"O jogo começa, é ele a servir, sai uma bomba da raquete como era de esperar de um tipo com 1,96 metros do chão ao cocuruto da cabeça e em quem a raquete, lá no alto, andará pelos dois metros e tal. A bola é-lhe devolvida e, à segunda pancada no encontro, Alexander Bublik faz um dócil amorti que o adversário ainda alcança, a custo, para a sua candura logo aparecer: com uma postura mole de corrida, o corpo sem qualquer pose competitiva, coloca a bola longe de Lorenzo Musetti, um talentoso tenista da nova geração que se atreve a proteger o legado da esquerda a uma mão, que acaba a correr desalmadamente em vão. Quem ganha o ponto ri-se, o sorriso é malandro.
Quando volta a servir, a pancada subsequente é outra vez um adoçar da bola para junto da rede e o amargo italiano chega-lhe ainda mais em esforço, tocando-a contra a rede. O sorriso maroto pinta a cara de Bublik. Chega ao 40-0 num ápice ao repetir a fórmula, desta vez a resposta de Musetti ao drop shot vai para fora do campo e ele não esconde o mesmo riso, de quem já conspirava a próxima. Para fechar o primeiro jogo, saca um serviço batido por baixo, gesto que era a pior das ofensas possíveis num court até há não muito tempo e faz quem está do outro lado da rede acorrer urgentemente à bola à qual se estica todo para a devolver e o conspirador, de novo casualmente, ser impiedoso perante o esforço.
No ténis da contrição imposta como doutrina ao mínimo devaneio e das regras das aparências, onde as extravagâncias devem ser suprimidas a bem de um código de conduta não escrito, Alexander Bublik acaba o ponto a alçar uma perna, esgueirar a raquete por entre os membros inferiores e inventar uma elegante tweener. “Isto foi o jogo mais extraordinário de Bublik”, ouve-se da narração, em inglês. O sorriso malandrino reaparece, ele volta ao fundo do campo e curva-se para a bancada enquanto atravessa a raquete diante da cintura. É a vénia do artista ao público para acentuar o aplauso e aumentar o ruído, até nisso o ténis consegue ser estranhamente inverso: um jogador acabou de ser brilhante, mais fora da caixa era difícil, mas a maior ovação surge só com o jogo parado, quando ele reage ao que ele próprio fez.
Reino de pouco espaço concedido a laivos de personalidade, o ténis é raro em divergentes de raquete na mão como Alexander Bublik, exatamente o tipo de jogador por quem confesso ter um fraquinho. Russo de nascença e crescido em Moscovo, maturou na fábrica de tenistas do país até entrar na vida adulta e a federação local o deixar de apoiar por haver tenistas que o ultrapassavam no rendimento e no retorno dado em campo. Sem dinheiro, deixou-se cativar pela asa aberta por um milionário do Cazaquistão apaixonado pela modalidade.
Decidido a canalizar a fortuna para dar, à força, uma cultura de ténis à nação que nem tinha courts suficientes para encher duas mãos, Bulat Utemuratov foi algo impaciente. Sem querer esperar pelos frutos das academias, dos treinadores e da prospeção que espalhou pelo território que afunilava a atenção desportiva para o futebol, as artes marciais e halterofilismo, quis cativar tenistas russos na periferia dos melhores - a troco de Utemuratov, que é como quem diz, do Cazaquistão, lhes financiar a carreira, passariam a competir sob a bandeira do país. Foi assim que Alexander Bublik trocou de alianças. É assim que um dos jogadores mais devotos ao entretenimento e com talento de sobra para o providenciar está no Open da Austrália.
Não é de esperar que o russo tornado cazaque tenha um raide de sucesso que o leve longe no primeiro Grand Slam da época, mesmo que esteja a viver um apogeu na carreira. Aos 26 anos, Bublik é o 27.º melhor tenista do mundo - no verão passado, chegou a ser o 25.º do ranking durante uma semana - e defrontará, na primeira ronda, Sumit Nagal, um desconhecido indiano situado uma centena de lugares abaixo na hierarquia. Terem sido empurrados para o court n.º 6 em Melbourne e o jogo começar às 3h20 da madrugada, hora pouco convidativa para assistir em Portugal e à torreira do sol australiano, reflete os parcos holofotes que focam no tenista que fica a dever a muito poucos em talento, mas cuja predileção para entreter o leva por caminhos pouco convencionais.
Bublik é o tenista que serve por baixo com frequência. Que tenta fechar pontos junto à rede virando a raquete ao contrário e batendo na bola com a pega. É quem tenta pancadas mirabolantes em situações de risco nas quais 99% dos jogadores optaria pela opção conservadora. “Ele tem um talento de loucos, uma mão incrível desde miúdo. Conhecemo-nos desde miúdos, ele sempre tentou esse tipo de pancadas”, disse, há uns anos e ao “New York Times”, Daniil Medvedev, um vencedor e finalista de Grand Slams que cresceu a jogar contra ele na Rússia e teve, no que é contável, um sucesso incomparável - Bublik tem três títulos ATP e outras seis finais jogadas. É precisamente isso, o que os separa, que mais encanta.
Para usar uma comparação, é mais difícil e improvável que no ténis haja um equivalente virtuoso bem-sucedido como Ronaldinho foi no futebol, vencendo tudo e sendo considerado o melhor do mundo enquanto ousava recriar-se com malabarismos onde a norma dita o dever da seriedade. Em qualquer desporto, é raro tais coisas coexistirem numa pessoa e, no ténis, o mais longe que viajámos foi à boleia da beleza de Roger Federer, que era uma anomalia capaz de bater qualquer pancada com elegância suprema e eficácia milimétrica. O suíço não se punha a fazer truques em court, nem a sua lenda se fez disso. Muito menos Alexander Bublik é um predestinado como Federer foi, a minha apologia não cai aí.
Prezo a contribuição do nouvel cazaque para o ténis porque, sem se levar demasiado a sério, não se rege pelos carris rígidos que a modalidade impõe e pouco parece pensar nas consequências imediatas - perder o ponto, ver-lhe fugir o ímpeto do jogo - de divergir num meio onde prolifera o protótipo de jogador que dispare pancadas no fundo do court, sirva como um martelo, segure a esquerda a duas mãos e seja consistente com cara robótica de concentração. Isto num circuito que também dita que quem esteja a assistir o faça com alguma supressão de entusiasmo vocal. No conteúdo, Bublik ser o terceiro tenista que mais ases tem por jogo, esta época, ou ter a maior percentagem de pontos ganhos no primeiro serviço, não é inteiramente original. A forma como integra isso numa fuga completa aos moldes é que serve para encantar.
Em Brisbane, onde jogou há semanas no torneio de aquecimento para o Open da Austrália e fez aquela série de pontos inusitada, também foi roubar uma batata frita literalmente ao pacote de um fã que assistia ao jogo mesmo ao lado do court. Não sei se lá para o meio espatifou uma raquete contra o chão, como já o fez inúmeras vezes e tão recriminado é pelos cânones do ténis. Há uns anos, quando a carreira não lhe corria tão bem, chegou a dizer que só jogava “pelo dinheiro” naquela fase, confidência que lhe foi difícil sacudir da sua imagem. Queixou-se de ser decontextualizado, mas a carapuça meio que lhe serviu por ele ser um talento que verdadeiramente só parece preocupado em divertir-se, primeiro que tudo.
Neste Open da Austrália que não tem Nick Kyrgios, outro maverick do ténis que se contentou em fazer o que lhe dá na real gana em vez de ir por onde as expectativas vindas de fora exigiam que fosse por ser dono de tamanho talento, Alexander Bublik veste a capa do divergente que a modalidade continuará a ver como excêntrico e estranho. A contas com lesões e sem pudor em mostrar a ausência de vontade em dedicar-se com tudo ao ténis, o australiano vai estar a comentar o torneio para um canal de televisão. Em campo, com um braço tatuado e só uma perna com meia até ao joelho, desengonçado na sua despreocupação com o que os outros acham que ele deveria fazer com o talento para o qual apenas ele é tido e achado, jogará o russo que agora é cazaque, para quem Daniil Medvedev arranjou a melhor descrição:
“Ele arrisca pancadas malucas talvez quando não há necessidade (...) Há tantos jogadores atualmente - incluindo eu - que pensam, ‘Se eu dizer isto, vai haver 10 comentários após o jogo a dizerem que não o deveria ter feito’. Todos pensamos nisto. Ele não.”"
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