Sandes de ovos mexidos

"Arrabaldes da Praia da Manta Rota, 11h35. João Nicolau tenta estacionar o carro, envergando orgulhoso a camisola da Selecção. A mulher Maria ao lado e o filho Afonso no banco de trás. Céu com poucas nuvens.

- Como é que é, como é que é, Afonso?

- Siiiiiiiiiiiiiiiim! - (João olha pelo retrovisor e sorri) Siiiiiiiiiiiiiiiim!

- Podes estar mais atento?

- (João faz a continência) Sim senhora, minha senhora!

- Estava ali!

- Onde?

- À direita, João! Olha, agora já o apanharam…

- Calma, vou dar mais uma volta. Vi um quando entrámos.

- Isso é muito longe.

- Não é nada, são só dois quilómetros.

- Eu ali não fico. Depois nunca mais chegamos à praia.

- E o que é que queres que eu faça?

- Olha ali! Vai! Rápido! Pronto, esquece…

- Este gajo meteu-se à papo-seco!

- Deixa-nos aqui. Eu levo já o miúdo.

- E eu que me desunhe, não é?

- …

- Vá, sai lá, Maria. Eu já lá vou ter.

- Não, deixa. Encontra mas é um lugar.

- Pá, estava aqui mesmo há bocado!

- Tens de ser mais rápido. Fazes sinal antes e metes-te logo.

- É tudo tão fácil desse lado, não é?

- …

- Trouxeste as sandes de presunto?

- Anda lá, já vejo isso…

- Não trouxeste, claro. Já sabes que eu não gosto de ovos mexidos dentro do pão. Não sei aonde é que foste buscar essa mania. Isso deve ser taras lá da tua família…

- Não comeces…

- Demora muito, papá? Quero fazer xixi!

- Já vai, filho. Só mais um bocadinho….

- Mas eu não aguento mais!

(Céu com mais nuvens. João aumenta o volume do rádio)

- Olha esta tão gira: "Eu gosto é do Verão, de passearmos de prancha na mão, saltarmos e rirmos na…"

- Podes baixar a música, João?

- Eu ando à procura de lugar, porra! Tenho de fazer tudo?

- Olha as asneiras em frente ao miúdo.

- O melhor é ficarem já aqui a guardar um lugar para o caso de alguém sair.

- Mas quem é que vai sair agora, João? É quase meio-dia!

- E o jogo é às três! Eu avisei… não devíamos ter vindo...

- Anda lá com isso. Temos a geleira ao quente.

- Estás com medo que os ovos se estraguem? Não ponhas ovos no pão. Que raio de merda de ideia essa…

- Outra vez os ovos? Tu não estás bom da cabeça.

- Papá, para o carro! Quero fazer xixi! - Faz aí no pneu desse manco do monovolume que ocupa três lugares.

- João…

- Queres vir tu para aqui? Se achas que é fácil, conduzes tu, pode ser? Ah não, tiraste a carta mas não conduzes… É fina, a menina…

- Pára o carro. Afonso, sai. Vamos para a praia.

- Não sais nada, Afonso. Entrámos neste estacionamento juntos e saímos todos juntos.

- Aquilo é um lugar?

- Parece. Porra, não, está lá um papa-reformas.

- O melhor é irmos para outra praia. Está um calor desgraçado.

- E achas que as outras não estão todas iguais?

- O que eu sei é que andamos aqui há meia-hora às voltas. Para isso ficava em casa.

- Mas não eras tu que querias praia? Ai, o iodo para o menino, ai a maresia, a brisa… Eu disse-te para ficarmos na piscina.

- A partilhar as urinas de vinte criancinhas?

- Ao menos estava dentro de água.

- Tenho fome!

(Céu cheio de nuvens. Nenhum sol)

- Olha, come os ovos dentro do pão que a tua mãezinha te fez. Deve ser uma promessa qualquer dos beirões. Não chega um pão com presunto. Não! Temos de fazer sandes de ovos mexidos!

- Outra vez, João? Ao menos o Martim não leva com as sopas de vinho que os teus pais te davam. Deve ser por isso que és um bêbado de primeira. Demasiado álcool de pequenino.

- Por falar nisso, trouxeste as cervejas? - Achas? A geleira que compraste quase não dá para o sumo do menino.

- Mas para as estúpidas sandes de ovos mexidos há sempre lugar.

- Olha, um lugar!

- Não, esquece…

- O quê? É um lugar! Aqui mesmo. O que é que estás à espera?

- É demasiado apertado. Depois ainda me arranham a porta.

- E ali, papá? Ali dá!

- Onde?

- Ali, ao pé da reciclagem!

- Boa, puto! Finalmente.

- Não ponhas aí. Há sempre alguém que mete as garrafas em cima do carro. Não vamos arriscar. Tu adoras este carro.

- Tens razão.

- Tenho?

(Uma aberta. Raios de sol perfuram as nuvens e iluminam o carro)

- Tens. Tens quase sempre razão.

- Também não é assim.

- Estás tão bonita com esse vestidinho.

- Pára…

- A sério. Ainda não tinha olhado bem para ti. Lembras-me a primeira vez que viemos a esta praia. Lembras-te?

- Claro. - Também vinhas com um vestido assim. Por cima do biquíni…

- Já foi há tanto tempo…

- Continuas igual.

- E tu.

(João Nicolau e Maria entreolham-se, cúmplices. Poucas nuvens)

- Puto, passa-me aí uma dessas sandochas...

- Mas tu não gostas disto…

- Vá, anda lá, que o papá tem de estar forte para ver a Ronaldo dar três aos espanhóis…

(João Nicolau dá uma trinca na sandes e passa-a a Maria, que faz o mesmo)

- Até que nem é má de todo...

- Não, não, espera que não ouvi bem. O João sandes-de-presunto está a dizer o quê?

- (sério) Ah agora tenho uma nova alcunha?

- O João Nicolau, boquinha-de-queijo-de-Serpa, está mesmo a dizer que pão com ovos mexidos afinal é… bom? É isso?

- Não é migas de espargos. Não é pezinhos de coentrada, não é…

- É pão com ovos mexidos, já sei. E, pelos vistos, já não é porque já a mamaste toda. Queres mais? - Não dizia que não…

- Afonso, tira mais uma para o papá, a ver se ele aguenta o póquer do Ronaldo directamente patrocinado pelos… beirões.

- (sorri) Come-se… mas não ficavam mal aqui uns torresmos.

- (Maria faz a continência) Sim, Major Torresmos!

- Olha um lugar!

- Deixa, puto. Vamos para casa? Siiiiiiiiiim?

- Siiiiiiiiiiim! - Vamos para casa, bicha?

- Vamos para casa, bicho.

(João Nicolau sai do estacionamento da Praia da Manta Rota, 12h04. No rádio, volume alto, ouve-se A Fúria do Açúcar. Sol radioso.)"

Ricardo Silveirinha, in Record