"O desporto apresenta-nos situações motoras competitivas com competições escalonadas a todos os níveis (escalões etários, género, etc.) e de diversas formas (consoante as modalidades), e é uma actividade codificada possuindo regras e regulamentos que se consubstanciam num sistema institucionalizado organizado em torno de clubes, de associações e de federações (desde as nacionais às internacionais). É uma actividade apoiada em gestão de organizações, em planificações, em metodologias de treino, em estratégias, em tácticas e em técnicas onde o indivíduo (ou o colectivo a que pertence) se procura transcender alcançando a excelência.
Mas esta excelência – «areté» no tempo dos gregos e «virtus» no tempo dos romanos – sempre foi obrigada a ser do domínio público, onde o indivíduo (ou a equipa) pode sobressair e distinguir-se dos outros. Como refere Hannah Arendt (1), “para a excelência, por definição, há sempre a necessidade da presença dos outros, e essa presença requer um público formal”, pelo que o desporto só é desporto quando existe o espectáculo.
Se admitirmos que a génese do desporto se encontra na caça – o Australopithecus africanus já era caçador e poderá ter usado paus e ossos como armas, enquanto o Homo neanderthalensis era um hábil caçador e já caçava animais de manadas –, verificamos que “a caça apela para a cooperação, desde a organização da expedição até à captura da caça, sem omitir a divisão das tarefas antes e depois da captura. Por outro lado, o trabalho do indivíduo depende em cada instante do dos companheiros” como nos diz Serge Moscovici (2), o que pressupõe a utilização de estratégias de conjunto, pelo que constatamos que nesta se encontram todas as variáveis que pertencem ao desporto. É a caça a primeira actividade do homem onde surge a existência de um enquadramento com vista à adopção de estratégias de conjunto a fim de se tomarem as melhores decisões em relação ao fim em vista – “a caça engloba uma cadeia complexa de acções preparadas, organizadas, colectivas, um equipamento intelectual e técnico exigindo uma formação prévia dos indivíduos” (2).
E é ao começar a utilizar armadilhas na caça que o homem começa a planificar e a desenvolver técnicas e tácticas mais complexas tendo de se preparar antecipadamente para as aplicar – “a caça por meio de armadilhas e as técnicas anexas incluem o ataque e a defesa numa única acção” (2) – e passa do fabrico do utensílio individual para o fabrico do utensílio colectivo (a corda, a rede, a fossa ou as estacas para capturarem o animal). “O conteúdo técnico e intelectual da caça por meio de armadilhas testemunha o facto de a caça ser autodomínio, resistência, mas sobretudo astúcia” (2) – e é precisamente este último aspecto que é importante como mais-valia dos povos caçadores, pois “transforma uma posição de fraqueza numa posição de força e acrescenta ao aparente, o dado, a dimensão do simulado e do construído” (2).
Haveria outros elementos da tribo que, ao não participarem na caça, reservavam para si um papel de observadores ou de espectadores? Não o sabemos de fonte certa, mas a resposta provável será a positiva, pois sabemos que o espectador nasceu no momento em que o homem pré-histórico colocou na parede da caverna as impressões positivas e negativas das suas mãos, conforme defende Marie-José Mondzain (3). E se, por exemplo, as pinturas rupestres de mãos humanas nas grutas de Chauvet possuem uma idade de cerca de 30 mil anos, elas são precisamente de uma época em que os humanos eram caçadores-recolectores… A representação de cenas de caça em grutas pré-históricas podem indiciar-nos um duplo espectador: o que assistia à caçada e que admirava posteriormente a sua própria obra de arte.
Actualmente o desporto não subsiste sem o espectáculo e, consequentemente, sem o espectador, coloque-se este no estádio, no pavilhão, na mesa do café ou no conforto do seu sofá. Muitas têm sido as variáveis estudadas no desporto, no entanto parece-nos que o espectáculo tem sido a variável esquecida."
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