"O início da carreira de um desportista de talento excecional costuma corresponder a uma certa linearidade. Coloca-se o capecete, empunha-se a raquete, veste-se o fato, calçam-se as botas, utiliza-se seja qual for o equipamento e faz-se o que o corpo pede, deixa-se o extraordinário que há dentro daquele ser humano fluir, sem lhe colocar grandes barreiras.
À boleia daquela magia interior que se mostra ao mundo, começa-se a ganhar. Ganha-se uma vez, duas, 10, 20. Surpreende-se o público, testam-se os limites. Até que, num determinado momento, surgem as dúvidas. Uma derrota, o peso da monotonia, a asfixiante pressão dos holofotes.
Para quê continuar? Há aqueles que seguem atrás de uma ambição infinita, de uma constante vontade de provarem o seu valor, com uma fome que se regenera diariamente. É o caso de um certo madeirense que cumpre hoje 39 anos — mas já lá vamos.
Mas, à margem desses raros extraterrestres, é muito comum existirem dúvidas que assolam os talentos excecionais. Há quem precise de parar, mesmo quando se é uma adolescente banhada a ouro, como Simone Biles; há quem se retire precocemente, logo depois de um grande êxito, sem gasolina física e mental para seguir, como Ash Barty; há magos que deixam de ter na procura de objetivos desportivos a grande meta de vida, colocando como objetivo e prioridade a própria saúde mental, como Ricky Rubio.
Lewis Hamilton encaixa na ideia de talento prodigioso. Chegou à Fórmula 1 com 22 anos, foi campeão do mundo com 23. Ganhou 103 grandes prémios, um recorde; tem 104 pole positions, um recorde; terminou 197 vezes no pódio, um recorde; somou 4639,5 pontos, um recorde.
Até que, no final de 2021, aquele desfecho dramático em Abu Dhabi que consagrou Verstappen como campeão correspondeu ao tal momento de dúvida. Hamilton vinha de quatro títulos mundiais seguidos, conquistara seis dos derradeiros sete. Mas, ali, algo terminou, entre a perda de competitividade da Mercedes e a instauração da ditadura da Red Bull: Lewis não voltou a triunfar num grande prémio, quanto mais a lutar, de facto, pelo título.
Assim, o britânico parou nos sete triunfos no Mundial. Um recorde… partilhado com Michael Schumacher. E é aqui que os registos estatísticos se conjugam com a grande notícia do desporto mundial da última semana.
O rumor chegou em forma de bomba na manhã de quinta-feira e, no final do dia, já estava confirmado. Lewis Hamilton na Ferrari em 2025, cumprindo o que diz ser “um sonho de criança”.
O piloto mais mediático na equipa mais mítica. O sete vezes campeão a tentar o oitavo título vestido com o vermelho que consagrou Schumacher, desempatando com o alemão. Uma viagem mútua de reconciliação com o êxito, com Hamilton a devolver-se à glória enquanto a traz de volta, também, para a Ferrari, que não vê um piloto vestido do vermelho mais mítico do desporto motorizado ganhar o Mundial desde Räikkönen, em 2007.
A minha camarada Lídia Paralta Gomes, com uma expertise em Fórmula 1 que o autor desta Newsletter não possui, explicou esta tentativa de viagem rumo à imortalidade do britânico. Ah, entretanto há uma temporada por disputar, uma época de 2024 em que se realizará o campeonato que, antes de começar, já todos querem que acabe, porque o prato principal vem em 2025.
Quando o talento deixa de ganhar, quando as dúvidas surgem, é preciso reagir. Pode-se parar ou continuar, duvidar ou reforçar certezas. No caso de Hamilton, é como se ele dobrasse a aposta, fosse à procura de algo ainda maior.
Ganhar um título com a Ferrari seria uma brutal mistura de história e glória, uma conjugação rara de acontecimentos: isolar-se como maior campeão da Fórmula 1, fazendo-o à boleia do monolugar mais mítico, guiando-o de novo rumo aos êxitos que parecem esquecidos.
Na música “Imortais”, do álbum “System” de ProfJam em parceria com benji price, canta-se que a “Final fantasia é viver com imortais”. Hamilton, lenda incontestada do desporto mundial, vai testar os limites dessa condição não humana, viajando pelas fronteiras da eternidade, explorando-a, procurando que ela vive nela. Foi a forma que encontrou para, a meses de cumprir 40 anos, continuar a acelerar."
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