"Porventura, em instantes, um googlar eriçado terá sobrecarregado a janela de navegação do prezado leitor com vários separadores, cada qual com uma notícia, das muitas produzidas sobre a desigualdade salarial entre homens e mulheres, que refuta a frase lida no título.
Se, por outro lado, esperou pelo argumento antes de poder contra-argumentar, lamento de igual modo esta semana não trazer uma boa-nova em relação às injustiças sociais, só alguns lembretes para que o significado de ganhar (não, não estamos a falar de dinheiro) seja como o critério dos árbitros: igual para os dois lados.
A equipa de futebol feminino do Benfica conquistou a Taça de Portugal este fim de semana. Na bancada central do Jamor, Alex (confiando no nome que trazia na camisola numerada com o 10) atirou a Kika Nazareth, o bobo da festa, uma embalagem semelhante às das ourivesarias. A jogadora abriu-a e, superados os instantes em que se pensou que dali ia sair um valente cachucho, o interior deu-lhe um pastel de nata imediatamente desfeito nas trincas que amansaram a fome de quem correu 90 minutos. Em troca, Alex, um boémio sexagenário, queria a versão atualizada da sua camisola 10 e não se importava que viesse com o nome de Kika nas costas.
A permuta acabou por não acontecer. Kika Nazareth ficou com o doce e Alex com a promessa de receber a camisola numa próxima ocasião. Em relação ao assunto pastel de nata, a jovem internacional teria merecido uma reprimenda do responsável pelo controlo alimentar do Benfica se não se tratasse do último jogo da época. Ainda para mais, sabendo-se que estava de barriga cheia depois da vitória contra o Racing Power (4-1) que temperou com um golo. Porém, há circunstâncias em que uma jogadora pode tudo.
No memorial da época 2023/24, o ego da Taça de Portugal vai ter que medir forças com a jactância da Supertaça, da Taça da Liga e do Campeonato na estante reservada ao pleno doméstico das encarnadas. Embora sem a forma de um troféu, a campanha histórica na Liga dos Campeões também terá que merecer um lugar que não apenas as gavetas da memória. Por menos, ao longo dos anos, já se fechou uma das principais artérias da cidade de Lisboa para dar lugar a festejos em volta de uma figura petrificada de Sebastião José de Carvalho e Melo.
O projeto de futebol feminino do Benfica tem apenas seis anos. Diga-se que ainda mais verdinho é o do Racing Power, o que não se nota naquilo que um combinado de gente como a finlandesa Sini Laaksonen, a nigeriana Mercy Idoko ou a norte-americana Jenny Vetter consegue fazer no campo. As dificuldades do clube da margem sul são outras. Quando o futebol feminino do Benfica surgiu, não se tratava do aparecimento de uma equipa sem a bengala de uma estrutura altamente profissional, conhecedora do contexto em que se estava a inserir e com provas dadas desde o futebol ao hóquei em patins, o que não é um remédio infalível para as dores de crescimento.
Ganhar quatro títulos nacionais numa só época, com competições europeias pelo meio, é uma proeza heróica, adjetivo tantas vezes usado ao despautério em situações bem mais desadequadas. O futebol masculino começou a disputar quatros títulos nacionais a partir de 2007/2008, com a criação da Taça da Liga. Nas temporadas que se seguiram, ninguém conseguiu, na vertente dos homens ou das mulheres, a proeza de vencer quatro troféus internos num ano.
Sim, o plantel de elas do Benfica 2023/24 é uma das equipas mais ganhadoras da história do futebol português. Mais do que qualquer eles que possam os registos encontrar.
Como dizer a um adepto que a equipa de futebol mais vencedora do clube que tanto preza não é composta por homens, mas sim por mulheres? Porque é que o apito final do último jogo do campeonato feminino não foi um tiro de partida para os carros saírem para a rua às apitadelas? Por que é que não se pediu uma ida ao Marquês após este quadreble? Aceitaria esse adepto que a equipa masculina fosse jogar para o Seixal e a feminina passasse a usar o Estádio da Luz a tempo inteiro?
As respostas estão junto da pessoa (e de outras que tal) que programou os processadores de texto para sublinharem a vermelho, alerta de erro, a palavra ídola.
Não pode passar despercebido que o sucesso futebolístico maioritário de um clube aconteça na vertente feminina. Se as jogadoras de Filipa Patão não tivessem conquistado qualquer um dos troféus que venceram, alguém se importaria? Para um futebol feminino sem condescendência, é bom que sim. Será um sinal positivo quando chegar o dia das jogadoras também ouvirem críticas após uma exibição menos positiva ou durante uma seca de títulos. Até lá, do mesmo modo, aproveite-se a onda de sucesso para se fazer a mesma festa que se faria se fossem eles a ganhar o Campeonato, a Taça de Portugal, a Taça de Liga e a Supertaça na mesma época (e que não se tomem as dores da equipa masculina como reflexo do estado geral do futebol de um clube)."
Francisco Martins, in Tribuna
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