"Entre os gregos, uma velha tradição se impunha: era costume, representando a sua terra natal, o envio de uma personalidade às principais festas das principais cidades, como observador, que se distinguisse no infatigável “apostolado” das ideias que professava. Estes observadores, no entanto, embora todos eles de estilo sentencioso, nenhum deles participava nas festas ou figurava como orador, por qualquer motivo. Como em linguagem corrente por aí se diz: entravam mudos e saíam calados. Este observador, em língua grega, chamava-se “theorós”, de onde deriva afinal a palavra “teoria”. Portanto, a teoria resulta de uma pura contemplação em que o observador não interfere no objecto, ou no acontecimento, observados. Para o senso comum, na Grécia Clássica, a natureza existia independente do sujeito e, à semelhança do que fazia o “theorós”, por ocasião das festas, que espirravam cor e alegria, os estudiosos que pretendessem conhecer a natureza deveriam contemplá-la tão-só. E o “discurso contemplativo”, desde então, passou a chamar-se, com todas as letras – “teoria”. Deverá sublinhar-se que esta primeira fase do conceito de “teoria” contemplava apenas a Filosofia, De facto, a Ciência não nascera ainda. A Filosofia desponta, na Grécia, no século V, antes de Cristo, enquanto a Ciência nasce e começa a expandir-se, nos séculos XVI e XVII da nossa era, depois da invenção de instrumentos que ampliavam o alcance dos órgãos dos sentidos. Portanto, a singularizante matriz fundadora da Filosofia é o “discurso contemplativo” e a da Ciência é o “saber operativo”. Por isso, não deverá estranhar-se que a Ciência tenha escolhido a Matemática, como a sua linguagem preferida, nem que a dimensão quantitativa dos fenómenos seja a que melhor pode traduzir o que a Matemática determina. Com efeito, só podem medir-se o comprimento, o peso, a largura, etc., ou seja, os aspectos quantificáveis da realidade. Os aspectos, denominados “qualitativos” (os sentimentos, os valores, as crenças, etc.) porque não podem atribuir-se univocamente à realidade da natureza, não tinham qualquer validade científica.
Mas, como tudo é história, a palavra “observação” também tem a sua história. Na Grécia Clássica, “observar” equivalia a olhar sem interferir; a partir de Galileu, “observar” é medir, é de facto interferir. Dois exemplos: para ampliar o sentido da visão, inventou-se o telescópio e, para ampliar o sentido da audição, inventou-se o amplificador de áudio. O pai da ciência moderna foi Galileu Galilei (1564-1642). Naqueles anos distantes, porém, o conhecimento oficial determinava que a Terra era o centro do universo (não foi na Terra que encarnou o Filho de Deus?) e que o Sol e os planetas giravam, em permanente acção de graças, à sua volta. Galileu, rebelde. Inquieto, lúcido, fazendo (em linguagem moderna) uma “ruptura epistemológica” com o saber universitário e eclesiástico, apontava o seu pequeno telescópio, para o céu, e servindo-se da linguagem matemática, que considerava a linguagem onde se encontravam escritas as leis do universo, adiantou um discurso contrário ao permitido pelo Poder. E que a memória esculpiu, para sempre, nas lápides do Tempo: todos os astros do céu se movem e a Terra, por seu turno, move-se em torno do Sol! Pelas suas ideias, Galileu foi levado aos tribunais da Inquisição, julgado e sentenciado como herege e ainda condenado a retratar-se, ou seja, a desdizer publicamente o que já tinha dito… para escapar à fogueira! Bertolt Brecht procura transcrever as palavras de Galileu, no tribunal que o condenou: “Eu Galileu Galilei, filho do falecido Vicenzio Galileu, professor de Matemática e de Física, na Universidade de Florença, com 70 anos de idade, pessoalmente trazido a julgamento e ajoelhando-me diante de vós, Eminentíssimos e Reverendíssimos Cardeais, Inquisidores Gerais da Comunidade Universal Cristã contra a depravação herética (…).
E prossegue, dando aparente razão aos que tudo aproveitavam para denegrir o seu bom nome (só aparente, porque no mais íntimo de si mesmo ele sabia que os lugares comuns da prepotência e da ignorância representavam tudo o que ele condenava, repudiava). “Mas continua Galileu, porque fui mandado pelo Santo Ofício a abandonar completamente a falsa opinião de que o Sol é o centro e jaz imóvel em seu lugar e proibido de sustentar, defender ou ensinar a referida falsa doutrina, sob qualquer forma, é meu desejo demover do espírito de Vossas Eminências e de todos os cristãos católicos esta veemente suspeita, com razão mantida a meu respeito, E, por isso, com coração sincero e não de fingida fé, abjuro, maldigo e detesto as minhas heresias e os meus erros, assim como quaisquer palavras contrárias ao que ensina a Santa Igreja. E juro que jamais, no futuro, direi ou afirmarei coisa alguma que, verbalmente ou por escrito, possa tornar-me suspeito de heresia. E, em testemunho disso, com minha própria mão, assino o presente instrumento de abjuração, que recitei palavra por palavra”. E assim, embora as iras, os ódios, os histerismos, as perfídias da ignorância imperante, ridícula e arrogante (é sempre assim a ignorância, quando tem algum poder: é arrogante e ridícula) Galileu livrou-se da fogueira. O heliocentrismo já travara duras batalhas, corporizado por Nicolau Copérnico (1473-1543) e Kepler (1571-1630), contra o obsoleto geocentrismo. Nicolau Copérnico escreveu De revolutionibus orbium coelestium, adoptando as ideias de Pitágoras e Platão, ou seja, a harmonia matemática dos fenómenos da natureza e dando ao Sol (e não à Terra) o centro do universo. Képler via no universo a imagem da Santíssima Trindade: o Pai é o Sol, o Filho representam-no os planetas e o Espírito Santo corresponde às relações geométricas entre as diferentes esferas. Ainda com pouco rigor conceptual, Copérnico, Képler e Galileu não só criticaram, com veemência, os desmandos do seu tempo, como deixaram um legado inestimável à história do conhecimento científico. Razão tinha Isaac Newton ao declarar que via longe porque subira às costas de gigantes. O Homem é História, de facto, é reflexo e é projecto. E, como projecto, sem infringir determinadas regras, tem de equacionar a transcendência, a superação, uma certa visão do Absoluto. Mas é possível precisar, definir o Absoluto? No Tractatus logico-philosophicus argumenta Wittgenstein: “O justo método da Filosofia é o seguinte: nada dizer a não ser o que pode dizer-se”. E pode dizer-se o Absoluto? Mas quem não sente a sua necessidade?
Ao teórico tem correspondido um “saber contemplativo”. Com Galileu, os factos e os acontecimentos, para merecerem o adjectivo “científicos”, têm de representar-se matematicamente e portanto deverão ser experimentados e medidos. Não importava tanto os objectivos últimos, mas ampliar o conhecimento com a obediência fiel a métodos de descoberta, análise e justificação das interpretações. Só que… a partir de Albert Einstein, o criador da Teoria da Relatividade, as descobertas científicas são “livres criações do espírito humano”, produtos de genial intuição, de laboriosa erudição e de vasta cultura. Tenho comigo o livro de Einstein, Como vejo o mundo (Nova Fronteira, Rio de Janeiro) onde se lê: “Não existe nenhum caminho lógico que nos conduza às grandes leis do universo. Elas só podem ser atingidas, por meio de intuições baseadas em algo semelhante a um amor intelectual pelos objectos da experiência” (p.81). Mas, para um “amor intelectual” a concepção positiva da ciência que, para muita gente, ainda vigora nos nossos dias, não chega. A este respeito, em livro de François Jacob, que oportunamente tenho posto a bom recato, Le jeux des possibles, veja-se a lucidíssima prosa do seu autor: “Não tenho dúvidas de que a ciência se esforça por descrever a natureza e distinguir o sonho da realidade. Mas não devemos esquecer-nos que o ser humano tem tanta necessidade do sonho como da realidade. É a esperança que dá sentido à vida. E a esperança funda-se na perspectiva de transformar o mundo presente num mundo possível. Quando Tristan Bernard foi preso , com sua mulher, pela Gestapo, disse à sua companheira: Terminou o tempo do medo. Começou agora o tempo da esperança”.. Nas vésperas da Segunda Guerra Mundial, o filósofo Edmund Husserl declarou: “O progresso científico foi e é necessário, mas as ciências são incapazes de fazer um balanço moral de si mesmas”. Há interrogações sobre o sentido da vida, sobre o lugar do ser humano no universo, sobre a ética do conhecimento, que é preciso levantar. Também aqui os teóricos têm o seu lugar. Mas teóricos em constante interdisciplinaridade com a prática. Talvez, neste passo, seja de lembrar uma frase da minha autoria, que venho repetindo, há mais de 50 anos: “Quem só teoriza – não sabe! Quem só pratica – repete”. Eu sou um teótrico… em constante interdisciplinaridade com os práticos!"
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