"Já há 40 anos, no meu livrinho A Prática e a Educação Física, eu escrevia: “Como não poderia deixar de ser, o desporto, que já de si pressupõe competição e agonismo, foi enredado naturalmente no clima conflituante que é a essência do fluir do tempo em que vivemos. A situação de violência do desporto decorre dum processo de violência em que o mundo todo (,,,) se encontra envolvido (…). O desporto é competição? Mas a competição não é encontro, não é intenção e presença de fraternidade: tudo nela é perfeita incubação de ódio e de guerra, de perplexidades e de angústias” (p. 106).
Em opúsculo, também da minha autoria, editado em 1999 e que dá pelo nome de Algumas Teses sobre o Desporto, eu tentava esclarecer: “Desde a esquerda à direita, as soluções políticas são as mesmas. E as desigualdades mantêm-se, sem solução à vista. Ora, não se realenta o optimismo dos povos com chavões comicieiros e com sonoras vitórias desportivas. Demais, o desporto de alta competição (ou de altos rendimentos) é tão classista e excludente como o neoliberalismo que o governa. Num ponto havemos de convir: ao invés do que parece dizer uma insistência verbal exaltadora, mormente de alguns políticos, ele adormece os marginalizados à recusa da sociedade injusta estabelecida” (p. 128).
E, neste mesmo livrinho, eu deixava uma proposta aos desportistas: “O desporto é, na realidade, um meio de catársis. Por ele, deves purgar-te do homem que foste antes do que és, isto é, do primarismo e do selvagismo que ainda te habita. O desporto de alta competição é uma aliança do maravilhoso e do dramático, onde os mitos e os deuses pululam e se afirmam. Mas os mitos e os deuses, no seu eterno presente (M. Eliade) estão aí com um flagrante primitivismo, embora a exemplaridade de muitos deles, embora o sentido e a religiosidade que lhes é inerente. Assim, não confundas combatividade com agressividade, não faças do árbitro o réu dos inêxitos do teu clube; aprende a ritualizar, humanizando, o drama e a festa, típicos da alta competição. No desporto, ninguém joga contra ninguém, porque se joga com todos (pp. 38/39).
Que o desporto progrediu, tecnológica e tecnocientificamente, é indubitável. Com os meus 84 anos de uma vida, próxima de atletas e de treinadores desportivos, principalmente de treinadores de futebol, tendo feito mesmo amizade com alguns deles; com o estudo e a investigação, no âmbito da filosofia e da epistemologia do desporto, em que fui, com as minhas inúmeras limitações, um dos pioneiros, no nosso País – julgo poder adiantar, sem receio, que o progresso do desporto português é evidente. Só que o progresso científico, quando o invocamos, nem sempre o referimos ao desenvolvimento humano que dele resulta., mas antes ao progresso da ciência como progresso do conhecimento. E aí ficamos! Por outro lado, o nascimento da educação física e do desporto é, digamos assim: o prolongamento, neste âmbito, da ciência clássica e da visão cartesiana de corpo. A educação física nasce no século XVIII e o desporto no dealbar do século XIX. Informa-os, por isso, o dualismo antropológico racionalista, a quantificação da natureza (Galileu) e o determinismo e a inexistência do acaso, que ninguém então punha em dúvida. Aliás, em 1887, o director do gabinete de patentes de Nova Iorque demitiu-se, alegando nada mais haver para inventar. A ciência, segundo ele, atingira o fim da sua história.
Cito, agora, um trecho de O Princepezinho, de Antoine de Saint-Exupéry: “As pessoas grandes gostam de números. Quando vocês lhes falam de um amigo novo, as suas perguntas nunca vão ao essencial. Nunca vos perguntam: “Como é a voz dele? De que brincadeiras é que ele gosta mais? Ele faz colecção de borboletas?”. Mas perguntam-vos : “Que idade é que ele tem? Quantos irmãos tem? Quanto é que ele pesa? Quanto ganha o pai dele?”. É só com números que eles julgam que ficarão a conhecê-lo”.
Mas um conhecimento, só com números, esquece esta realidade insofismável: sempre que se encontra um ser humano, encontram-se também a crença e inúmeras manifestações do sagrado. O ser humano precisa do agasalho e do apoio doutros valores, para além dos científicos, para que a vida passe a ter o mínimo de sentido, para que a vida mereça, finalmente, ser vivida. É conhecida a frase de Rabelais: “ciência, sem consciência, é a ruína da alma”. A ciência, por si só, não pode dizer-nos o que é justo, ou o que é falso, ou o que é belo. E, assim, o ser humano se deixa aprisionar pelos múltiplos circuitos pulsionais do prazer e da vaidade e do poder e do consumo e da vingança e da inveja. Não poderei esquecer jamais o extraordinário livro de George Steiner, Nostalgia for the Absolute, que li em tradução castelhana das Ediciones Siruela, onde este crítico literário e filósofo nos revela o vazio deixado, no homem hodierno, pelas religiões tradicionais, substituídas por inúmeras “ideologias de reposição”, onde cabem perfeitamente um clubismo faccioso e o populismo de certos dirigentes desportivos. Atento à exclamação de Ivan Karamazov, “Se Deus não existe, tudo é permitido”, Nietzsche aconselhou os homens sem Deus a um comportamento “para além do Bem e do Mal” e portanto a sentarem-se no trono que outrora pertencia a Deus Uno e Trino.
No nosso futebol, a atitude permanentemente amuada e puerilmente orgulhosa de alguns dirigentes, o gáudio interesseiro doutras pessoas que os servem e o púlpito de baboseiras em que se transformou certa Comunicação Social – de tudo isto se infere que também essas pessoas se julgam “para além do bem e do mal” e que portanto esperar delas uma esmerada correcção, um pouco de equilíbrio e discernimento é pedir-lhes o que não sabem ou o que não podem dar…
Tony Judt, um historiador notável e um indómito intelectual, diz-nos, no seu Pensar o século XX (Edições 70, Lisboa, 2012) que Hannah Arendt tem razão quando sublinha que “o significado do Holocausto não está provincianamente confinado às vítimas judías e aos criminosos alemães, pois que só pode ser compreendido em termos universais e éticos (…). Isso leva à questão da despreocupação relativa de Sartre com a responsabilidade francesa, no Holocausto” (p. 53). E lá volto eu a Hegel: “A Verdade é o Todo”. E o Todo deste vendaval de paixões, desta atmosfera malsã, que sacodem o nosso futebol, não se resume a alguns dirigentes e jornalistas e comentaristas, ainda que pareçam estes os principais responsáveis, porque nele encontramos muita outra gente que parece não ser talhada também para uma convivência salutar.
Se as audiências crescem, quando um jorro de suspeitas e de ressentimentos desaba sobre os “écrans” da televisão, não vale a pena andarmos a atirar as culpas uns para cima dos outros. As razões dos acontecimentos são bem mais fundas do que as culpas deste ou daquele cidadão. Os panegiristas devotos de um clubismo cego, os trampolineiros disfarçados de quixotes ou de catões são, unicamente, os que melhor corporizam a cultura desportiva que distingue muitos, muitíssimos portugueses! Converter o Desporto num espaço indispensável à formação, mormente dos mais jovens, nos valores da solidariedade, da justiça, da coragem, da disciplina, da coopetição (ou seja, de uma competição que seja também cooperação com os nossos colegas de equipa e com os nossos adversários), do respeito pelos outros e por nós próprios, da transcendência simultaneamente física, intelectual e moral; integrar uma disciplina de Ética, nas licenciaturas em Desporto e nos cursos de treinadores desportivos; potenciar, na Escola e nos Clubes e nas Famílias, um Desporto que seja, sempre e em todas as circunstâncias, Jogo, Humor, Festa, Solidariedade (designadamente com os nossos adversários) e Coopetição – nada disto, que radica no que de mais autêntico o Desporto é e tem, se confunde com o espectáculo da mediocridade, da parva demagogia de certos “agentes do futebol”. Por isso, pergunto eu: será Desporto o futebol mais publicitado e propagandeado?"
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