"O Código de Ética Desportiva (2014, Lisboa, IPDJ) diz-nos que “o Espírito Desportivo deve ser vivido por todos os agentes, elementos-chave no exemplo a dar aos mais jovens. Deve ser concretizado dentro e fora da competição desportiva, devendo nortear a sua prática e constituir a ‘espinha dorsal’ da mesma.”
Entende-se assim o espírito desportivo como algo não só inerente aos intervenientes directos no «jogo» mas também em relação a todos os envolventes.
Os associados dos clubes pagam as suas quotas, os espectadores compram o seu bilhete e enchem os estádios - aplaudem, gritam, pululam… e, por vezes, insultam (insultam-se) ou agridem (agridem-se). Os competidores, cumprindo as regras ou não, procuram alcançar sempre a vitória - por vezes utilizando instrumentalmente meios ilícitos. Os dirigentes gerem as organizações para as quais foram eleitos com métodos e estratégias diferentes uns dos outros – uns mais válidos, outros nem tanto. Os árbitros… os treinadores… a análise poderia ser extensa!
Tudo isto será uma questão de educação? Uma questão de cultura? Uma questão de ética? Uma questão de “espírito desportivo”?
Bem… quando se prevarica não é de certeza uma questão de “espírito desportivo” – ou talvez seja… mas mais de falta dele. Ao evocar-se o espírito desportivo seria bom reflectir-se se na docência existe um “espírito pedagógico”, se na medicina existe um “espírito médico”, se na arquitectura existe um ”espírito artístico”… e por aí fora. A existirem são muito menos evocados.
Em obra recente (“O desporto debaixo de fogo – entre valores e perversidades”, Lisboa, Prime Books) demonstrei a bivalência do desporto… urge agora debruçarmo-nos um pouco sobre as origens (algumas) dessa mesma bivalência.
Com Kant (2003, “Pedagogia”, Madrid, Akal Ediciones) aprendemos que “a educação é o problema maior e mais difícil que pode ser proposto ao homem”. A educação visa formar indivíduos autónomos, emancipados e com uma identidade própria de modo a adaptarem-se a uma sociedade, a uma cultura, onde se inserem, mas apresenta-nos uma antinomia: “como cultivar a liberdade pela coacção?” – pergunta-nos Kant. E é este mesmo filósofo que nos diz que a educação concilia, através de uma legítima coacção, “a submissão [do indivíduo] com a faculdade de servir-se da sua vontade”.
É através deste antagonismo que se forma o ser humano, construindo-se um indivíduo com propensões altruístas e sociáveis mas simultaneamente com tendências egoístas e desintegradoras. Resume Kant numa outra obra esta ideia a um termo: “insociável-sociabilidade”…
Mais recentemente António Damásio (2017, “A Estranha Ordem das Coisas”, Lisboa, Círculo de Leitores) deixou-nos a ideia que o comportamento altruísta é passível de ser treinado e praticado na sociedade. Mas diz-nos também que existe a alternativa contrária. Não há garantias que sendo treinado e praticado na sociedade resulte sempre, “mas existe como recurso humano consciente, presente através da educação”.
Encarando-se o desporto como um meio educacional durante os períodos de iniciação e de formação, também o mesmo não consegue fugir a esta antinomia. Os valores que se pretendem inculcar no jovem praticante, tais como a cooperação, a amizade, a tolerância, a justiça ou a equidade esbarram com o individualismo, o egoísmo, a tentação da vitória a qualquer preço, a competição exacerbada.
Foi Kant que nos mostrou que a educação se torna no uso livre da razão moral dependendo dela que o indivíduo saiba utilizar a sua vontade pessoal e agir livremente. Mas a antinomia presente naquela leva a que a coacção passe a ser uma auto-coacção conduzindo o indivíduo a agir livremente mas em conformidade com o dever, ou seja, resistindo a tendências menos civilizacionais.
Encontramos o mesmo tipo de raciocínio em Freud (1997, “O Mal-Estar na Civilização”, Rio do Janeiro, Imago): “as duas premências, a que se volta para a felicidade pessoal e a que se dirige para a união com os outros seres humanos, devem lutar entre si em todo o indivíduo, e assim também os dois processos de desenvolvimento, o individual e o cultural, têm de colocar-se numa oposição hostil um com o outro e disputar-se mutuamente a posse do terreno”.
Nestes dois autores – o filósofo e o psicanalista – verificamos que é através de uma adaptação cultural que o homem acede à humanidade na sua plenitude (não se trata tanto de discutir o inato e o adquirido), tanto na sua evolução filogénica como ontogénica. Essa adaptação cultural pressupõe no indivíduo tendências altruístas e sociabilizantes mas também egoísta e desintegradoras. Vale a pena demorarmo-nos um pouco mais numa outra obra de Freud (1997, “O Futuro de uma Ilusão”, Rio do Janeiro, Imago): “(…) cada indivíduo é virtualmente um inimigo da civilização, apesar de ter que reconhecer o seu geral interesse humano. Dá-se, com efeito, o facto singular de que os homens, não obstante, ser-lhes impossível existir no isolamento, sentem como um peso intolerável os sacrifícios que a civilização lhes impõe para tornar possível a vida em comum. Assim, pois, a cultura há-de ser defendida contra o indivíduo, e a esta defesa respondem todos os seus mandamentos, organizações e instituições.”
A ética do desporto, cada vez mais ventilada diariamente, tem conseguido dar ao desporto um outro rumo? Pensamos que não e até Freud ao analisar o mal-estar na civilização já dizia que a ética deveria ser considerada como uma tentativa terapêutica… A presença de comportamentos exemplares no desporto tal como a existência de comportamentos reprováveis é uma realidade porque “tanto em nós como nos demais, encontramos sempre lado a lado uma solicitude pelos outros e motivos egoístas” (MacIntyre, A., 2006, “Historia de la ética”, Barcelona, Paidós).
Tal como a velha história contada pelos índios sobre os dois lobos dentro de nós… E quando o neto pergunta “– Qual o lobo que vence?” o velho índio responde: “– Aquele que tu alimentas!”"
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