"MANAUS - Se algo me confunde é o à vontade com que os portugueses gostam de apontar as misérias alheiras. Chegam ao Brasil e procuram os pobres, os pedintes, as barracas e as favelas. Falam sobre a pobreza que assola o Brasil, sobre a tristeza dessa pobreza num país alegre. E esquecem. Eu, que vivo em Lisboa, que vivo de noite, que percorro as ruas e as vielas, não esqueço. Crianças que dormem sobre bocados de cartão; velhos deitados nas ombreiras das portas; pedintes de mão estendida. Conheço muitos pelo nome. Pela vida. No mais frio dos Invernos de Lisboa, o Costa suplica a quem passa que use o cartão multibanco não para lhe dar dinheiro mas para lhe abrir simplesmente a porta envidraçada que o tira do passeio durante a chuva da madrugada. Em Portugal há milhares como ele, com e sem passeio. Quando viajo, por África, pela América do Sul, pela Índia, não ignoro a miséria. Mas não a procuro como se fosse um postal para turistas, uma forma de me sentir bem com as misérias do meu país miserável. A miséria que mais me dói é a minha. Todos os dias saio de casa e vejo-a. Nua."
Afonso de Melo, in O Benfica
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