"Não sou um especialista em Pascal (1623-1662). Bem longe disso. Mas, mesmo sem grande domínio do seu “cosmos” cientifico e filosófico, aquele seu pensamento: “o coração tem razões que a razão não entende”, muitos o conhecem e o invocam. Até eu. Os séculos XVII e XVIII são de larga e profunda influência cartesiana. É verdade que o dualismo antropológico cartesiano parece-nos, hoje, um erro, principalmente a todos nós os que já fomos, de uma forma ou doutra, mais ou menos “agentes do desporto” – parece-nos, repito, um erro gigantesco. Mas, no meu modesto entender, o “cogito, ergo sum” significa, antes de tudo, que a Verdade não é monopólio de uma elite religiosa ou política. Por isso, me agrada tanto a afirmação existencialista: “a existência precede a essência”. O ser humano faz-se, fazendo. Em vez da noção abstrata de ser, a sua noção concreta. Mas uma noção concreta da mulher e do homem tem de salientar que a afetividade, o amor, a arte, a poesia, o sonho, o ódio, a angústia são humanos também (a propósito, vem-me à lembrança o Del Sentimiento Trágico de la Vida, de Miguel de Unamuno). Ora, Di Maria, atual jogador do Sport Lisboa e Benfica, reingressou no seu primeiro clube europeu, depois de passar pelo Real Madrid, pelo Manchester United, pelo Paris Saint-Germain e pela Juventus e depois de ganhar o último Mundial pela seleção argentina. E, quando, no dia 6 de Julho de 2023, foi apresentado, perante a multidão ruidosa de 2500 adeptos, aos sócios benfiquistas, afirmou uma frase que ressoou triunfal: “Escolhi o Benfica, pelo coração”.
E todos os presentes (quase todos de camisola vermelha e águia ao peito) como numa apoteose única, repetiram a palavra mágica: “coração”! E tive a plena sensação, na tempestade de ovações subsequentes, que se espraiou até â avenida General Norton de Matos e a todo o Estádio da Luz – que o benfiquismo é uma nova religião sem Deus…
“Os meus sentimentos são únicos, inigualáveis. Voltar a minha casa é algo único, sinceramente. Estou completamente agradecido a todos, principalmente ao presidente que me deu a possibilidade de voltar outra vez a casa. É algo inexplicável. Tenho de agradecer a todos vocês, por me terem vindo aqui receber-me. Em Portugal não é normal fazer-se isto”- E Di Maria ficou de braços abertos (o microfone, na mão esquerda) também ele em êxtase. E continuou, emocionado: “Tive muitas propostas de muitos lugares, mas tinha a ambição, a vontade, o entusiasmo, a força de voltar a casa. E sinceramente escolhi com o coração. Esta é a realidade: escolhi com o coração e… nada mais!”. Passo agora a palavra ao jornalista Fernando Urbano do jornal A Bola: “Muitos adeptos receberam-no já com a nova camisola. I número 11 exibia-se nos manequins do corredor de acesso â loja oficia (equipamento ptoncipal e alternativo, mas também o de Kokçu e o de Otamrndi cuja renovação parece ter um valor de contratação). O entusiasmo era óbvio e mais eufórico ficou o povo, quando Di Maria mudou de tom e partiu para o futuro. Bastou soletrar um número para os decibéis subirem ao Terceiro Anel: “Sinto agora o que senti no dia em que cheguei, em 2017, a Lisboa. Quero trabalhar, continuar a tentar conseguir títulos. Este ano o Benfica ganhou o 38 e oxalá possamos, no ano que vem, ir pelo mesmo caminho e tentar conquistar o 39”. Após as palavras de Di Maria, um grito ressoou triunfal: “Viva o Benfica!”. E a apoteose correu de boca em boca, como se a mesma comoção reunisse, no mesmo frémito, toda aquela gente. Muitas vezes, diante de espetáculos como este, que assisti pela televisão, penso, de mim para mim: será o Benfica uma nova religião? …
Na revista Brotéria (Maio/Junho de 2013), Francisco Sarsfield Cabral, escreveu um artigo que me parece ainda atual, “Religião sem Deus?”. O articulista refere nele que, para algumas pessoas, é possível um “ateísmo religioso”. E acrescenta: “Kant escreveu um livro sobre a religião nos limites da simples razão, onde o religioso é fundamentalmente ético, sendo Deus como legislador supremo. Mas podemos encarar o imperativo ético (categórico, para Kant) sem referência a Deus, como um valor independente, auto-fundante? Decerto que a ética é autónoma. Não é verdade que, não existindo Deus, tudo seria permitido. Um agnóstico ou um ateu podem e devem reger-se por princípios morais. A ética não depende de um Deus pessoal, embora Este lhe confira uma força adicional, porque mais vigorosamente fundamentada.” (p. 495).Também eu convivo (e fraternalmente) com amigos que se confessam ateus e agnósticos. E digo mais: que tenho eu, que acredito em Deus, a ensinar a pessoas que dão a vida pelos mais autênticos valores humanos e rejeitam, honestamente, o mesmo Deus a quem eu rezo? Por isso, muitas vezes me lembro do pensamento de Max Horkheimer:”a teologia, para mim, é a esperança de que a injustiça, que caracteriza o mundo, não seja a última palavra” (Elipse da Razão, Zahar, Rio de Janeiro, 1976, p. 18). Poderia lembrar, a propósito, o Antero de Quental dos “Vencidos da Vida”, a quem Eça de Queirós, num arroubo de mística laica, chamava o “santo Antero”, um agnóstico de excelsas qualidades humanas, que provocavam a incontida admiração dos seus pares…
Di Maria, um “santo laico” também? O norte-americano Ronald Dworkin, poucos dias antes de morrer (volto ao artigo do F, Sarsfield Cabral) remeteu, para o New York Review of Books, de que era habitual colaborador, um artigo extraído de um seu livro Religion without God, onde critica, frontalmente o ateísmo militante de Richard Dawkins e de outros cientistas ateus. “Naturalmente que a posição religiosa de Dworkin está longe da perspectiva cristã, cujo centro é um Deus vivo, não o “motor imóvel” e impassível de Aristóteles. Um Deus que ama de tal forma os homens (e as mulheres, acrescento eu) que deu a vida por nós na pessoa do seu Filho”. Mas a ética é autónoma. Não abundo na opinião de Dostoievski que admitia: “Sem Deus, tudo é permitido”. Como já o salientei atrás, um ateu ou um agnóstico podem ter os seus princípios morais, que mereçam de mim o mais rendido respeito. Retorno ao artigo da Brotéria (Maio/Junho de 2013): “Claro que nem todas as religiões são iguais, como Bento XVI alertou na encíclica Caritas in Veritate”. Mas não é verdade que, em todas elas, se manifesta um universal sentimento religioso? E que, no âmbito de um rigoroso racionalismo crítico, este sentimento religioso nos pode falar de valores que vale a pena servir e amar? O ser humano é o único ser, neste mundo, cuja vida pode estar ao serviço de algo mais valioso do que a própria vida. É o que eu, afinal, quero dizer, lembrando o discurso emocional de Di Maria à multidão de benfiquistas que o recebeu."
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