"D. Palhaço julga-se um mamífero culto. Pois está regiamente enganado. Burla meia-dúzia de parolos alarves com a sua falácia, mas a verdade é que roça o analfabetismo como se comprova pela errada utilização dos verbos. Ouçam-no bem, embora seja repugnante ouvi-lo: D. Palhaço fala com erros de ortografia! Mas sabe um poema. Ou melhor: sabe uns bocados de um poema que tritura à bel talante. Pobre poeta que o escreveu. Dará hoje, pela certa, pulos na cova por se ver vítima de tamanhos vilipêndios... Perguntarão vocês: mas como sabe ele um poema se até a ler lhe custa sem auxílio? Há uma expressão comum na estudantada quando é preciso saber de cor e salteado matéria na véspera dos exames: encornar.
Há quem diga que D. Palhaço encorna muito e bem. E de tudo um pouco. Já o poema, coitado do poema, passou-lhe ao lado. Troca rimas, desfaz métricas, mas continua a dizê-lo naquela voz monocórdica e chocarreira própria de quem possui um cérebro caliginoso. Quem o vê declamar o cântico julga que foi ele quem o escreveu, se escrever soubesse.
Ah! E que dizer daquelas pobres almas basbaques de queixada caída grotesca do seu pai espiritual? Ou daquelas pobres almas fardadas aspirando o seu bafo fétido? E então não é com poema que grita, é a expressão autêntica da sua ordinarice. D. Palhaço acha-se dono do mundo como se acha dono do poema. E trata ambos da mesma maneira, o poema e o Mundo: corrompe-os, manobra-os, vilaniza-os.
Ao longe, assistimos a essa infecta degradação. Só um País manso suporta comportamentos tão rascas, exibições tão gratuitas de violência e de incivilidade.
E por nada, ou quase nada. Por apenas um cesto."
Afonso de Melo, in O Benfica
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