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sexta-feira, 11 de setembro de 2015

O dia em que joguei na Luz

"A Adidas convidou vários jornalistas para uma partida de futebol no Estádio do Benfica. E o representante da VISÃO fez exactamente o que se esperava dele: muito pouco.

Quando a Adidas enviou um convite à VISÃO para um jogo de futebol no Estádio da Luz, eu fui a escolha natural - oito das dez pessoas da minha secção são mulheres, e o outro espécime masculino não aprecia praticar desporto de pé. Quanto às minhas aptidões futebolísticas propriamente ditas, há duas correntes de opinião: eu acho que sou a reencarnação do Garrincha; todos os outros acham que devo ser é parvo. Mas isso não importa nada. Uma vitória por falta de comparência continua a ser uma vitória - e assim me caiu no colo o privilégio de pisar a relva do Glorioso.
Confirmada a minha presença, o passo seguinte foi dizer a toda a gente que ia jogar na Catedral. Comecei, claro, pelos mais benfiquistas, e daí segui pela cadeia alimentar abaixo. Pelo caminho, ia distribuindo promessas de golos. "Vou marcar um por ti", espalhei eu ao pontapé, salvo seja. Ao dar por ela, já levava uma dúzia de golos atribuídos. Não me estava a ver a pagar a dívida.
No dia mais importante da minha vida (o do nascimento do meu filho ocupa um honroso segundo lugar), pus-me a caminho uma hora mais cedo do que era preciso, não fosse eu ser vítima de um acidente e ter de me arrastar, ensanguentado, 5 ou 10 quilómetros até ao estádio. O ponto de encontro era a sala das conferências de imprensa.
Depois de uma apresentação de um responsável da Adidas, a falar sobre as novas chuteiras ACE15 e X15 (as primeiras, adaptadas a estilos de jogo mais controlados, as segundas, para jogadores mais explosivos, e outras coisas que não ouvi realmente porque 65 mil espectadores imaginários já chamavam por mim), entraram Jardel e Jonas.
Os craques do Benfica dividiram os 24 jornalistas em duas equipas e encaminharam-nos para os balneários. Calhou-me o Jardel como treinador - ou melhor, mister, como nós, futebolistas, gostamos de dizer. Enquanto vestíamos o equipamento, o defesa encarnado delineou a táctica. "Quem quer ir à baliza? Quem quer jogar à defesa? Esquerda? Direita? Centro?" E pronto, foi isto. Estratégias? Para quê? Obviamente, o homem percebeu que tinha ali 12 predestinados, a quem bastava o talento natural para vencer o jogo nas calmas. Ainda pensei em avisar que há quem me considere agressivo na bola (eu prefiro chamar-lhe empenho). Mas, como ninguém me perguntou se, por exemplo, alguma vez parti o pé a um adversário, optei por não contar que uma vez parti o pé a um adversário. Digamos que o assunto não se proporcionou. 
Escolhi o lugar de defesa esquerdo porque é o sítio do campo onde costuma haver menos gente, e o meu estilo de jogo não se coaduna com multidões. Tal como as estrelas lá de cima, também as estrelas futebolísticas precisam de espaço para brilhar. Vesti a camisola com o número 6 nas costas (o mesmo de portentos benfiquistas como Jamir, Steve Harkness, Marco Freitas e Fernando Meira) e fui para o relvado. Íamos ter dez minutos de aquecimento. Cansei-me a aquecer.
O árbitro preparava-se para o apito inicial quando me convenci de ter escolhido bem a posição: ia enfrentar, no meu corredor, a única mulher em campo - a Mariana Cabral, do Expresso. Constava que ela percebia de bola, e que até tinha tirado um curso de treinadora, mas, caramba!, é mulher. Deve haver atuns que jogam melhor.Essa era a primeira boa notícia. A segunda é que o meu amigo Jaime, da New in Town, estava na baliza. Se lhe marcasse um golo em pleno Estádio da Luz, faria questão de o ter ao meu lado antes de me finar para, com o último sopro, lhe recordar o momento. Incitado por essa ideia, fiz o primeiro remate à baliza do jogo. Uso a palavra remate num sentido muito lato. Foi uma espécie de suave atraso para o guarda-redes errado, com o pé esquerdo, o que estava mais à mão, como diria o João Pinto, esse filósofo do FC Porto. (Por falar em pés esquerdos, ainda hoje não tenho a certeza de qual é o meu melhor pé, pelo que prefiro considerar-me ambidestro dos membros inferiores.) O pior veio de seguida: a Mariana pegou na bola perto da linha e avançou na minha direcção; à entrada da área, passou por mim como se eu não estivesse lá. E com essa simples finta curou-me o sexismo.
Fomos para o intervalo a ganhar por 1-0, com um golo acidental: o meu companheiro queria cruzar, mas a bola saiu demasiado longa e acabou na baliza. Dirigimo-nos para o balneário, a arfar, com Jardel a acompanhar-nos, de mãos nos bolsos. "Estamos tão cansados como tu costumas estar, Jardel?", perguntou um de nós. "Vocês jogaram 15 minutos", respondeu o mister. Sim, o Benfica e a Adidas achavam que não aguentávamos mais que duas partes de 15 minutos. Tinham razão. No início da segunda parte, pedi para trocar de posição com um médio centrocampista. Oficialmente, porque queria ir mais para o meio da acção. Honestamente, porque não queria voltar a ser humilhado pela Mariana. Havia câmaras a filmar a partida.
O jogo prosseguiu numa toada entre o morno e o cómico, certamente porque as bancadas vazias não nos estimulavam a dar mais. Entretanto, a equipa adversária fez o 1-1 sem saber ler nem escrever, num contra-ataque fortuito. Jonas, o treinador inimigo, pareceu entusiasmado, mas o nosso mister manteve a mesma calma estóica, que quase podia ser confundida com absoluto desinteresse no resultado. Mas depressa voltámos para a frente do marcador, com mais um espectacular cruzamento disparatado que acabou nas redes por estranhos humores da física. Jardel demonstrou a sua irrefreável satisfação acenando ligeiramente com a cabeça. O árbitro apitou para o final pouco depois.
Terminada a partida, fiquei no centro do relvado a tirar selfies. No Natal, hão de ser transformadas em postais de boas festas e oferecidas a toda a gente que conheço - porque o único prazer maior do que jogar no Estádio da Luz é esfregar na cara dos nossos amigos que jogámos no Estádio da Luz."

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