"Cinco anos depois do grande êxito que foi a primeira «Missão Impossível», o treinador, qual Tom Cruise, prepara-se para a sequela, que tem novos atores, enredo diferente, e desfecho incerto…
Quando, a 6 de janeiro de 2019, Bruno Lage se estreou à frente da equipa principal do Benfica, e ao vigésimo minuto os encarnados perdiam na Luz por 0-2 com o Rio Ave, poucos (provavelmente ninguém, nem Lage) vaticinariam que o Benfica não só viria a vencer esse jogo por 4-2, como ainda iria ganhar 35 dos 37 encontros seguintes da Liga.
Bruno Lage chegou à sua cadeira de sonho depois de Luís Filipe Vieira ter deixado cozinhar Rui Vitória em lume brando, na esperança de contratar Jorge Jesus, então no Al Hilal, antes de rumar ao Flamengo, e depois de ter «dado uma luz» ao então presidente do Benfica, que o fez regressar à aposta, breve, no técnico, Vitória, que tinha completado o tetra. Mesmo assim, Lage entrou à experiência, e só depois de ter ganho o segundo jogo, nos Açores, frente ao Santa Clara, recebeu o convite para passar de treinador interino a definitivo, numa história que terminaria, contra todas as expetativas, no Marquês de Pombal.
Foi a chicotada psicológica de maior sucesso de que tenho memória, num contexto, diga-se, bem menos atribulado do que aquele que o Benfica está a viver. À altura, Luís Filipe Vieira, que viria a cair na sequência de um processo judicial do qual continua a haver escassa informação, tinha uma liderança forte e altamente centralizadora, optara por seguir a máxima de Sun Tzu, «manter os amigos por perto e os inimigos ainda mais perto», tornando a Direção numa espécie de albergue espanhol que esvaziou a oposição, e vivia ainda do lastro de ter sido o primeiro líder encarnado desde 1934/35, época do início do Campeonato Nacional, a conseguir vencer a prova quatro vezes seguidas. Hoje, Rui Costa, que exerce uma liderança de proximidade como adepto, mas menos omnipresente nas decisões, vê-se contestado pelo menos por dois movimentos organizados, e queimou boa parte do seu capital junto dos sócios e adeptos ao apostar numa causa perdida que deu pelo nome de Roger Schmidt, hipotecando meses preciosos de preparação a um Benfica que precisava de um arranque de época canhão, e está a limitar-se a avançar aos soluços, com cinco pontos perdidos em 12 disputados na Liga.
Chegou a jornada quatro – fatídica para outros treinadores benfiquistas que, no passado, também começaram as épocas de costas voltadas para o Terceiro Anel -, em Moreira de Cónegos a situação de Roger Schmidt tornou-se insustentável, e Rui Costa teve de disparar em várias direções, desde o oneroso despedimento do técnico alemão, até apostar em alguém que pudesse dar-lhe garantias de resultados imediatos, passando por um reacerto no plantel que devia ter sido feito muito antes. O que vai resultar deste contrarrelógio benfiquista ninguém sabe, sendo certo que as próximas duas semanas vão ser decisivas para o estado com que a nação encarnada vai encarar o resto da temporada. Tudo porque às primeiras impressões do novo treinador e dos reforços que trarão outra cara ao Benfica, quer na Liga doméstica, quer na nova Champions (e logo com dois jogos acessíveis) segue-se uma Assembleia Geral para falar de estatutos (grande trabalho de Fernando Seara ao conseguir a aproximação de posições, estando no horizonte uma proposta comum das várias tendências, o que será uma vitória do benfiquismo), que em caso de mau arranque da nova gerência terá tudo para descambar, tal como sucedeu nas reuniões magnas para aprovar as contas do clube, em momentos de contestação e conflito, que podem precipitar uma clivagem interna.
LINHA DO TEMPO
Há, pois, que ter bem presente a linha do tempo que se segue, e que termina a 21 de setembro, véspera (ou antevéspera?) da deslocação dos encarnados ao Bessa, uma semana depois de terem jogado em casa com o Santa Clara, e dois dias depois da estreia na Champions no Maracanãzinho do Estrela Vermelha.
Na prática, por causa dos jogos das seleções, Bruno Lage vai ter quatro dias para preparar o jogo com o Santa Clara, e levar ao relvado da Luz não só algumas das ideias que tem para a forma de estar da equipa, como também quanto às individualidades que vão ser o ponto de partida do seu trabalho. A vantagem de ser alguém que conhece bem o Benfica, que sabe quais os defeitos de que enfermou o modelo de jogo de Schmidt, e é perito na forma de organização das equipas que disputam a Liga portuguesa, é óbvia, mas, do ponto de vista coletivo, não há nenhum treinador no mundo que em quatro dias pegue numa varinha mágica e ponha tudo no sítio. Nem o Harry Potter, e esse vem para jogar como extremo-esquerdo…
Aliás, tornar onze jogadores numa equipa sempre foi o principal desafio de qualquer treinador, um desafio maior ainda do que fazer crescer cada um dos futebolistas à sua disposição. E, para isso, logo à partida, o treinador tem de saber o que quer, porque, sem isso, nada feito. No caso vertente do Benfica, Lage tem de olhar para o plantel que lhe coube em sorte (e que não foi da sua responsabilidade), saber lê-lo, e escolher o modelo que melhor servirá para tirar rendimento daqueles atletas. Quando a equipa do Benfica subir ao relvado da Luz para defrontar o Santa Clara, logo se verá, se vem para pressionar ou para esperar, se o treinador exige envolvimento defensivo a todos ou se há exceções, se opta por um-mais-um na frente ou se prefere dois pontas-de-lança, onde se propõe colocar Kokçu, Aursnes (quando estiver bom) ou Renato Sanches (assim esteja bom). Hoje, ainda é tempo de todas estas dúvidas e questões, daqui a uma semana deverá haver trabalho para ser mostrado e daqui a duas, noutro cenário, o tempo será de cobrança.
UMA DIFERENÇA GIGANTE
Em janeiro de 2019, quando se tornou no homem do leme benfiquista, Bruno Lage tinha a vantagem de conhecer a casa por dentro e por fora, tinha proximidade com os jogadores - muitos deles tinham-lhe passado pelas mãos – e sabia bem o estado da arte, pela proximidade que mantinha com a equipa principal, enquanto treinador da equipa B dos encarnados. Pode dizer-se que o Bruno Lage de há quase cinco anos sabia como funcionava o balneário do Benfica, quem eram as peças mais influentes da cabina, e qual era a forma de melhor gerar equilíbrio e bom ambiente de forma a colocar toda a gente a remar no mesmo sentido, porque é certo e sabido que sem um bom balneário nunca há uma grande equipa.
Hoje, um lustro depois, as coisas são diferentes: Lage andou por Inglaterra e pelo Brasil, em experiências enriquecedoras, que o fizeram crescer como treinador, mas terá de dar ouvidos a terceiros (nomeadamente a Rui Costa e Lourenço Pereira Coelho) para se atualizar quando às correntes de força da atual cabina do Benfica, onde não está, como controleiro, Luisão (diretor técnico), de onde saiu Javi García (era adjunto), elementos que deveriam manter maior proximidade com os jogadores.
Para ter sucesso imediato, de que precisa (ele e o Benfica), como de pão para a boca, Bruno Lage tem de dar rapidamente com esta tecla tão sensível, quando se sabe que aos dois senadores da equipa, os campeões do Mundo Otamendi e Di María, se juntam os compatriotas Rollheiser e Prestianni; que a armada turca foi reforçada com Akturkoglu, que acompanha Kokçu desde as seleções jovens do país de Erdogan, e ainda por Amdouni, nascido na Suíça de pai turco e mãe tunisina, que hesitou entre a Suíça e a Turquia (que chegou a representar nos sub-21, sendo companheiro de Serdar, do SC Braga), acabando por optar pelo helvéticos; que os nórdicos têm Aurnes, Bah e Schjelderup; que a Eredivisie está representada pelos ex-Feyenoord Kokçu e Aursnes, e ainda por Pavlidis, e que do Seixal marcam presença António Silva, Tomás Araújo, Bajrami, Renato Sanches, João Rego, Florentino (o último sobrevivente do lagismo), André Gomes, Samuel Soares e Tiago Gouveia, ficando Trubin, Kaboré, Carreras, Beste, Barreiro e Arthur Cabral, quase como 'free lancers'. Perceber as dinâmicas deste puzzle deve ser o primeiro dos trabalhos de Bruno Lage.
DE SCHMIDT PARA LAGE
Que diferenças, entre o futebol de Schmidt e o futebol de Lage? A verdade é que o técnico alemão, nas três épocas que iniciou na Luz, foi chamado a ter uma palavra na construção do plantel, enquanto que Bruno Lage, nesta «Missão Impossível 2 » que aceitou protagonizar, deve contentar-se com o que há. Mas no modelo de jogo de um e de outro há diferenças sensíveis. Enquanto Schmidt, a partir de janeiro de 2023, e desde que perdeu Enzo Fernández, se conformou com a previsibilidade e o império do jogo interno, sem rasgo, equilíbrio, ou agressividade na recuperação da bola, o que lhe custou o declínio exibicional, a perda de pontos, e a incapacidade competitiva em termos internacionais, a ideia de jogo de Bruno Lage é outra: embora no Wolverhampton tivesse jogado com três centrais, para não quebrar com o que vinha rotinado de Nuno Espírito Santo, o ponto comum das suas equipas estará na extrema mobilidade de que pretende dotar os atacantes, apoiando o jogador mais avançado (no caso vertente, desta época no Benfica, de Pavlidis) com médios de ataque de extrema rotatividade, a quem é pedido um esforço máximo. Não será demais lembrar que no ano do título no Benfica, o esforço pedido a Félix e Jonas era tanto que normalmente Félix jogava os primeiros 60/70 minutos até à exaustão nas costas de Seferovic ou um pouco mais descaído nas alas e Jonas fazia o restante tempo, com as mesmas funções. Depois, havia um médio mais posicional, para garantir os equilíbrios, Florentino ou Samaris, raramente os dois, apenas acontecia quando o adversário assim o exigia.
E também deve ser lembrado o papel ofensivo reservado aos laterais, responsáveis por inúmeras assistências para golo, André Almeida e Grimaldo, com movimentações fluídas e compensadas. E, neste particular, das compensações, no futebol de Lage esteve sempre presente que cada um dava aquilo que tinha para dar, e nada mais, pouco ligando à questão dos estatutos. Esse poderá ser um assunto que o novo treinador do Benfica terá de abordar porque, se não fizer ver que a equipa deve estar acima dos egos, não chegará, por certo, a bom porto.
NOVO SISTEMA
Não será de estranhar que, para as primeiras impressões, o Benfica surja com um 4x1x4x1 bastante móvel, que por ser o sistema mais fácil de desenvolver pode, a seguir, permitir nuances mais elaboradas, sendo certo que Bruno Lage estará obrigado a observar algumas alíneas, descuradas pelo seu antecessor:
a) Pavlidis, que tem golo, é agressivo na recuperação da bola, e joga com a equipa, não pode ser deixado sozinho entre três defensores contrários;
b) As subidas dos defesas-laterais são fundamentais para dar largura à equipa e é imperioso que os médios desse lado lhes dêem a cobertura defensiva necessária, sob pena de serem criadas situações de inferioridade numérica aos defesas, nos momentos de transição defensiva do adversário: médio que não defenda não pode jogar na equipa do Benfica.
c) Um dos quatro médios deverá ser mais equilibrador, enquanto que aos outros será pedido que desequilibrem o adversário entre linhas;
d) A defesa deverá jogar tão subida quanto possível, e o espaço entre este setor e o ataque nunca poderá superar os 30 metros, sob pena de tornar completamente ineficaz qualquer tentativa de recuperação rápida da bola. Para que tal aconteça, não será permitido a nenhum jogador isentar-se das marcações.
Bruno Lage só terá sucesso se implementar estes princípios – o que conseguiu, no Benfica, até à pandemia, altura em que a equipa entrou em colapso perante os jogos à porta fechada – sem olhar a nomes, apenas ao contributo de cada um para o coletivo. Meio-campo à parte, onde continuam a subsistir algumas dúvidas (se Renato Sanches estiver bem é uma coisa, caso contrário, a coisa muda de figura…), o plantel do Benfica oferece garantias de poder fazer muito melhor do que vinha a ser conseguido por Roger Schmidt. Nos quatro dias que terá para trabalhar com todo o plantel até ao jogo com o Santa Clara, Bruno Lage vai precisar de entrar na cabeça dos jogadores e dar-lhes uma injeção de confiança e autoestima. A primeira batalha é psicológica, porque não terá tempo para mais. Depois, virão as rotinas e os refinamentos. Que medrarão tão mais depressa quanto forem desenvolvidos em cima de sucessos.
AS NOVIDADES NA LUZ
O último fôlego do mercado trouxe três novidades – todos jogadores internacionais pelos seus países – capazes de atacar a titularidade.
Issa Kaboré, 24 anos, 40 vezes internacional pelo Burkina Faso, em quem o Manchester City detetou potencial (como aconteceu, por exemplo, com Pedro Porro, num lote de cerca de 150 jogadores que os citizens têm emprestados por esse mundo fora), chega à Luz depois de quatro épocas consistentes, em que realizou 104 jogos por Mechelen, Troyes, Marselha e Luton. Muito elogiado por Paulo Duarte, que o lançou na seleção burquinesa, e lhe atribui capacidade ofensiva e grande disponibilidade para o trabalho – dois dos atributos mais valorizados pelo Terceiro Anel, que nunca se apaixonou por Bah –, Kaboré deverá estar preparado para a responsabilidade de atuar nas costas de Ángel Di María, e estar pronto a responder defensivamente sempre que o astro argentino não puder fazê-lo, ao mesmo tempo que deverá inserir-se num modelo de jogo que valoriza a subida dos laterais.
Já Zeki Amdouni, que contabiliza 19 presenças na seleção A da Suíça, tem sido muito regular na utilização, desde os tempos do modesto Étoile Carouge até à Premier League e ao Burnley, onde fez 36 jogos. Pela mobilidade que possui, pode movimentar-se como Rafa e fazer permutas com Akturkoglu, deixando Kokçu numa tarefa mais de último passe e remate de meia-distância, numa lógica de 4x1x4x1, que tenha Di María na direita (e provavelmente, mais cedo ou mais tarde, Aursnes a defesa esquerdo). Das movimentações horizontais e especialmente verticais de Amdouni e Akturkoglu pode beneficiar grandemente Pavlidis, que passou a maior parte do tempo das quatro jornadas entretanto disputadas, numa penosa solidão.
Se Bruno Lage se mantiver fiel ao futebol por que tem mostrado preferência, restará apenas um lugar para ser atribuído a Florentino, Leandro Barreiro ou Renato Sanches, alguém que se preocupe com os equilíbrios da equipa, e saiba pautar o jogo e recolher a bola entre os centrais.
Pelo que ficou dito, percebe-se que não faltam soluções ao Benfica, faltará, isso sim, tempo para entrosar as peças, algo que Bruno Lage vai ter de fazer com o comboio em movimento e num ritmo, com a entrada em campo da Champions, de crescente exigência.
Porém, se rapidamente perceber as dinâmicas do balneário; se encontrar uma fórmula que acima de tudo seja equilibrada entre defesa e ataque, e ao mesmo tempo privilegie a pressão alta e a equipa curta; e, muito importante, se conseguir entrar na cabeça de todos os jogadores, fazendo-lhes ver que a época é longa, os jogos são muitos, as substituições são para ser usadas de maneira a manter a intensidade alta e a rotatividade é fundamental para precaver lesões, então terá boas hipóteses de ter sucesso nesta sua segunda passagem pela Luz.
JOGADORES E ADEPTOS
Uma palavra para os jogadores: até agora, a mira dos adeptos esteve apontada a Roger Schmidt e, por tabela, por vezes a Rui Costa. Porém, será bom que tenham consciência que a partir de agora também cada um deles será responsabilizado de maneira diferente, como sucede, aliás, sempre que há uma chicotada psicológica. Porque se muda o treinador e fica tudo na mesma, a culpa passa a ser de quem anda dentro das quatro linhas…
Finalmente, uma palavra para os sócios e adeptos do Benfica, que têm sempre a última palavra nos atos eleitorais, e a penúltima quando se manifestam, durante os jogos, a favor ou contra, e que assumiram um papel relevante no despedimento de Roger Schmidt, ao chumbarem o futebol que os encarnados estavam a praticar. Num novo ciclo, com o conta-quilómetros a zero, perante a alteração das circunstâncias, será normal que alguma da pressão tenha saído de uma panela que estava quase a explodir, e que a Luz volte a ser Inferno para os adversários do Benfica, e não motivo de pesadelos para quem joga de águia ao peito. Pelo menos até que os novos protagonistas possam ter tempo de darem provas do que valem e são capazes. Apesar disso, o jogo com o Santa Clara não deixará de ser uma prova de fogo, e a viagem a Belgrado uma espécie de prova dos nove, com a Assembleia Geral de dia 21 como pano de fundo."
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