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sábado, 11 de janeiro de 2025

Retrato de família


"A mesa estava posta. Ou quase. De facto, estavam lá os pratos, os copos, os talheres, os guardanapos. Estavam as cadeiras com os cachecóis da Selecção. Os camarões, a maionese, os queijos, os canapés, o folhado de alheira e presunto. As garrafas de vinho, o pão. Uma vela em cima da lareira com a fotografia de um familiar falecido para dar sorte. Mas faltavam as pessoas.
A televisão ligada com as equipas a entrar em campo e a sala ainda vazia. Alguém finalmente vem e grita para o resto da casa:
- Vai começar!
Na cozinha, a mãe Gabriela está agachada em frente ao forno a molhar o cabrito. A filha Rita tempera a salada, a filha Sónia abre minis e vai à varanda chamar o marido Rui que fuma cigarros com a cunhada Renata.
- Vai começar!
O pai Gustavo está na casa-de-banho a fazer uma reza para o espelho, cruzando várias vezes a mão em frente ao peito. Beija a santinha que tem no fio e sai para o corredor de onde se ouve a campainha. É o tio Américo, que entra e tira os sapatos.
- Anda, Américo, que vai começar!
Rui e Renata entram na sala a rir de uma piada que estavam a ver no telemóvel. Vem o pai Gustavo com um queijo fresco nas mãos e senta-se à cabeceira. Américo está na cozinha com a irmã, a colocar o patê que trouxe num pratinho. Da sala ouve-se o pai Gustavo:
- Já começou!
As filhas Rita e Sónia levam o patê, as saladas e as minis para a mesa. O tio Américo segue atrás delas. Sentam-se todos menos a mãe Gabriela que ainda está a finalizar o arroz de grelos. Sónia grita para a cozinha:
- Anda, mãe! Já começou!
A mãe Gabriela chega e senta-se. Finalmente, a mesa está posta com todas as pessoas dentro. Servem-se de vinhos, de cerveja, de queijos. Sente-se uma nervoseira que rapidamente é abafada por um lance mais perigoso para os franceses. A bola ronda a nossa área e todos param a olhar. Silêncio sepulcral.
A mãe Gabriela começa a "varrer", que é como quem diz a tentar soprar a bola para longe – hábito que foi ganhando ao longo dos anos de convívio com o marido e filhas e genros e noras e irmãos e tantos e tantos jogos que a família a obriga a ver. Não é que Gabriela não goste de bola, é só que chega a ser demais, tanto jogo, muito golo, demasiada ansiedade, conversas intermináveis sobre coisa nenhuma.
A bola sai de perigo devido ao extraordinário varrer da mãe Gabriela que soprou com tanta intensidade que agora já estamos nós na área francesa e pode ser golo, vai ser golo, foi quase golo, não foi golo. Voltam os comensais a olhar a mesa, a tirar camarões, a provar vinhos, a debater Bolas de Ouro.
- Eles são bons mas nós temos o melhor do mundo! - diz o pai Gustavo, enquanto come um camarão e deixa a cabeça no prato.
- Não vai comer essa cabecinha, Gustavo? - pergunta o genro Rui, afastando a discussão para outros carnavais.
- Eu, cá para mim, se me perguntarem, diria que entre Messi e Ronaldo venha o diabo e escolha… - solta tio Américo, apaziguador, enquanto mexe e degusta um tinto do Dão.
- Mas há alguma dúvida, Américo ? É o melhor do mundo e é português!
A filha Sónia vai a jogo:
- Ó pai, mas também ser português não é tudo. E, além disso...
- Schhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh...
Mãe Gabriela começa a varrer outra vez. A discussão e o golo francês que esteve demasiado próximo de acontecer. A bola aninha-se no colo de Rui Patrício enquanto a filha Rita, que é treinadora de futebol, deixa o seu parecer:
- Acho que estamos a recuar muito. Temos de pressionar mais alto.
- Ó filha, isto é mesmo assim. O primeiro milho é para os pardais. Deixa-os pousar…
- Não tarda nada e pousam é a bola dentro da nossa baliza. - Oiçam a minha mulher, que ela é que sabe. – diz Renata, ainda fustigada pelas memórias canarinhas de um 1-7 contra a Alemanha dois anos antes.
O genro Rui delicia-se com o folhado de alheira e presunto da cunhada Rita. Serve o tio Américo de vinho; serve a mulher Sónia, que lhe sorri. Dão um beijo. O pai Gustavo está concentrado no jogo, a mãe Gabriela dá um gole no rosé e aponta a mira para o genro:
- Come o folhadinho, irmão. Antes que o teu sobrinho dê cabo dele.
Tio Américo ia fazer uma piada a brincar com Rui quando Cristiano Ronaldo caiu indefeso no relvado. A mesa congelou. Congelaram os vinhos, as cervejas, o coração de Gustavo, as mãos das filhas Sónia e Rita, o folhado, o país. Ninguém teve coragem de abrir uma palavra que fosse, um desejo, uma esperança.
Uma borboleta ainda meio em traça aninhou-se na sobrancelha direita do craque que chorava prostrado a sentir a tragédia lusitana. O esplendor de Portugal caía e só restavam as cascas dos camarões e as ilusões de um povo em chuva. Rui lembrou-se de um excerto desse poema extraordinário do Jorge Sousa Braga:
"A borboleta que poisou
no teu mamilo perdeu
vontade de voar."
Mas fechou-se em copas. Não falou do poema nem avançou com teorias futebolísticas sobre a possibilidade real de ver naquele tormento um milagre dos deuses."

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