"O Boavista contratou, este mês, uma dezena de jogadores que estavam desempregados, entrou na Luz com cinco deles entre os titulares e de lá saiu derrotado (3-0), sem espinhas, pelo Benfica que não teve de acelerar muito para o conseguir. Numa partida tranquila, Andrea Belotti estreou-se a marcar e os encarnados garantiram uma noite de sono na liderança provisória do campeonato
No Football Manager, ou no Championship Manager de outrora, para os mais antigos, era comum no simulacro de futebol inventado para computador irmos inspecionar a lista de futebolistas desempregados a cada janela de transferências. Afinal, aquilo era um videojogo, e escrevo no plural porque chamar-lhe jogo será eufemístico, muitas vezes aquilo era um vício precisamente por ser uma simulação da realidade que caso precisássemos era fácil contratar um desses jogadores sem clube, colocá-lo a titular na nossa equipa e vê-lo logo a render em quantidade de golos, assistências, desarmes, sprints. Era fácil tudo bater certo.
Imerso no seu pantanal de dificuldades financeiras, tentando manter a cabeça à tona, pelo menos as narinas que lhe permitam respirar, o Boavista preencheu o seu carrinho de compras, neste fevereiro, com 10 tais jogadores já após o fecho do mercado invernal. Todos eles desempregados, uns com nome a ressoar nos tímpanos mais do que outros, os axadrezados entraram na Luz com metade dessas tentativas algo desesperadas de encher de oxigénio as boias salva-vidas, compactadas em três centrais, uma linha defensiva de cinco e numa equipa remetida à sua área sem a bola. Recuados, juntos e compactos, assim tentou Lito Vidigal aguentar um coletivo retalhado.
Não fosse o contexto paupérrimo de um clube parco em dinheiros, que teve salários em atraso esta época após várias janelas proibido de inscrever jogadores, era condizente afirmar que o Boavista se apresentou ao Benfica fiel a trabalhos passados do seu treinador. Mais justo é retratar que apareceu com uma colagem das suas próprias sobras, dos restos de precariedade a que gestões desmioladas vão obrigando uma equipa a fazer o que pode. E o possível, de momento, é resistir. À segunda partida no cargo, o 3-4-3 no papel de Lito Vidigal aguentou-se até à mesma estrutura no Benfica improvisar um bocadinho com os seus recursos incomparáveis.
Foi, no fundo, quando Álvaro Carreras se deixou de cerimónias e se soltou. Posto a central pela esquerda por Bruno Lage a aproveitar o abismo entre as turmas para testar, mais uma vez, uma linha de três na base da equipa, Belotti teve um tímido remate na primeira vez que o espanhol avançou, aos 18’. A partir daí, a sua química com o outro canhoto posto a fazer a ala, Sven Dahl, e a esperteza do desequilibrador inato que é Bruma, deram ao Benfica aproximações diversas à área. Numa incursão pelo centro-esquerda, Carreras descobriu um passe em Amdoni, que com uma receção orientada ilustrou o buraco negro de diferenças no relvado da Luz: livrou-se com um só toque de Sidoine Fognini, um dos desempregados contratados pelo Boavista que na última temporada jogava nas distritais do Porto.
O acentuado contraste entre os proveitos da ida às ‘compras’ seguiria. Andrea Belotti, um campeão europeu com a Itália em 2021, foi quem marcou o primeiro golo (28’) por generosidade de Bruma, feito o melhor assistente do campeonato e comprado ao SC Braga por €6,5 milhões, após se livrar de Vitalii Lystsov como faca quente a perpassar manteiga deixada fora do frigorífico em noite de verão. O defesa russo, pesado e duro de rins, jogava o ano transato na segunda divisão, em Leiria e foi outro dos ex-desempregados inscritos pelo Boavista, além de Tomás Vaclík, o guarda-redes contratado nos mesmos moldes que viu o novo avançado italiano do Benfica ainda a desviar um cruzamento contra o poste e a rematar outro, com estilo, pela relva, arrancando-lhe uma árdua defesa.
Incapaz de ligar quatro passes seguidos, sem armas nem uma estratégia que se espreguiçasse um pouco e, ao menos, lhes desse um ou outra bala. o Boavista raramente cruzava a fronteira da linha do meio-campo. Pior ficou no regresso do intervalo. Um dos seus melhores, com já vários anos a subsistir às agruras do Bessa, o incauto Miguel Reisinho cravou a sola da sua chuteira na canela de Kökçü e foi expulso, aos 52’, condenando a equipa à penúria mais do que ao sofrimento.
Na liturgia oposta, o Benfica esparramava-se numa circunstância que lhe dava jeito. Afetada por várias lesões, de novo com equipa algo feita por desabituais titulares, os encarnados foram juntando Bruma e Amdouni entre linhas, o primeiro a serpentear com dribles nos espaços curtos, o segundo ávido por armar um pé ou outro para rematar em força. Ambos tiveram os seus pontapés, à semelhança do italiano que joga com uma ligeira mochila no topo das costas, desamigado dos golos em anos recentes. Desastrado numa das tentativas, Belotti viu Tomás Vaclík a barrar o outro com mais uma defesa vistosa.
Quem emergiu do calvário de tormentas do Boavista, na verdade o único a vir à tona quando a Luz se apagou, seria o checo de luvas postas. Em tempos vencedor da Liga Europa com o Sevilha, com mais de meia centena de internacionalizações e dois Europeus jogados pelo seu país, só o guarda-redes manteve a equipa à margem de uma goleada das antigas. Saiu à corrida de Bruma, lançado por Belotti, para dar o corpo ao seu bruto remate, tendo ainda maior valentia depois, ao esticar-se todo e salvar com algum espetáculo uma recarga de Aktürkoglu na pequena área. Vaclík fez 11 defesas, seria eleito o melhor em campo.
Com a equipa moribunda, apenas a fazer o que um ocasional relaxamento do Benfica lhe permitia, nada pôde Tomás Vaclík, contudo, frente a tantas veleidades de um Boavista em retalhos. O extremo turco dos encarnados assistiu, com um curto passe, o golo de Pavlidis (70’), ambos entrados no jogo em simultâneo para fabricarem um golo na primeira intervenção no jogo e com pré-assistência de Kökçü, encarregue de converter um penálti não muito depois (78’). Mais do que confortável no jogo, o Benfica não precisava de acelerar muito o ritmo para machucar um dócil adversário.
Os encarnados nunca se abstiveram de aproveitar uma oposição deste tipo, um encontro com estas particularidades alheias. Se não tinha que carregar no pedal e cair nos ataques com tudo, puxando dos seus na intensidade, o Benfica escusou-se a fazê-lo ao sentir que o resultado era seu. Continuou a atacar, os cercos à área contrária não cessaram, a bola era umbilical em certos pés. A equipa não quis, nem precisava, espezinhar um corpo frágil, a agarrar-se à vida.
Bruno Lage lançou Nuno Félix e o estreante Diogo Prioste, par de miúdos para tomarem conta do meio-campo. Arthur Cabral teve convivência com Pavlidis. Os serviços mínimos foram esperando pela andadura do relógio, capatazes dessa simples missão em cumprir a tarefa. Com menos um e menos tanta coisa, mesmo um Boavista assim ainda aproveitou a moleza, vendo o adolescente João Barros, da esquerda para dentro, rematar uma bola em arco para Samuel Soares mostrar no jogo do que era guarda-redes. Já nos descontos, irrisório na tentativa, Rodrigo Abascal tentou um golo de antes da linha do meio-campo, nem assustando sequer o maior dos hipocondríacos futebolísticos no estádio.
Em ação já estavam, também, Steven Vitória e Abdoulay Diaby, o sexto e o sétimo jogadores sem emprego até há coisa de uma semana. Fora do campo, o Boavista tem feito por parecer um clube de simuladores e videojogos, um caos de gestão institucional que agora experimenta, na realidade, o costumava resultar no computador. Uma equipa envolta neste estado de coisas conveio, por estes dias, a um Benfica envolto em lesões e intermitente nas exibições. Nesta jamais esteve, o que é a melhor das novidades para os encarnados que foram para debaixo dos lençóis descansar com a provisória liderança do campeonato.
Em padrão axadrezado, os lençóis nunca estiveram tão maus."
Sem comentários:
Enviar um comentário
A opinião de um glorioso indefectível é sempre muito bem vinda.
Junte a sua voz à nossa. Pelo Benfica! Sempre!