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segunda-feira, 27 de fevereiro de 2023

Não mataram a cotovia do Benfica em Vizela, onde ganhar foi sobreviver


"Quando a época terminar, a viagem a Vizela ficará como uma das mais difíceis do campeonato encarnado, apesar dos números da vitória (0-2) que enganam, porque as melhores oportunidades foram dos anfitriões. Mas, apesar de discreto e algo eclipsado durante a partida, o João Mário que não era grande amigo do golo até esta época marcou dois (já vai com 19) e mostrou que é quem canta a melhor melodia na equipa

Se cada livro que ficciona nas suas páginas é um emaranhado de experiências de quem o escreve, extrapoladas em maior ou menor medida pela pena do autor, Harper Lee teve vida cheia de empatia, sensatez, bom-senso e ponderação, isso ou ter-se-á cruzado com alguém na posse destas e outras qualidades da mesma família de quem retirou o molde para inventar Atticus Finch. É do pai viúvo que cuida da prole de duas crianças numa pequena cidade do Alabama rural em “Mataram a Cotovia”, advogado de profissão e bússola moral do livro que difícil é não desejar que tivéssemos um humano com os valores todos nos mesmos lugares como ele.
Não serve este parágrafo livresco para colocar uma lomba antes de chegarmos ao futebol, de todo, se leram como esta excelsa personagem fala, reage, educa e argumenta na obra saberão que Harper Lee também poderá tê-la inventado como representação de tudo o que é percecionado como bom numa pessoa. Um ‘quem me dera que existissem mais assim’ que foi o que Roger Schmidt, não dizendo, deixou nas entrelinhas do que disse sobre Fredrik Aursnes antes de o Benfica pisar o tarefeiro campo do Vizela: o norueguês é “muito completo”, dá “sempre” equilíbrio, é “muito inteligente” taticamente, “corre muito” e o quantificador foi-se repetindo sem que o treinador quiçá esperasse tamanho eclipse na viagem ao norte.
Em Vizela, a tantas vezes brutal dinâmica dos líderes do campeonato, oleados numa máquina de pressão e contra-pressão afinadas, já capazes de orquestrar sincronias jazzísticas de passe com batimentos rock ‘n’ roll quando pretendem acelerar rápido jogadas rumo à baliza, foi emperrada por um organizado atrevimento dos anfitriões. Ousados a condicionarem qualquer bola que saíssem dos centrais do Benfica, colocaram sempre alguém a dar sombra a Aursnes - um 8 ao centro em vez de médio deambulante a partir de uma ala, como tem sido costume. Deixaram que fosse Florentino, a meio-campo, o jogador de maiores veleidades sabendo que não é a sua simplicidade de ideias que aloja o motor de arranque das pretensões ofensivas do adversário.
E o Benfica emperrou, engasgado nos próprios soluços, com o fiável Aursnes só aparecendo ocasionalmente à frente e João Mário, a outra bússola futebolística, talvez ele a maior, por certo a mais distinta quando em valsa com a bola, também era engolido pelo acumular de corpos ao centro que entupiam jogo. A esperteza do norueguês, logo aos 10’, nutriu uma triangulação à esquerda com Grimaldo e Florentino, ele rasgou uma pequena diagonal para receber bola na área e cruzá-la rasteira e matreira para trás, onde Guedes rematou por cima: foi a única construção calma lograda pela equipa em 45 minutos.
Tudo o resto foi uma sôfrega procura por adaptação aos calcanhares que os jogadores do Vizela mordiam em todo o relvado, provocando incertezas e erros. Em transição, os nortenhos eram lestos a porem um homem a correr e rapidamente lançá-lo, aos 19’ foi Milutin Osmajić que Otamendi se urgiu a varrer para evitar arrelia maior, nos 26’ apareceu Kiko Bondoso a desmarcar-se na área e rematar contra Vlachodimos. A valia vizelense estava neste frenesim e na bípede personalidade que evidenciaram quando o Benfica já se prevenia num bloco médio contra um adversário atrevido, trocando bola com critério e no pé para atraírem atenções, conspirando no jogo em posse que é costumeiro dizermos ser de ‘equipa grande’.
Tanto o Vizela se baloiçava para diante, corajoso e seguro de si, que as bússolas do Benfica ficavam órfãs de um jogo a jeito deles, das suas valias. Não que os encarnados perdessem armas - apenas recorreram a outras. Tão espevitados se punham os anfitriões pelo jogo que disputavam e as oportunidades que fabricavam, atiravam-se com números para frente que os atraiçoariam aos 38’. Perdida uma bola na área contrária, em três passes se viram a perseguir um foragido Gonçalo Guedes com os olhos cravados no chão, na bola que ia perder e a que acorreu para dividir um ressalto cuja sobra calhou em Neres. Aí surgiu a calma de cabeça erguida: na área, o brasileiro esperou pela chegada de João Mário, colocando a bola para ele rematar o golo na passada.
O Benfica feriu em transição e só ao ver os espaços disponíveis nos primeiros segundos após recuperar uma bola. Pensando e matutando, nada criava. Esse deserto a atacar em posse manteve-se e o Vizela, com o cheiro entranhado nas suas narinas, mais ousado ficou, revolto na maneira como se projetou mais ainda na segunda parte. O sorrateiro livre que bateu rápido para Claudemir, na área, rasteirar o remate salvo (51’) por Vlachodimos foi só mais um incentivo.
O cheiro a fragilidade inusual embalava o Vizela, premente a precipitar-se contra as intenções adversárias na saída de bola, nos primórdios onde Raphael Guzzo roubou um passe, Osmajić lançou logo Nuno Moreira e a relva de novo amparou o corpo do guarda-redes encarnado aos 53’ e aos 65’ assistiu-se ao apogeu dos da casa. Com pausa e paciência, a nutrirem um jogo curto desde trás, foram ultrapassando corpos de uma área à outra até Samu cruzar, Osmajić desviar à barra e nem a recarga ser bondosa com Kiko, que rematou ao poste. Dois beijos nos ferros na mesma jogada era o jogo a sorrir com fortuna ao Benfica.
Nenhum golo haveria para os vizelenses. Sem perderem a organização a campo atrás, onde o defesa central Bruno Wilson distribuiu a certeza de cortes e posicionamentos, tendo no pé o garante da intenção de uma equipa em querer jogar, perderiam gás pelos 70’. As substituições retiraram-lhes ímpeto enquanto as do Benfica, não o melhorando, estabilizaram-no com Aursnes na esquerda, Chiquinho devolvido ao meio-campo e Rafa a sprintar onde podia. Houve ainda Petar Musa, abalroado pelo central Anderson, expulso com um par de cartões amarelos vistos em nove minutos. A última dezena de voltas ao relógio já os teve com menos um jogador.
Foi aí que um Benfica anormalmente perro esta época se soltou com esse afagar de espaço. Já respirou, a bola viajando tranquilamente de pé em pé, indo a um lado para ser rasgada no outro, uma equipa a manejar adversários como jamais conseguiu nos 80 minutos anteriores. Grimaldo cairia na área rasteirado por Matías Lacava, bombeiro chegado tarde ao fogo. O penálti nos descontos reservou-se ao pé de João Mário, discreto e por vezes eclipsado na partida, mas certeiro nos momentos fulcrais. São já 19 golos esta época para o médio dos pequenos passinhos com a bola que não privava com o golo.
Sem que a expulsão de Roger Schmidt logo após o penálti - ao abandonar o relvado, gesticulou o resultado do jogo com os dedos das mãos na direção dos adeptos do Vizela -, a duplicidade da pegada de João Mário na baliza prova-o, mais ainda, como ‘a’ bússola do Benfica esta temporada. Massacrada por lugares-comuns há muito por quem o situa como carente de intensidade, subnutrido em raça ou outras apreciações-clichés que tudo concluem e nada dizem, o português é o mais influente no jogo ofensivo do Benfica, nesta nova versão até em partidas nas quais ele e a equipa se aproximam de alguma banalidade.
Ele sim é a cotovia do Benfica, a singela ave que Atticus Finch dizia ser “pecado” que criançolas em brincadeira com espingardas de pressão de ar apontassem a mira. “As cotovias não fazem nada a não ser cantar belas melodias para nós. Não estragam os jardins das pessoas, não fazem ninhos nos espigueiros, só sabem cantar com todo o sentimento para nós”, explanou a personagem de Harper Lee.
Até com a banda desafinada, João Mário consegue ser melódico."

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