"D. Elisa Anissabana queria uma menina: o dia 25 de Janeiro de 1942 não lhe fez a vontade. Nasceu-lhe outro rapaz. Chamou-se
Eusébio da Silva Ferreira!
Em Lourenço Marques, os Janeiros eram quentes, asfixiantes, quase incómodos. Havia manhãs em que parecia que um cobertor de papa, daqueles velhos cobertores que se amontoavam nos baús dos avós, tapava a cidade, da Ponta Vermelha e do Quartel de Artilharia, entalado entre a Rua Chaimite e a Rua Coolella, até ao fim da Avenida Manuel de Arriaga, para lá da Fábrica de Sabão e do Forno Crematório, da Baixa a Malhangalene e Munhuana, e para lá ainda, nos caminhos de Xipamanine.
No bairro da Mafalala, onde vivia D.ª Elisa Anissabana, era hábito as pessoas dormirem a sesta em redes estendidas entre dois coqueiros. Ou trazerem para fora das suas casas pequenas e abafadas, colchões de palha que estendiam no terreiro, à sombra de uma acácia de copa achatada e flores rubras. Colchões de palha forrada a serapilheira riscada a vermelho e branco: foi assim que, bem longe de Lourenço Marques, em Madrid, os jogadores do Atletico Aviación, mais tarde conhecido por Atlético de Madrid, ganharam a alcunha de “colchoneros”.
D.ª Elisa Anissabana: mãe de Eusébio. Antes dele já tivera três rapazes. Queria uma menina, agora. O dia 25 de Janeiro de 1942 não lhe fez a vontade. Nasceu-lhe outro rapaz. Chamou-se Eusébio. Da Silva Ferreira. O Mundo saberia, a devido tempo, decorar-lhe o nome. E pronunciá-lo de todas as formas. Euzibiú, Ózébio, Iuzibiô, Ouzébiou...O Mundo não tardou a confundi-lo com Portugal.
“Chego a convencer-me de que, enquanto os outros bebés aprenderam a andar, eu aprendi a chutar”, diria Eusébio, dezanove anos depois, numa entrevista concedida a Carlos Miranda. Um ano depois de chegar a Lisboa e à Metrópole, como então se dizia, Eusébio já era O Eusébio, e tinha uma história completa para contar.
Disse e repito: Eusébio conta-se a si próprio. “Não me lembro de brinquedos, não me lembro de jogos ou de partidas. Lembro-me da bola. Sempre da bola. A trapeira, se coisa melhor não se conseguia arranjar, lá nos coqueiros, em desafios sem fim, sem prazos de tempo nem balizas medidas. Jogar à bola, fosse como fosse, era tudo quanto desejávamos”. (...)
Eusébio fala, o Carlos Miranda escreve, a gente lê: “Eu já andava numa escola, claro, e algumas vezes, bom... houve umas gazetas, a minha mãe não gostava nada que eu andasse enfronhado no Futebol, apertava comigo, que me importasse com a escola e me deixasse dos pontapés na bola, mas eu não sei explicar, havia qualquer coisa que me puxava, sentia um frenesim no corpo que só se satisfazia com bola e mais bola. O resultado de tudo isto era uns puxões de orelhas bem grandes e, uma vez por outra, umas sovas que não eram brincadeira nenhuma.”
De nada serviu. Os irmãos estudam, Eusébio não. Alguns chegam a completar o liceu, ele desiste no fim da 4.ª classe. Estava escrito: seria Doutor em Futebol. Honoris causa!
O pai morre-lhe cedo. Angolano de nascimento, trabalhava nos Caminhos-de-ferro de Lourenço Marques e jogara Futebol no Ferroviário. Tinha 37 anos: o tétano não escolhia idades. Chamava-se Laurindo António da Silva Ferreira, natural de Malange. Não chegou a ver jogar o filho. Lá, na Mafalala, Lourenço Marques, Moçambique, em 1958, D.ª Elisa Anissabana gritava por Eusébio, mas Eusébio não vinha. Ficara de ir buscar o jantar da família, agora maior: D.ª Elisa Anissabana tivera a menina que tanto queria, tivera até mais duas, e já somava seis rapazes. No regresso, faltava um. Faltava um no campo da bola de terra vermelha, estavam dez para onze, Eusébio era preciso. Esqueceu o jantar, esqueceu a família. O chamado da bola era mais forte do que a voz da mãe. E, ainda por cima, a Mafalala ganhara um clube de Futebol: Futebol Clube Os Brasileiros. Futebol Clube Os Brasileiros: nome de pompa e circunstância.
E o Brasil, em 1966…
Eusébio. Há nomes assim: esse ponto final parágrafo aí em cima poderia ser um ponto absolutamente final. Ou seja: o livro estaria pronto, concluído, perfeito. Porque a Eusébio nada se acrescenta. Exagero subjectivo!, exclamarão alguns. Estão no seu direito. (...) Convenhamos: Eusébio escreveu-se a si próprio. Agora vou falar de outro nome fundamental: Nelson Rodrigues. A ele se devem as mais belas páginas escritas em português sobre Futebol. E, ao contrário do que possam pensar, Futebol e Literatura têm muito em comum. Têm muitíssimo em comum.
Nelson Rodrigues: “Em Futebol, o pior cego é o que só vê a bola. A mais sórdida pelada é de uma complexidade shakespeariana. Às vezes, num córner mal ou bem batido, há um toque evidentíssimo do sobrenatural”. Era aqui que queria chegar: Eusébio é demasiado complexo para ser objectivo.
Revejam o filme do primeiro golo de Eusébio contra o Brasil, em 1966, no Campeonato do Mundo de Inglaterra. Ou melhor, revejam-no depois do golo. Ele corre, de braço no ar. A cabeça está erguida, imperial, reparem bem: há no seu olhar, que abarca todo o estádio de Goodison Park, em Liverpool, a consciência de que a história está a passar por ele, pela sua passada elástica, veloz, o redor move-se em câmara lenta, só ele tem vida para além da vida corriqueira, insignificante, só ele ganha luz para além dessa vidinha de que falava Alexandre O’Neill e que acabrunhava o País triste. Corre, corre, corre, Eusébio corre.
Está apenas a comemorar um golo, mas até disso dir-se-ia depender a sua própria existência. Aquela corrida parece durar horas e horas. Aquela corrida merecia durar horas e horas.
Prestem bem atenção, agora: ele eleva-se no ar como se tivesse as asas nos pés de um Mercúrio negro. O seu braço erguido estende-se para lá do estádio, quase tocando o céu num soco vigoroso, vibrante. Não tirem os olhos dele: deixem-no ficar assim para sempre na parede lisa da vossa memória. Dificilmente Eusébio poderá ser tão Eusébio.
Lá está o que disse há pouco: demasiado complexo para ser objectivo. Lá está o que disse Nelson Rodrigues: “O pior cego é o que só vê a bola”.
A bola aqui pouco importa: estava colada no fundo da baliza de Manga, guarda-redes do Brasil. De forma irreversível. Como Eusébio na aldeia branca da nossa memória."
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