"Critico o sistema, com reuniões em dia certo da semana, como se fosse um cozido à portuguesa num restaurante de bairro.
O futebol português está nos primeiros lugares do ranking mundial. Nenhum outro setor da vida nacional tem tanta expressão e é tão considerado e admirado no Mundo. Isso deve-se, muito em especial, a um povo que ama profundamente o futebol, aos clubes, que ao longo dos anos, com alguns vícios, mas com muita criatividade, souberam crescer, desenvolver-se, modernizar-se nas suas velhas estruturas de rapazes generosos, mas amadores, deve-se (muito) à elogiável capacidade e competência dos treinadores portugueses, que muito evoluíram nas plurais áreas do conhecimento aplicáveis ao jogo, e deve-se, também, a pessoas diversas e dispersas, pessoas qualificadas e muito profissionais que integraram áreas de responsabilidade de gestão e de liderança em associações e na Federação Portuguesa de Futebol.
Temos, portanto, de assinalar, em primeiro lugar, que o futebol português, em razão de todos os padrões em que o país se pode comparar com outros países, nomeadamente os europeus, está muitos furos acima do que seria expectável e do que lhe poderia proporcionar os escassos meios financeiros de que dispõe.
Há, no entanto, setores que não souberam ou não puderam acompanhar este crescimento. Setores onde, por ironia, nem sequer faltam bons técnicos, gente competente e qualificada para a função, mas que acabam submersos, nas ideias e na acção, por organizações decrépitas, ultrapassadas, isoladas e sustentadas numa ideologia amadora.
A pior de todas as organizações do futebol profissional português é a da justiça desportiva. Não quero, obviamente, colocar em causa a capacidade técnica dos seus elementos e gostaria de também poder não pôr em causa o virtuosismo da independência dos jurídicos que têm por obrigação julgar de camisola despida. O que coloco em causa é o sistema. Esse sistema bacoco e desatualizado, esse sistema de reuniões, discussões e decisões em dia certo, como se fosse o cozido à portuguesa na ementa de um restaurante de bairro. Esse sistema que se alimenta de todos os piores dos vícios e apenas de algumas virtudes do sistema judicial comum, que já não é, como se sabe, compatível com o constitucional direito à justiça do cidadão e se torna totalmente desacreditado na justiça desportiva.
Os exemplos sucedem-se e os mais recentes, com os casos Slimani e, agora, também de Jardel e Eliseu, são tão ridículos que, por si só, matam qualquer laivo de decência na justiça desportiva.
A arbitragem, como se reconhece, também não está bem. Apesar de tudo, não me cansarei de o dizer, nada está a necessitar de maior urgência na reforma, profunda e drástica, do que justiça no futebol profissional.
O problema da arbitragem é outro. É o da insustentável convicção de que o mundo da arbitragem deve continuar a viver assente numa ideia de organização secreta, onde só a família tem assento, quer para agir, quer para influenciar.
Toda a organização que se esconde, procura o escuro das azinhagas do futebol, se torna vulnerável à especulação e à suspeição. Quem não percebe isto, em particular nos dias de hoje, não pode ter lugares de responsabilidade no futebol profissional.
As emoções e as paixões que o futebol desperta, em especial em Portugal, obrigam a uma ainda maior clareza de processos, a uma indiscutível transparência de acções. O risco de perturbação, de falsas acusações, de indícios fabricados, quer seja por maldade, quer seja por interesses inconfessáveis, é enorme, num sistema de quarto fechado e de sociedade secreta. E os árbitros, importará dizê-lo, são os que ficam mais expostos e os que mais sofrem com isso."
Vítor Serpa, in A Bola
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