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quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

O efeito borboleta de Diogo Ribeiro


"“Queres aprender o estilo preferido do espetador e o mais difícil de nadar?” é a retórica pergunta e aparece escrita na legenda do primeiro vídeo devolvido pelo YouTube. A pesquisa ‘como nadar mariposa’ tem, por estes dias, nada de inocente. Pode bem ser a onda de choque colateral que provavelmente se repete, com mais afinco, na rede social dos vídeos, desde os mergulhos de Diogo Ribeiro na piscina de Doha, no Catar. Ele submergiu a ondular, os braços entrelaçados à frente, as pernas fundidas como barbatana, um esculpido corpo a contorcer-se dentro da água a tresandar de cloro no movimento mais parecido ao de um golfinho e, por isso, o menos humano.
Há razões várias para nós, em gaiatos, não aprendermos de início a nadar mariposa quando somos introduzidos à água. É um estilo difícil, exige uma síncope complicada na coordenação motora, os membros de trás unidos, os da frente a pularem sobre a superfície em simultâneo, mas foi com esse que Diogo Ribeiro ainda canalha, com 6 ou 7 anos, chantageou a então treinadora. Ou o ensinavam a deslizar na água com esse estilo, ou saía da piscina e equipava para se dedicar ao futebol em relva firme. O sobredotado da força e sincronia corporal que começara na natação aos seis meses queria ser desafiado, já se fartava da monotonia das rotinas em que se compartimentaliza a aprendizagem das crianças.
De Coimbra para o Jamor, depois Fukuoka e Doha, a história de Diogo já vai sendo sabida e quem a desconhece em breve tomará conta do percurso do miúdo, porque ele ainda o é, que colocou um país a falar de natação: em 2023 voltou com uma medalha de prata nos 50 metros mariposa dos Mundiais do Japão e agora, seis meses volvidos, dormiu com duas de ouro debaixo da almofada, literalmente, na última noite passada no Catar, onde se tornou bicampeão mundial nos 50 e 100 metros da vertente que nós, portugueses, nem traduzimos à letra a partir do que em inglês é butterfly e preferimos chamar mariposa em vez do que seria mais usual na lógica.
Mas o que se já se vê é o efeito borboleta de uma história formidável, a exibir a magnificência das consequências que um bater de asas pode ter no desenrolar da vida. Aos 4 anos, Diogo Ribeiro ficou sem o pai, desportista nato e andebolista da Académica, levado por um enfarte que o atingiu durante um jogo de futebol com os amigos, e a mãe acha que dele herdou “a garra e a competição”; apresentado às piscinas ainda um bebé, essa precocidade e a bonança dos genes fizeram-no crescer como um fenómeno que cortejava tempos olímpicos ainda imberbe; o Benfica reparou no fenómeno, os azares da vida também: em 2021, três dias após voltar prateado dos Mundiais júnior, um carro atropelou-o quando seguia de mota, acidente que lhe fatiou parte de um dedo indicador, fraturou um pé, deslocou um ombro e rasgou vários ligamentos do corpo que parou durante meses.
A estaticidade forçada foi um abre-olhos para Diogo, uma “chamada de atenção” para um puto reguila que sentiu a falta de casa quando se mudou para o Centro de Alto Rendimento do Jamor onde o treinador Alberto Silva, o biomecânico Samie Elias e o preparador físico Igor Silveira aguardavam, vindos do Brasil, por ele e outro grupo restrito de nadadores, contratados para lhes exaltarem as qualidades dentro da piscina. Guardador do maior dos potenciais, foram limando os dias de sol a sol de Diogo Ribeiro, apelando à cautela no trato dado de fora ao precoce recordista de marcas nacionais (já tem o dos 50 e 100 metros livres, além das mesmas distâncias na mariposa) que agora, inevitavelmente, atraiu sem freios possíveis. As águas das expectativas já desaguam descontroladamente à sua beira.
Esta segunda-feira, embrulhado na bandeira de Portugal e com as medalhas de ouro a reluzirem ao pescoço, Diogo Ribeiro aterrou em Lisboa, onde um cerco de jornalistas, microfones e câmaras o recebeu no Aeroporto Humberto Delgado. À quarta ou quinta pergunta surgiu a mais fácil de ser feita ao português que é fenomenal a nadar da forma mais difícil - “Já sonha com o ouro olímpico?”. E ele, rapaz de 19 anos e brinco na orelha, disse que sim, que não só o sonha mas que “começa a ser um objetivo”, com a cara mais natural do mundo enquanto escancarou o portão à invasão do que bem pode ser inevitável a qualquer desportista incrível enfrentar, embora devesse ser tratado com prudência.
Ainda Diogo não tinha regressado e falado e já tudo quanto é figura política lhe dera os parabéns, a deixa de um feito desportivo a ser logo apanhada, como de costume, por António Costa, Marcelo Rebelo de Sousa e Augusto Santos Silva, as três maiores figuras do Estado, e ainda por João Paulo Correia, o secretário da Juventude e do Desporto, duas áreas personificadas em pleno pelo nadador. Foi o secretário de Estado que acabou por ser o único a embarcar no comboio que carrega de imediato a psique de quem torce e de quem nada com o peso das expectativas, ao escrever: “Grandes perspetivas rumo a Paris 2024!”. A frase, assim como as insistentes questões sobre os Jogos Olímpicos, farão parte da vida do adolescente que, brade-se aos céus, parece ter já carapaça dura para lidar com essa pressão.
Antes de explicar, com calma, que se sente mais humilde a cada conquista e de defender a ética do trabalho, Diogo Ribeiro deixou no aeroporto o “não nos podemos precipitar” que deveria ser mantra na forma de Portugal, enquanto país, lidar com o desporto. Porque lida mal e intempestivamente. Daqui por uns meses estaremos a olhar para Paris e a ouvir gente a exigir medalhas em tudo, a criticar a falta de resultados e até ridicularizar atletas que fazem pela vida na nação onde nem há um Ministério do Desporto (houve entre 2000 e 2004) e as atenções afunilam, como sempre, para o futebol. Culpa de todos, governantes e jornalistas e público e instituições/clubes, que nos deixamos levar pela nata dos dias sem ir à ausência de profundidade com que o tema, fundamental para a saúde e bem-estar, é tratada por cá.
Depositar essa exigência em Diogo Ribeiro já tão cedo, quando ele nunca sequer participou em Jogos Olímpicos, é uma pressão desnecessária, mesmo que o próprio diga que nada supera a que deposita em si mesmo. A naturalidade ao revelá-lo, inusitada em tão tenra idade, foi a mesma com que arrebatou, a final dos 100 metros destes Mundiais, o ouro contra cinco de outros sete competidores donos de um melhor tempo na distância. A cautela nas precipitações sustenta-se, também, pela falta de muitos ‘animais’ das piscinas na mariposa que não estiveram na prova, como Caeleb Dressel, recordista mundial.
Diogo Ribeiro já vai fazendo o mais difícil depois de dificultar a própria vida ao escolher a forma de nadar mais tramada, o mínimo seria devolver-lhe a gentileza da contenção no exacerbar de expectativas. Que o efeito borboleta dos seus logros seja esse, ele e a natação agradeciam, porque, apesar da tímida atenção que merece em Portugal, é, a seguir ao futebol, a modalidade que seduz o maior número de praticantes federados: eram 103.494 em 2022/23, segundo a Federação Portuguesa de Natação. Daqui por uns tempos, poderemos estar a falar de muitos mais."

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