"Eusébio para o centro do relvado e pôs-se a dar socos no ar. 120 mil gritaram «Ben-fi-ca!, Ben-fi-ca!, Ben-fi-ca!» e bateram com os pés no cimento. A Luz estremeceu...
A despedida emocionada a Eusébio no estádio fez-me lembrar o ambiente do antigo inferno da Luz, onde tantas e tantas grandes equipas sucumbiram ao medo cénico e ao ruído impressionante da multidão a puxar pelos encarnados. Eu sou do tempo em que se dizia que o Benfica partia com meio golo de vantagem por conta do terceiro anel. Nas noites europeias o ambiente era ainda mais impressionante: havia electricidade pura no ar. Que ruído prodigioso produzia aquela arqui-bancada!...
Por falar nisso: uma das impressões mais marcantes que guardo de Eusébio ocorreu precisamente na valha Luz, no dia 18 Abril de 1990, tinha ele 48 anos - portanto, já só jogava por fora. E ainda jogava muito, como veremos. O Benfica de Eriksson e Toni (e Silvino; José Carlos, Samuel, Aldair e Veloso; Paneira, Thern, Hernâni e Valdo; Magnusson e Lima) recebia o Olympique Marselha para a 2.ª mão da meia-final da Taça dos Campeões e o estádio, que na altura tinha capacidade para 120 mil pessoas, estava cheio como um ovo. No Velódrome de Marselha, 15 dias antes, eu viria o Benfica sofrer uma derrota extremamente lisonjeira (apenas 1-2) para a dimensão do massacre perpetrado pelos senhores Jean_Pierre Papin, Chris Waddle, Didir Deschamps, Frank Sauzée e Mozer (é veradde, o Mozer). O golo do Benfica foi marcado por Lima, um latagão brasileiro bom de violão trazido pelo empresário Manuel Barbasa. Importa lembrar que esse Marselha era muito forte. E o presidente deles, Bernard Tapie, soube-se depois, tinha artes de o tornar ainda mais difícil de derrotar.
Bom. A vinte minutos do início do jogo, o ambiente na Luz estava morno. Estranhamente morno, tendo em conta a importância da noite. Fosse por que motivo fosse - ansiedade, impaciência, nervoso miudinho, alguma apreensão face ao desastre exibicional de Marselha - os adeptos benfiquistas estavam demasiado calados para o gosto de Eusébio, senhor de muitas e épicas batalhas europeias naquele estádio. Nessa altura Eusébio assistia aos jogos no relvado sentado numa cadeira; diz quem sabe que sofria imenso e prestava atenção a todos os pormenores. Talvez isso explique o que se passou. Subitamente, Eusébio levantou-se, caminhou sozinho para o centro do relvado e pôs-se a dar socos no ar, convocando o Inferno. Que respondeu. 120 mil pessoas começaram a gritar «Ben-fi-ca!, Ben-fi-ca!, Ben-fi-ca!» e a bater cadenciadamente com os pés no cimento, num crescendo operático. O estádio estremeceu de alto a baixo. Parecia um tremor de terra. Eu estava na tribuna de Imprensa a ver aquele espectáculo impressionante ao lado de um jornalista francês do Le Meridional. Nunca esqueci o pasmo dele, os olhos fixos na vidraça, a caneta que ele antes girava distraidamente nos dedos agora a rodopiar cada vez mais depressa. Até que o pobre bufou assim, entredentes: «estamos f...», num desabafo tão humano como a raiva de Eusébio perante o silêncio incompreensível do terceiro anel. O camarada do Le Meridional acertou em cheio: o Marselha lixou-se - pela mão de Vata Matanu, ao minuto 83 (num minuto que anos mais tarde Luisão tornaria a declarar mágico) e o mais engraçado é que o jogo, tirando aqueles minutos arrebatadores por culpa de Eusébio, não foi grande coisa.
Espero que a memória de Eusébio, Grande de Portugal, seja respeitada no jogo grande do próximo domingo. Bolas. Não é pedir muito.
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André Pipa, in A Bola
PS: O Pipa esqueceu-se do Enzo Francescoli !!! E não foi 20 minutos antes, foi mesmo antes das equipas subirem ao relvado, os jogadores do Marselha alinhados no túnel ouviram bem...!!! Outra imagem que tenho desse momento, era o coração a bater nos ecrãs gigantes...
Acho que foi nesse jogo que o Papin vira-se para o Mozer a perguntar o que era aquilo (ao ouvir todo aquele ruído)... ao qual o Mozer apenas diz-lhe: "é o inferno!"
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