"Nessa tarde, a questão do dia foi colocada pelo Henrique, estudante de Gestão. Tranquilo, totalmente descontraído, afirmava: ‘...então, falamos de quê?Se não falamos de futebol, falamos de quê?’. Há uns anos atrás, esta intervenção ter-me-ia causado uma certa irritação. Hoje, deixa-me a pensar. O tema em causa era desporto e comunicação social. Neste domínio, repetem-se as ideias feitas, uns ao serviço dos outros, outros ao serviço do seu ego, das suas várias perturbações. Os estudos em consideração na aula destacavam problemas sociais expressos nas decisões dos árbitros, na conduta dos jogadores em campo, as atitudes do público, casos concretos ocorridos em pleno jogo e do respectivo tratamento efectuado pelos meios de comunicação social. É possível escrever e transmitir factos, conhecimentos e perspectivas diversos sobre os desportos, sobre os jogos, sobre os participantes directos e indirectos.
O desporto, os desportos, oferece matéria suficientemente rica para que a atenção seja desviada – de forma sistemática - para aspectos que nada possuem de edificante para o desporto em si, para a valorização do desporto e, muito menos, para a sociedade em geral. Enquanto factor de desenvolvimento social, o desporto é um fenómeno fundamental de civilização, próprio das sociedades ocidentais onde o desporto é parte integrante do desenvolvimento que gozam. O fenómeno social desporto pode, e deve, ser analisado e editado com base em interpretações sérias, sólidas, construtivas, socialmente válidas. Factos, conhecimentos, perspectivas podem e devem ser analisados e difundidos com responsabilidade. Cada actor social, integrado no desporto, no teatro, no trabalho, na política, na educação, na técnica, na ciência, possui o dever social de saber que as suas atitudes e manifestações de todos os géneros têm efeitos e impactos que podem, de certeza, deformar em vez de formar, de destruir em vez de construir.
O desporto, os desportos, o futebol, face ao seu carácter social – isto é, pelo facto de constituir parte da sociedade (conjunto das relações que estabelecemos uns com os outros) o efeito de transmissão, de reprodução e de contágio, implica a compreensão dos efeitos positivos - ou nefastos - de maneiras de actuar que edificam e fortalecem atitudes adequadas ao desenvolvimento das pessoas que, em conjunto e vivendo em comum, são e fazem a sociedade. Não é necessário ser sociólogo para compreender isso. Basta ser consciente e a consciência não existe sem a sociedade. A consciência (que só os seres humanos têm condições para ter) existe e consolida-se na vida em comum, no jogo de que todos fazemos parte – o jogo social. Um jogo onde, antes da lei, existem princípios, normas e regras, responsabilidades, riscos e consequências. Todos e cada um precisamos de compreender isto. Não é uma responsabilidade apenas dos professores. É uma responsabilidade de todos. Como pagar impostos. Pagamos impostos para que o dinheiro de cada um reverta para o bem e o serviço de todos. E aqui levantam-se os problemas. No caso do desporto, e em particular do futebol, se o foco das transmissões é centrado, e repetido à exaustão, na baixa intriga palaciana de actores e de factos secundários, a atenção é conduzida para o que interessa para nada. E ouve-se o clamor categórico: mas é isso que vende jornais, é isso o que a população quer! Permitam-me que discorde. E que coloque a questão ao contrário, ou seja, já experimentaram oferecer intrigas de qualidade? Aqueles que estudam o desporto, sabem que o jogo em que assenta a oposição entre adversários é constituído por uma estrutura dramática, estrutura esta em que uns e outros estão implicados num processo que é irreversível e único. É esta característica que acentua a tensão, condição essencial ao jogo, uma tensão que hoje em dia aumenta porque os jogos têm de ser ganhos, os campeonatos têm de ser ganhos, os campeonatos internacionais desafiam a vontade de ganhar. Porque há dinheiro em jogo, porque há rivalidades em jogo, porque há a vontade de ganhar, de vencer o adversário.
O que é vencer? perguntava Miguel Esteves Cardoso numa crónica de algum tempo já. Vencer não é ganhar a qualquer custo.
É ser aquele que domina pela qualidade do jogo, pela sorte, pela argúcia, é superiorizar-se na maneira como se ganha. Uns ganham porque remataram à baliza com a máxima precisão, outros vencem porque foram os mais generosos e isso é exaltado. Ganham o respeito dos adversários, ganham o respeito do público. O respeito não se compra, não tem preço. Não é uma questão de sorte. É uma questão de vontade de jogar com respeito pelo adversário, pelo jogo, pelo público, por si próprio. Vale tudo? Não me parece. Não se trata de conversa de académico, trata-se de factos. Além de sermos académicos, antes de nos dedicarmos ao estudo e à observação do que ao desporto respeita, antes de abrirmos a boca ou de escrevermos, aprendemos a ser gente. Aprendemos que há regras, que há escolhas. Não é moralismo, nem é ingenuidade, esta é a base sobre a qual o desporto em geral, e o futebol em particular, se formaram como desporto moderno. Jogos feitos de gente que aprendeu a jogar com o respeito pelas regras. Senão, qual é o interesse? Deixe-se de atirar as culpas para cima do árbitro. É que se não se compreendem as bases fundamentais da vida que todos vivemos, uns com os outros, não há – mas não há mesmo! – video-árbitro que nos valha! Se as regras sociais de que o desporto é uma expressão, um meio, não são compreendidas, corre-se o risco de se avançar para o fundamentalismo da violência. Violência verbal, agressão física, desmoralização de quantos, dentro do desporto, trabalham para uma sociedade melhor. Melhor para todos. Todos responsáveis, obviamente.
Vejamos dois casos concretos. O caso de Mourinho x Eva Carneiro. Na origem do problema, um jogador (Hazard) tombado no campo a 2 minutos para terminar o jogo. De acordo com a comunicação social, todo o caso girou à volta do diz-que-disse do treinador e da médica. Uns a favor do treinador, outros contra o treinador, isto é, a favor da médica. Depois de ouvir, ver e ler notícias, vídeos, ficou no ar a questão: o jogador estava mesmo magoado, a precisar de assistência, ou não? Ninguém sabia. Mas lembro-me de ler que o treinador em causa havia afirmado que conhecia os seus jogadores, que Hazard estava apenas cansado. Em Inglaterra, a imprensa de cordel procurava a oportunidade de vencer o treinador vencedor escrevendo em parangonas bem ampliadas que já não era necessário o Serviço Nacional de Saúde, o NHS. Mourinho é que sabia quando alguém estava doente ou não! Desbragamento total. É conhecida a conclusão do caso. Dado que o jogador integrou a equipa no jogo seguinte, o treinador tinha razão. Hazard não estava lesionado - estava exausto.
O caso recente do Canelas. Logo do Canelas, vila tranquila, um lugar daqueles onde nada acontece. Depois de ouvirmos que tinha havido mais uma agressão a um árbitro (tornou-se normal...) ouvimos várias vezes o nome do jogador, o que ele fez, os 2 minutos de jogo, etc., etc. Do árbitro (José Rodrigues, se não estou em erro), pouco se referiu sobre a sua atitude séria, responsável. É possível tratar das questões do jogo, do desporto, a partir da perspectiva que constrói em vez da forma propícia ao decair do nível. Aproveitar cada jogo, cada situação, para valorizar a sociedade que somos. É isso que no país onde a passagem dos jogos populares a desportos foi conduzida sob as regras da vida colectiva, os comentários antes, durante e após os confrontos desportivos, os desafios de futebol, existe um extremo cuidado em abordar os factos numa perspectiva socialmente pedagógica. A responsabilidade não é só dos professores, ela é de todos e a todo o momento. Todos somos exemplos, e também convém que aqueles que são professores não se esqueçam disso e não sobrevalorizem os conteúdos esquecendo a formação que permite o desenvolvimento do conhecimento e não a sua atrofia. Em vez da subserviência, o sentido crítico, em vez da submissão, o respeito. É que se a subserviência e a submissão se impõem, a autoridade pode confundir-se com o autoritário e despoletar o desrespeito e, na verdade, o ridículo. Medo e respeito não são a mesma coisa, tal como o carácter, a coragem e a frontalidade – cultivadas justamente no desporto, não são manifestações equivalentes. Sendo assim, o desprezo pela autoridade destaca o facto que não há autoridade. No desporto tanto quanto na sociedade. A ignorância instala-se, a maldade domina, as fronteiras entre o mal e o bem desaparecem. E o drama, que deveria ser parte do jogo, o drama de não saber quem ganha e de saber que ‘esse’ jogo não se repete, desloca-se para os arredores do Estádio e mata. No entanto, no desporto a morte simbólica que a derrota traduz, é simbólica. Isto é, corresponde a uma cultura, uma cultura que vive, defende-se e prevalece nos actos e atitudes daqueles que a vivem. Não basta bradar que não há cultura desportiva, que se deve observar o fair-play, defender-se aquilo que designam ‘a verdade desportiva’. A cultura desportiva é a cultura. Quando a ‘cultura desportiva’, de fair-play, não existe, a cultura que se sublinha que falta – é, afinal, aquilo que nos forma e que nos distingue. Ou aquilo que há, é aquilo que somos...como escrevia há mais de uma década Vasco Pulido Valente ao escrever que Portugal será aquilo que o futebol fôr. Bagarre!
Sendo assim, o Henrique tem razão. Se não falamos de futebol, falamos de quê? Vamos falar então, mas a elevar o desporto, a sociedade que somos e que queremos ser, não a desfazê-lo, a desfazer o que somos e que queremos ser. O jogo não está decidido antecipadamente."
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