chopin e ainda, se for preciso, a cumprir a tarefa de afinadores de notas. Vinga a teoria de que a maioria da audiência não ouve música clássica, nem distingue os grandes intérpretes, e o concerto, assim, sai muito mais barato. Poucos pensam verdadeiramente na razão pela qual as salas ficam vazias…
Sou contra, e serei contra, até ao fim da minha vida, a banalização desta tendência suicidária de achar que se pode ter futuro na moda com uma loja de chinês, só porque a loja do chinês vende barato e pode multiplicar-se, mesmo que igualmente irrelevante, por qualquer país do mundo.
Tal como disse numa recente entrevista, o jornalismo não se salva com a degradação do jornalismo. Continuo a pensar que o sucesso do jornalismo – e não há idade para o bom e para o mau jornalismo - seja em que plataforma for, precisa de investimento e de uma gestão rigorosa e sábia, que tenha liberdade, competência e critério para o aplicar, sem seguir a lógica de que tudo é despesa e tudo se avalia, apenas, no custo.
O tempo atual do jornalismo é, em todo o mundo, um tempo problemático. Ninguém tem a fórmula milagrosa que garanta o futuro entre uma floresta de redes sociais e de avalanches de informação, que tudo leva no caminho. A verdade e a mentira.
É, de facto, um tempo novo, um tempo de transição para uma nova realidade que ainda nem sequer desponta no túnel escuro. Mesmo assim, admito que a prioridade está no desenvolvimento de um modelo no digital. Um modelo que se preocupe em satisfazer os seus utilizadores, não perdendo de vista o essencial: cada país, cada povo, cada cultura tem de saber criar, com critério e competência, o seu próprio modelo. Credível e sustentado.
Porém, e ainda por tempos indeterminados, o novo utilizador do digital não substituirá o comum e tradicional leitor de jornais. Apenas sucede que estes vão encontrando cada vez menos opções e vão ficando encurralados em dois ou três jornais, que, a custo, resistem. São exceções, que garantem a sobrevivência de um nicho de mercado que tem o hábito de ver num jornal mais do que um simples entretenimento e que recusa um certo jornalismo de marca branca, medido por smiles e por cliques.
Por fim, uma palavra de sentido agradecimento aos leitores de A BOLA. Aos do passado, aos do presente, aos do futuro. Foi sempre um prazer e uma honra tê-los, a todos, por companheiros nesta tão longa e já cansada viagem."
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