"A mesa estava posta. Ou quase. De facto, estavam lá os pratos, os copos, os talheres, os guardanapos. Estavam as cadeiras com os cachecóis da Selecção. Os camarões, a maionese, os queijos, os canapés, o folhado de alheira e presunto. As garrafas de vinho, o pão. Uma vela em cima da lareira com a fotografia de um familiar falecido para dar sorte. Mas faltavam as pessoas.
A televisão ligada com as equipas a entrar em campo e a sala ainda vazia. Alguém finalmente vem e grita para o resto da casa:
- Vai começar!
Na cozinha, a mãe Gabriela está agachada em frente ao forno a molhar o cabrito. A filha Rita tempera a salada, a filha Sónia abre minis e vai à varanda chamar o marido Rui que fuma cigarros com a cunhada Renata.
- Vai começar!
O pai Gustavo está na casa-de-banho a fazer uma reza para o espelho, cruzando várias vezes a mão em frente ao peito. Beija a santinha que tem no fio e sai para o corredor de onde se ouve a campainha. É o tio Américo, que entra e tira os sapatos.
- Anda, Américo, que vai começar!
Rui e Renata entram na sala a rir de uma piada que estavam a ver no telemóvel. Vem o pai Gustavo com um queijo fresco nas mãos e senta-se à cabeceira. Américo está na cozinha com a irmã, a colocar o patê que trouxe num pratinho. Da sala ouve-se o pai Gustavo:
- Já começou!
As filhas Rita e Sónia levam o patê, as saladas e as minis para a mesa. O tio Américo segue atrás delas. Sentam-se todos menos a mãe Gabriela que ainda está a finalizar o arroz de grelos. Sónia grita para a cozinha:
- Anda, mãe! Já começou!
A mãe Gabriela chega e senta-se. Finalmente, a mesa está posta com todas as pessoas dentro. Servem-se de vinhos, de cerveja, de queijos. Sente-se uma nervoseira que rapidamente é abafada por um lance mais perigoso para os franceses. A bola ronda a nossa área e todos param a olhar. Silêncio sepulcral.
A mãe Gabriela começa a "varrer", que é como quem diz a tentar soprar a bola para longe – hábito que foi ganhando ao longo dos anos de convívio com o marido e filhas e genros e noras e irmãos e tantos e tantos jogos que a família a obriga a ver. Não é que Gabriela não goste de bola, é só que chega a ser demais, tanto jogo, muito golo, demasiada ansiedade, conversas intermináveis sobre coisa nenhuma.
A bola sai de perigo devido ao extraordinário varrer da mãe Gabriela que soprou com tanta intensidade que agora já estamos nós na área francesa e pode ser golo, vai ser golo, foi quase golo, não foi golo. Voltam os comensais a olhar a mesa, a tirar camarões, a provar vinhos, a debater Bolas de Ouro.
- Eles são bons mas nós temos o melhor do mundo! - diz o pai Gustavo, enquanto come um camarão e deixa a cabeça no prato.
- Não vai comer essa cabecinha, Gustavo? - pergunta o genro Rui, afastando a discussão para outros carnavais.
- Eu, cá para mim, se me perguntarem, diria que entre Messi e Ronaldo venha o diabo e escolha… - solta tio Américo, apaziguador, enquanto mexe e degusta um tinto do Dão.
- Mas há alguma dúvida, Américo ? É o melhor do mundo e é português!
A filha Sónia vai a jogo:
- Ó pai, mas também ser português não é tudo. E, além disso...
- Schhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh...
Mãe Gabriela começa a varrer outra vez. A discussão e o golo francês que esteve demasiado próximo de acontecer. A bola aninha-se no colo de Rui Patrício enquanto a filha Rita, que é treinadora de futebol, deixa o seu parecer:
- Acho que estamos a recuar muito. Temos de pressionar mais alto.
- Ó filha, isto é mesmo assim. O primeiro milho é para os pardais. Deixa-os pousar…
- Não tarda nada e pousam é a bola dentro da nossa baliza.
- Oiçam a minha mulher, que ela é que sabe. – diz Renata, ainda fustigada pelas memórias canarinhas de um 1-7 contra a Alemanha dois anos antes.
O genro Rui delicia-se com o folhado de alheira e presunto da cunhada Rita. Serve o tio Américo de vinho; serve a mulher Sónia, que lhe sorri. Dão um beijo. O pai Gustavo está concentrado no jogo, a mãe Gabriela dá um gole no rosé e aponta a mira para o genro:
- Come o folhadinho, irmão. Antes que o teu sobrinho dê cabo dele.
Tio Américo ia fazer uma piada a brincar com Rui quando Cristiano Ronaldo caiu indefeso no relvado. A mesa congelou. Congelaram os vinhos, as cervejas, o coração de Gustavo, as mãos das filhas Sónia e Rita, o folhado, o país. Ninguém teve coragem de abrir uma palavra que fosse, um desejo, uma esperança.
Uma borboleta ainda meio em traça aninhou-se na sobrancelha direita do craque que chorava prostrado a sentir a tragédia lusitana. O esplendor de Portugal caía e só restavam as cascas dos camarões e as ilusões de um povo em chuva. Rui lembrou-se de um excerto desse poema extraordinário do Jorge Sousa Braga:
"A borboleta que poisou
no teu mamilo perdeu
vontade de voar."
Mas fechou-se em copas. Não falou do poema nem avançou com teorias futebolísticas sobre a possibilidade real de ver naquele tormento um milagre dos deuses."
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