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sexta-feira, 20 de janeiro de 2017

Até quando vamos evitar sorrir com o futebol português?

"O futebol português tem coisas notáveis. É pitoresco, por exemplo. É original, por vezes é exótico, é divertido, tem um ar festivo, é burlesco, enfim. Tem uma graça natural.
Não é perfeito, não senhor. Nenhum lugar o é. Mas tem algo singular: uma alma cheia. É espirituoso, sorridente e divertido.
É impossível esquecer, por exemplo, o dia em que Sousa Cintra dava uma entrevista à TSF enquanto seguia de carro, e acabou por entrar imprudentemente em despesas.
«Que caraças. Agora parti aqui o vidro do meu carro. É pá, que grande porra. Estava a beber uma água... É preciso ser estúpido, pá. Uma daquelas águas de deitar fora... Então não é que acabei a garrafa de água, ia a falar consigo ao telefone, pá, então não é que eu? Inacreditável. Como é que é possível eu fazer uma coisa destas? Pensei que tinha o vidro aberto... Como é que é possível uma coisa destas?»
Delicioso, não é?
Nesta altura, imagino, o leitor deverá estar a pensar o que é isso de uma água de deitar fora. Não sei. Mas Sousa Cintra era o rei das águas, construiu aliás um império nessa área, é provável portanto que tenha acesso a informações que a nós nos escapam.
Mas em frente.
Importante é sublinhar este tom sorridente, este ar risonho, este sentido de comicidade. O futebol português tem graça: em vários sentidos, aliás.
Lembro-me, por exemplo, de no último domingo ter sorrido quando entrava no Estádio da Luz. Ao meu lado, um pai com uma GoPro filmava a entrada dos filhos: um rapaz e uma menina, com meia dúzia de anos, seguramente não mais do que isso.
«Preparem-se, vamos entrar. É agora», dizia-lhes enquanto subiam as escadas para a bancada. As duas crianças, devidamente equipadas de encarnado, não escondiam o entusiasmo pela primeira vez que entravam na Luz. O pai, esse, filmava tudo.
Nessa altura, enquanto via aquela família encher-se de felicidade, não pude deixar de recordar outra história, mais antiga, mas na mesma ternurenta.
Conta a aventura de um senhor, quase septagenário, completamente apaixonado pelo FC Porto. Por isso tinha lugar anual no Dragão.
Há no entanto um pormenor determinante: o senhor era da Régua, a cem quilómetros do Porto. Mas não era isso nem os quase os quase 70 anos que o impediam de estar em todos os jogos no Dragão: fossem eles da Liga, da Liga dos Campeões ou da Taça de Portugal.
Por isso fazia frequentemente a viagem de carro, Marão acima e Marão abaixo, às vezes com companhia, a maior parte delas sozinho, pela noite fria e escura, só para alimentar aquele amor. Quase sempre chegava a casa, cansado, mas feliz, quando já era amanhã.
Até que um dia a doença se tornou mais forte: só nesse instante parou.
Para sempre deixou esta declaração de paixão pelo clube, que nos confirma que o futebol português vale a pena. Vale aliás a pena muitas coisas.
Vale a pena, por exemplo, por um Estádio da Luz coberto de encarnado até às orelhas. Vale a pena pelo Estádio de Alvalade cheio a cantar «O mundo sabe que». Vale a pena pelo som estridente do Dragão a gritar golo.
Vale a pena pelo golo de Salvador Agra ao Marítimo, vale a pena por Brahimi a passar por um, outro, e mais outro adversário, vale a pena por Jonas a domesticar uma bola selvagem com o toque dos predestinados, vale a pena pela capacidade que tem de descobrir talentos do tamanho de Gelson Martins.
Vale a pena pelo peito carregado de euforia com o título europeu da Selecção Nacional.
Vale a pena por tantas, e tantas, e tantas coisas. Vale a pena até, já agora, outra vez por Sousa Cintra. 
Por exemplo quando fazia uma viagem de carro entre Lisboa e Castanheira de Pera acompanhado de um jornalista. Quando chegou à portagem de saída da autoestrada, pensou ter encontrado um sportinguista. Mas estava a ser demasiado optimista.
«Boa noite, presidente», atirou-lhe o funcionário da portagem.
«Tudo bem consigo?», respondeu Sousa Cintra.
«Tudo bem. Presidente, preciso do título...»
«Qual, o campeonato?», reagiu Sousa Cintra, de sorriso nos lábios.
«Não, presidente: o ticket da portagem.»
Até quando vamos deixar que coisas sem importância nos impeçam de sorrir com o que é realmente agradável no futebol português?"

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