"Houve dias, uma catrefada deles, que Portugal ganhou se não inteiramente por causa dele, por certo especialmente devido a ele.
Na fria Estocolmo, em 2013, cravou os traços mais fundos na pegada que deixará na seleção nacional quando, por três vezes, correu triunfantemente na direção da baliza e marcou o hat-trick contra a Suécia, a gloriosa tripla de golos que colocou Portugal no Mundial do ano seguinte. Cristiano Ronaldo tinha 28 anos. Exibia, então, um zénite das suas capacidades: explosivo na movimentação, ágil a desenvencilhar-se de adversários, letal a finalizar fosse com o pé direito, o esquerdo, a cabeça ou a parte do corpo que tivesse de ser, um esfomeado impossível de saciar no apetite por mais feitos, mais recordes, mais noites de glória que o elevassem a rasgar o céu.
Que nem uma cordilheira montanhosa erguida acima da linha das nuvens, o Monte Ronaldeste conheceu vários picos, sintoma de um futebolista descrente na hipótese de ter um só apogeu: no Europeu prévio a resgatar a seleção naquele play-off contra a Suécia, o capitão da seleção desmantelou a Holanda na fase de grupos, com dois golos e uma exibição épica (tinha 27 anos); marcou duas vezes à Hungria, uma delas de calcanhar, e fez uma assistência no derradeiro encontro da fase de grupos no torneio de 2016, contribuição profética que deu um empate a Portugal e o livrou do lado mais ardiloso do quadro até à final (aos 31 anos); rugiu heroicamente na estreia no Mundial de 2018 com três golos marcados à Espanha (aos 33).
Outros picos haveria por exaltar. Ronaldo é assim, as exibições estonteantes na seleção nacional são várias e farejar o seu trilho implica ir no encalço dos números, embora o futebol não se sirva deles como única unidade de medida, fazê-lo é ser enviesado e redutor, mas, ainda antes de alongar a longevidade nos relvados para longe da órbita dos trinta e até às imediações dos quarenta, o rasto futebolístico de Cristiano virou forçosamente tangível. Trata-se da pessoa que participou em mais de 30% dos jogos feitos pela equipa de Portugal desde a sua criação, que marcou 130 golos nessas 211 internacionalizações, ambos os registos insuperáveis no futebol de seleções, mais dois a incentivarem a frase que Ronaldo galantemente repete para dizer que tem um alvo nas costas.
Quem advoga ser perseguido por recordes rende-se à lei dos números, é uma necessidade inevitável e ainda Ronaldo tinha as aptidões físicas impecáveis, nos seus vintes, quando essa rendição insuflou que nem barriga a rebentar com os botões de camisa: deixou 450 golos no Real Madrid, onde ficou como o melhor marcador da história do clube, enquanto colecionou cinco Bolas de Ouro e chegou aos 141 golos na Liga dos Campeões, registo em que o píncaro também é dele. O português, com o tempo, virou um acumulador nato de feitos binários, tão obesos nas estatísticas que se passou a observar Cristiano sob as lunetas de quais seriam as próximas fasquias concretas que ultrapassaria e por onde conseguiria esticar mais a corda.
Esta recoleção de alguns feitos de Ronaldo constitui o tipo de louvo de que o português não precisa, o rasto que tem no futebol dispensa-o, os números podem ser enviesados se interpretados sem contexto, mas são o recheio mais sustentável dos factos e suportam um dos inquestionáveis que existe em Cristiano: ele é o melhor, mais importante, mais decisivo e influente futebolista que Portugal já teve e provavelmente terá na sua história.
E reconhecer esse óbvio, que é inatacável, não deveria equivaler a ser um sacrilégio defender outra clareza, cada vez mais límpida, em relação ao maior futebolista português de sempre.
Que aos 39 anos, o esculpido e por demais cuidado físico de Cristiano Ronaldo limita-lhe as capacidades, o alcance que consegue ter no campo e a abrangência da sua influência num jogo que seja jogado nos níveis mais exigentes do futebol, como foi é o caso deste Campeonato da Europa. E que a sua preponderância na seleção nacional, à semelhança de qualquer outro futebolista, deveria ser afinada consoante o rendimento que apresente agora, em vez da sublime prestação que outrora era capaz de suster consistentemente.
Afirmá-lo não é prestar um desserviço ao legado de Ronaldo, nem é ser ingrato, muito menos é desrespeitar o que Cristiano inculcou na história da seleção e da bola chutada em clubes. Serem essas as críticas disparadas, em sincronia e de forma visceral, para rebater qualquer defesa da sua descontinuação faseada da equipa nacional é que precipita a legião de admiradores que merecidamente CR7 tem para as mesmíssimas coisas que alegam estarem a ser perpetradas por quem ouse defender o ajustamento, hoje, do tempo em campo do símbolo-maior do futebol português de acordo com o que ele, hoje, é capaz de prestar à seleção: ao ofenderem não servem Ronaldo, ao insultarem não lhe estão a ser gratos, se injuriarem pelo simples motivo de não concordarem é que acrescentam a falta de respeito ao epílogo de um jogador extraordinário.
Louvar Cristiano Ronaldo não pode ser isentá-lo de ser avaliado, no dia a dia, à semelhança dos restantes jogadores, sobretudo quem discute a posição de avançado, do tipo de quem se esperam golos. Aplicar-lhe os mesmos filtros pelos quais os outros passam para aferir o sumo que dá no campo, aos 39 anos, não é uma diminuição do seu legado na seleção. Se ele tem a vontade, a paciência e a dedicação para manter a carreira em rolamento na Arábia Saudita, bem distante da exigência do futebol europeu, há que louvar tal perseverança e respeitá-la não é decretar que Ronaldo joga e ponto final.
Mas, quanto menor é o seu rendimento, maior é o escrutínio a quem se atreve a apontar a sua míngua de rendimento. Neste Europeu, o menor desempenho palpável e visível do capitão desenterrou as acusações de ingratidão e desrespeito dirigidas a quem defende o defensável. O futebol tem no rendimento o seu critério inatacável e evocar o passado de Ronaldo não atenua as carências do seu presente. Apenas constata o óbvio, como óbvio é que até um dos melhores futebolistas de sempre não escapa à idade.
O bom-senso é uma estrada de dois sentidos e o papel que Ronaldo pode ter na seleção - constatámos, no pós-Mundial do Catar, como ainda é suposto que o tenha, sem que tal seja explicado em concreto pelo selecionador - deveria ser julgado pelo jogador que é hoje, não de acordo com o que já foi.
No seu futebol feito não apenas de números, mas que há duas décadas o eleva a ser magnificado por eles, os dados logicamente refletem a míngua de Cristiano porque o tempo ganha a todos. Deixou 23 remates no Euro 2024 sem marcar um golo. Tocou, em média, 29 vezes na bola por jogo (o menor registo da sua decrescente tendência em Europeus ou Mundiais, desde 2010), bateu vários livres diretos e prolongou a seca de estar há mais de 60 sem converter um pontapé em golo em fases finais e 10 dos últimos 12 que fez na seleção foram contra seleções abaixo do 60.º lugar do ranking da FIFA.
Estes dados dizem respeito a Ronaldo apesar de não se deverem, por inteiro, ao capitão, que não estipula quem são os adversários de Portugal. Mas não invalida que por mais cuidado que dê à sua saúde, ao seu físico e à sua forma, nada estanca o esvaziamento de qualidades a que o corpo humano condena qualquer um. Ser avançado da seleção nacional e ter tocado oito (Chéquia), nove (Turquia), zero (Geórgia), oito (Eslovénia) e cinco vezes (França) na bola dentro da área adversária em cada uma das partidas de Portugal no Europeu não seria automaticamente pouco se golos houvesse a extrair dessa participação, feita ao longo dos 485 minutos (94% dos possíveis), isso sim um tempo que é muito e foi o maior que um jogador português de campo teve no torneio.
A visão, sobretudo desde o último Mundial, que olha para Cristiano Ronaldo com laivos de o jogador ser uma âncora fundeada que encrenque o jogo da seleção, surgiu, precisamente, da insistência em preservar o seu papel na equipa como se ele ainda jogasse com uma das suas versões do antigamente e um dos seus zénites que rendia golos, oportunidades, espaços e atenções desviadas nos adversários que ajudavam Portugal a acumular vitórias por se munir do provável melhor finalizador da história do futebol. Não priorizar o seu rendimento em campo não só ignora o defendido por Roberto Martínez - “As decisões no futebol são tomadas no terreno de jogo”, disse, quando foi apresentado -, como escancara a evidência que houve paredes-meias com Ronaldo neste Europeu: aos 41 anos, Pepe nunca foi questionado.
Porque, apesar da idade, o rendimento prestado pelo defesa central foi extraordinário.
Preservar Ronaldo desta forma, sem curar a realidade, e deixar que a luz finde sem um treinador e uma estrutura que adaptem o papel na equipa de quem tem as capacidades a findarem, isso, sim, é afetar a imagem de uma lenda - não teria sido Ronaldo mais ameaçador e disruptivo se reservado para a segunda parte dos jogos, quando o cansaço tolda a concentração dos adversários?, se o seu faro intacto para se desenvencilhar do marcador direto, na área, em movimentos curtos de engano, fosse lançado nesse período ou reservado para ter uma duração mais curta? Perdeu-se uma oportunidade de o sabermos, porque ao invés de uma gestão ponderada houve a omnipresença de Cristiano no relvado (só falhou os últimos 25 minutos contra a Geórgia).
Defender que ainda bem que assim o foi porque Ronaldo é Ronaldo, é o Cristiano que já deu incontáveis alegrias a quem torce pela seleção, não vai além de um exercício que confunde gratidão e respeito com o embaciamento do ecrã onde será exibido, para a posteridade, o legado lendário do jogador. O capitão da seleção nacional não sai beneficiado por o seu passado ser invocado quando surge uma avaliação do seu rendimento no presente. Ser-lhe grato não é isentá-lo da crítica. Ter-lhe respeito seria adequar o seu lugar que parece cativo na seleção a moldes que dessem à equipa o melhor que Ronaldo ainda alcança.
E não, a culpa de Portugal ter ficado pelos quartos de final do Europeu não é dele, nem de nenhum jogador isolado ou específico. Mas debater o futuro e olhar rumo ao Mundial de 2026, torneio onde a mesma mais talentosa geração de jogadores a coincidir na seleção irá ainda junta, assim as lesões e momentos de forma o permitam, deveria ser sinónimo de avaliar a preponderância que Cristiano Ronaldo tem. E a gratidão não nada tem a ver com isto."
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