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sexta-feira, 8 de fevereiro de 2019

Gonçalo M. Tavares e Frederico Nietzsche

"Tenho profundamente arraigada no meu espírito a convicção de que há, de modo sublime, no escritor Gonçalo M. Tavares, o ficcionista e o filósofo, como hoje em raros dos seus pares. Por isso, nele, parece tanto mais fácil desvendar a realidade quanto mais compósita e complexa ela se apresenta. Ocorre-me, neste momento, a velha questão: são tantas as filosofias quantos os filósofos? Que em cada época a filosofia e o modo de filosofar são diferentes, não duvido. E que são polémicos também, por que duvidar?
Não é verdade que tudo o que emerge, na Filosofia e nas Ciências, nasce fatalmente entre o fervilhar de críticas aceradas dos mais diversos sectores e após lutas (normalmente, sem efusão de sangue) entre velhas e novas doutrinas e orientações? Não são um problema científico, ou um conceito filosófico, mais um problema do que uma solução? Demais, com mais ou menos aparato científico, o conhecimento e as próprias sociedades modernas anseiam pelo futuro, cultuam a mudança, enquanto o conhecimento e as sociedades primitivas recordam em demasia o Passado e têm um culto, duro e firme, da permanência. Gonçalo M. Tavares é um jovem: ainda não dobrou os 50 anos de idade. Dele, José Saramago, sempre altivo e frontal, na análise dos problemas e das pessoas, disse: “Há um antes e um depois de Gonçalo M. Tavares”. E há! Como um antes e um depois de Frederico Nietzsche! E Gonçalo M. Tavares é o mais nietzscheano dos nossos escritores! Todos nos lembramos daquele texto célebre (que não é um exemplo de modéstia, acrescente-se) em que Freud evoca as três grandes revoluções que salpicaram de muitas dúvidas o afã narcisista do humanismo. A primeira revolução, dita cosmológica, é a de Copérnico (1473-1543). Nela, apresenta-se um novo sistema do mundo, onde o sol é o centro. Recordemos a sua obra mais célebre, De revolutionibus orbium caelestium. A segunda revolução é da autoria de Charles Darwin (1809-1882) e diz-nos, com alguma meticulosidade (cfr. Origem das Espécies) que a evolução animal-homem se completa, sem qualquer finalismo divino ou natural. O papel essencial do acaso é de referir-se, no estudo do darwinismo. A terceira revolução é a do próprio Sigmund Freud (1856-1939), que defende a tese da existência de um inconsciente condicionando, em boa parte, a vida consciente de cada um de nós. Darwin foi médico mas, deverá acentuar-se, as suas convicções epistemológicas e filosóficas eram empiristas e positivistas (cfr. Essais de psychanalyse, Payot, Paris, 1981 e Mal-estar na civilização, Imago, Rio de Janeiro, 1973).
Friedrich Nietzsche (1844-1900), concluídos os estudos em filologia clássica e a leitura atenta de Arthur Schopenhauer, publicou A Origem da Tragédia, em 1872. Os encontros, as amizades e o convívio com artistas e escritores, onde se chocavam e referviam as ideologias mais diversas; uma psicopatologia que paulatinamente lhe provocava lapsos, cada vez mais frequentes, de lucidez e de memória; a ausência de talento conciliador e de justiça no procedimento com as pessoas – fizeram de Nietzsche, nomeadamente a partir de 1889, um doente em plena decadência das suas faculdades. Aliás, faleceu sem ter recuperado a razão. As suas principais obras, no meu modesto entender: A Origem da Tragédia e Humano, demasiado humano e A gaia ciência e Assim falava Zaratustra e Para além do bem e do mal e A genealogia da moral. Quem se aproximar da obra de Nietzsche, com ponderação e estudo, depressa concluirá que Nietzsche nada tem de filósofo universitário, nem versando uma terminologia rigorosa, nem adiantando fórmulas lapidares na classificação dos principais filósofos. Parece, se bem penso, um poeta e um ensaísta, implacável na luta contra o platonismo e o cristianismo e proclamando, sem cansaço, a “morte de Deus”, que o mesmo é dizer: a morte da cultura europeia de que é principal fundamento a mensagem judaico-cristã. E porque, em Nietzsche, são tão inflamadas, tão violentas as críticas a Platão e a Jesus Cristo? Porque o corpo, o sentimento, o desejo são desprezados e vilipendiados por Sócrates e Jesus; porque Jesus afirma: “o meu Reino não é deste mundo”, não manifestando assim uma imparável vontade de mais poder (não é a filosofia de Nietzsche uma ontologia da vontade de poder?); porque o cristianismo, tirante uma ou outra excepção, se caracteriza pela timidez, pela fuga à competição, por ser de facto a moral dos fracos. Das suas virulentas catilinárias ao platonismo e ao cristianismo, Nietzsche faz sua, com estrépito, a moral dos fortes – que é individualista e conquistadora; não aceita valores estabelecidos; encontra-se intimamente associada à ideia do “super-homem”; assume, sem ambages, a “luta pela vida” e o triunfo do mais forte, duas ideias colhidas em Darwin. Para mim, portanto, a Copérnico, Darwin e Freud, deverá juntar-se Friedrich Nietzsche, na subversão do humanismo, na recusa do dualismo que informa a vida toda da cultura ocidental. Logo no alvorecer da Filosofia, em Parménides, a filosofia europeia é dualista, metafísica, idealista e rigidamente hierarquizada. Não era por mero acaso que a Europa se encontrava devastada, empobrecida, dividida, corroída pelo desânimo, a braços com uma perigosa desorientação mental.
Sem criticar desapiedadamente a cultura ocidental, como Nietzsche o faz, Gonçalo M. Tavares, no seu livro (que é indispensável ler, para verdadeiramente compreendermos o seu autor), Atlas do Corpo e da Imaginação (Caminho, Lisboa, 2013) argumenta: “No prólogo em verso de A Gaia Ciência, Nietzsche escreve dois versos (que intitula “Subir”): Como é que se deve atacar a encosta? Sobe e não penses nisso. Há, na simplicidade desta resposta, uma evidência: agir pressupõe a expressão de uma novidade, de uma certa surpresa. Se não considerarmos as repetições de um gesto. Estamos, nas acções, face a um mundo que está a acontecer naquele momento, um corpo que se está a libertar da posição anterior. O movimento pode ser visto, assim, como uma novidade, por um lado, e uma libertação do passado, por outro. Em cada movimento o corpo diz: eu já não sou o corpo que fui” (p. 243). E Gonçalo M. Tavares, continuando a versar o tema mobilidade-imobilidade, observa, sabendo que a vida não é um sistema, nem cabe em qualquer sistema: “A imobilidade é não sair da posição anterior, trata-se de uma ligação fixa, não desejada, ligação ao passado. Diríamos mesmo que, em termos de movimento, a imobilidade é a manifestação de um excesso de memória corporal; de uma memória que não permite que o corpo avance, que o corpo se torne presente, novidade”. Por isso, “a imobilidade é ainda, e voltando à análise dos versos aforísticos de Nietzsche, um excesso de pensamento sobre o que fazer a seguir. A imobilidade face a uma encosta existe, quando corpo está centrado na pergunta: Como é que se deve atacar a encosta? Eis pois que a compreensão do que se vai fazer se torna um obstáculo. Compreender é não subir. Subir é compreender durante o movimento” (pp. 244/245). Como em Nietzsche, afigura-se-me que em Gonçalo M. Tavares quando a lógica prevalece, consciente e perseverante, sobre a vida, a imobilidade acontece. Foi Sócrates quem descobriu o “conceito”. A “maiêutica socrática” faz gorar a força do instinto, para que ela se enquadre, inteira, na lógica idealista do conceito.
Voltemos a Gonçalo M. Tavares: “Deixar de pensar nunca matou ninguém. Ninguém morre por falta de pensamento. No entanto, morre-se por falta de oxigénio, de alimentação, de água, etc. Estamos face a uma separação perturbante entre coisas, diríamos essenciais: coisas que são indispensáveis à sobrevivência individual e coisas acessórias que a sobrevivência individual pode dispensar (como o pensamento racional e organizado). Qualquer animal morrerá, não por falta de racionalidade intelectual, mas por outros motivos bem mais prosaicos e materiais. O pensamento é um acessório da existência; é para um Homem uma espécie de luxo: já que estou vivo, por que não pensar?” (pp. 245/246). Píndaro (a quem se atribui a frase: “Homem, torna-te no que és”) na nona Ode Olímpica, canta a celebrar a vitória olímpica, no Pancrácio, de Efarmosto de Opunte, em 466 a. C.:
“O que vem com o nascimento é o mais poderoso que há.
Mas muitos homens procuram obter a glória
com excelências que são aprendidas.
Mas, sem um deus,
uma situação não piora por ser silenciada.
Há, sem dúvida, muitos caminhos
que levam mais longe do que outros,
e um único cuidado não nos há-de alimentar a todos.
Íngremes são os caminhos da perícia.
Mas, ao ofereceres uma canção por este prémio,
ousa gritar bem alto,
que este homem nasceu por acção divina
com mão hábil, membros rápidos e poder no olhar.”
(Píndaro, Odes Olímpicas, tradução de António de Castro Caeiro, abysmo, Lisboa, 2017, p. 42).
O melhor atleta, o melhor bailarino “nascem” e, competindo, desenvolvem o instinto, o natural, digamos em linguagem moderna: o biológico. De facto, a pedagogia grega não deixa de defender tenazmente que o talento, a vocação não percam a polémica inclemente, a combatividade, o agôn… para desenvolver-se! E como? Pela vontade de poder! A vida, toda ela, é uma expressão da vontade de poder. Mas Nietzsche, se não é um homem de contumélias, de galanteios, de suave cultivador de elegâncias, a besta esplêndida também não cabe na sua ideal vontade de poder mas, sim, a capacidade de criar novas perspectivas, já que a verdade resulta da perspectiva, dos novos possíveis que se escolhem, entre inflamados polemistas.
Daí, dado o pluralismo agonístico das perspectivas a necessidade de “pensar em movimento”. E o facto de, na vida, toparmos “dois tipos de homens, portanto (quase que se poderia criar uma nova divisão): os que pensam melhor imóveis e os que pensam melhor, estando em movimento. Também as categorias silêncio-ruído são significativas e claramente poderemos também conceber dois tipos de pensadores: aqueles que necessitam do ruído e os que necessitam de silêncio. E seria interessante estabelecer uma categoria de pensamentos e ideias, de acordo com as condições em que surgem. Se assim fosse, teríamos pensadores e pensamentos ruidosos e pensadores e pensamentos silenciosos; teríamos ainda pensadores e pensamentos imóveis e pensadores e pensamentos móveis. E etc.” (Gonçalo M. Tavares, op. cit., pp. 474/475). Se conheço o autor do Atlas do Corpo e da Imaginação, pensadores móveis (e apetece-me abrir ao acaso tantas páginas da sua obra) julgo divisá-los, entre outros, em Nietzsche, em Wittgenstein, em Bachelard, todos eles gente que via o horizonte de nuvens densas e arroxeadas, sopradas por um silêncio sem esperança, isto é, imóveis como um mostrengo. Enfim, um mundo (tinha-o dito Nietzsche, em tom marcial e decisivo) que morrera, com a “morte de Deus” e era preciso transformar e superar. O Gonçalo M. Tavares não é de uma beligerância ruidosa, mas faz suas as palavras do Nietzsche de A Gaia Ciência: “A consciência é a última fase da evolução do sistema orgânico, por consequência também é aquilo que há de menos acabado e de menos forte, neste sistema”. Por isso, os instintos pensam melhor do que a consciência. “Há, deste modo, nos movimentos instintivos uma sabedoria milenar, o resultado de uma aprendizagem longuíssima (…). Os instintos corporais, a que poderíamos chamar movimentos estúpidos – porque não racionais, não intelectualizados – são afinal a base de sustento, no limite, da política dos homens” (p. 249). Nietzsche, Merleau-Ponty, Gonçalo M. Tavares actualizam o “esse est percipi” de Berkeley. Gonçalo M. Tavares, fazendo romance, um pensador complexo, ágil e subtil da pós-modernidade…
Adquiri, em Santiago do Chile, em tradução castelhana, o livro de Gianni Vattimo, Le aventure della differenza (em castelhano: Las aventuras de la diferencia - pensar después de Nietzsche y Heidegger, Ediciones Península, Barcelona, 2002) onde retive o seguinte: “Los artistas no deben ver nada como es, sino más pleno, más simple, más fuerte; a tal fin es necessário que una de sus características sea una espécie de juventud y de primavera, una espécie de ebriedad habitual” (p. 150). Esta “ebriedad habitual” não significa, em Gonçalo M. Tavares, uma capitulação diante dos jogos de opiniões, dos debates nos “media”, do fascínio pelo marketing das ideias, mas significa, verdadeiramente, o insólito, o impensado, o inatual nas exigências do vedetismo mediático. Kant formula assim quatro questões básicas da Filosofia: Que posso saber? (metafísica); que devo fazer? (moral); que me é lícito esperar (religião)? E, por fim, uma questão que engloba todas as restantes: o que é o Homem? (antropologia). Em toda a sua obra, também Gonçalo M. Tavares pergunta: o que é o Homem? Mas não uma ideia do Homem que aí está, mesmo que largamente podada pela crítica, antes um Homem nascituro, que se desenha e se pensa no âmbito da transcendência, num “atletismo da alma” ou, na dança, pois que, como Nietzsche o diz em A Origem da Tragédia: “É cantando e dançando que o homem se manifesta como pertencendo a uma comunidade superior: desaprendeu de andar e de falar, mas prepara-se para se elevar, dançando”. O Gonçalo M. Tavares é um mestre de um novo humanismo que se expressa no romance, no teatro, na poesia e no desporto e na dança; é sem favor um dos maiores ficcionistas do nosso tempo, com dinamismos improcedentes de escolas, ou de quaisquer outros reconhecidos critérios e que não objectará a funda influência que, nele, vêm tendo os filósofos, principalmente, Bachelard, Nietzsche e Wittgenstein – numa palavra só: a Filosofia! O futebol português carece de ideias e abunda em feridas por cicatrizar, em gestos desrazoados e onde não se consegue dominar o constante azedume. Hans-Georg Gadamer afirmou que “a palavra não existe senão no diálogo” (Langage et vérité, Gallimard, Paris, 1995, p. 165). A palavra é diálogo, como não há desporto sem competição, como ninguém é sem o outro. Esta a grande mensagem da obra de Gonçalo M. Tavares – certamente, um dos maiores ficcionistas da história da nossa literatura. Um dos escritores portugueses (e não só) que melhor sabe dialogar com as grandes sombras vivas da história da filosofia."

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