"Não sei se também vos acontece aí desse lado, a vocês que em princípio são gente alheia ao jornalismo, arrumarem o vosso navegador de internet como uma prateleira horizontal, encafuada de coisas por ler, a cada reinício de labuta restaurado o seu histórico de às vezes dezenas de separadores porque um dia tem 24 horas, das quais apenas oito reservadas para deveres laborais se habitássemos um mundo de unicórnios, duendes e fadas, mas nem as mais horas que dedicamos ao trabalho chegam para dar vazão ao ‘deixa cá abrir este artigo e guardá-lo aqui para ler mais tarde’, em especial para clicar no simbolozinho da “GQ” que deixei ali encostado no canto superior esquerdo até esta manhã.
Mais depressa acordei, despertei a TV nesta segunda-feira e apanhei o provável melhor tenista da história a pingar em suor, com ar atónito, barafustando coisas em sérvio e esbracejando em Melbourne, em plena passagem pelas passas do Algarve, longe da sua versão maquilhada e sem olheiras, a conceder um olhar galante para a fotografia que abre uma longa reportagem com ele a bordo de um veleiro em Kotor, no Montenegro, cheia de poses sedutoras da câmara, com roupagem à civil do seu patrocinador e encabeçado por um sugestivo título sem uma ponta de mentira: “Novak Djokovic conquistou o ténis. O que se segue?”
Seguiu-se, primeiramente, a sua desalentada postura ao perder o primeiro set contra o incógnito Nishesh Basavareddy, olha a surpresa e um sérvio com máscara de trombas no campo, mas, no segundo parcial, o acordar de Djokovic causou cãibras ao norte-americano que lentamente capitulou para suceder o previsível e seguir-se o imprevisível até há bem poucos dias de o tipo que “completou o ténis”, li agora mesmo na reportagem que estava em lista de espera, ir defrontar Jaime Faria na segunda ronda do Open da Austrália. O português que se está a estrear em quadros principais de Grand Slams jogar contra quem mais torneios destes (24) tem entre homens seria, por si só, motivo para rejubilarmos pela chegada desta fatia do ano, a que sacia a fome e nos presenteia com ténis do melhor.
Mas, e perdoem-me a ousadia, creio que o facto de o novato tenista que ainda há dias confessou à Lídia Paralta Gomes nada ter dormido, nem conseguido comer na véspera do derradeiro jogo do qualfying, estar prestes a defrontar o suprassumo das raquetes infelizmente não guarda tudo o que deveria sustentar a nossa rendição ao ténis, pelo menos durante esta próxima quinzena.
Fala-se muito, não o suficiente, das intrincarias do ténis, por alguma razão a mais mediática das costelas do desporto em que os atletas estão vetados a eles próprios, sozinhos no court com as suas qualidades e defeitos, os seus bicharocos mentais. À melhor de cinco sets (no caso dos Grand Slams) e naquele campo com uma rede no meio, cada um está por sua conta e talvez isso justifique a pletora de acrescentos a que os tenistas mais ricos, com maiores aspirações, recorrem na caça aos ganhos marginais.
Vencedora de um dos majors de 2024, Coco Gauff trocou de treinador para mudar por completo a maneira como serve, assim a meio da carreira; Naomi Osaka contratou uma antiga bailarina que a ajudasse a melhorar o seu jogo de pés; Novak Djokovic convenceu o biónico Andy Murray, recém-reformado com a sua anca de titânio, a quem ganhou 25 vezes nos bons velhos tempos, a ser seu treinador e perguntar-lhe como fazia antigamente quando jogava contra o sérvio. Isto além de rigorosamente fazer análises de sangue à semana para averiguar como está o seu corpo e, quando come fora de casa, inquirir minuciosamente quem o serve acerca das origens dos alimentos e da sua confeção, como contou à “GQ” que estou a fazer por tirar do acumulado de separadores aqui do browser.
O detalhe alcançado pela miúça a que o ténis obriga os seus até se vê refletida na polémica em voga neste Open da Austrália, já não a da deportação do sérvio, em 2022, mas a da possível suspensão que poderá ser aplicada ao número um do ranking, Jannik Sinner: falhou o ano passado dois controlos anti-doping porque, segundo alegou, um massagista da sua equipa comprou um creme em Itália com clostebol, substância proibida detetada em níveis ínfimos após ser absorvida pelos poros da pele do italiano quando foi massajado pelo tal sujeito. O caso paira no ar e nas redes sociais, onde Nick Kyrgios, o fleumático trash talker australiano, não tem poupado palavras a criticar Sinner e o que diz ter sido um tratamento diferenciado das autoridades por ser quem é.
O ténis, mais além do detalhe, e ainda bem, também convida a esta abertura, à faceta vocal dos seus intérpretes que se munem de assessores como em qualquer outra modalidade, mas estão sozinhos nas reações em court e nas salas de imprensa, por sua conta diante dos microfones, sem generais da comunicação ao lado a acharem-se no direito de determinar o que se pode ou não falar. As entrevistas são muitas e, quando falam, fazem-no sem cassetes estragadas.
O russo Andrey Rublev, número 9 do ranking, admitiu ter-se questionado se fazia sentido viver há poucos meses, quando tomava medicação anti-depressiva e partia raquetes contra o próprio corpo. Finalista de Grand Slams, a tunisina Ons Jabeur, apelidada de “Ministra da Felicidade”, alongou-se sobre a tristeza e raiva que a atormentam devido ao massacre em Gaza, que critica sem pés ante pés, dizendo tentar não ler notícias para que elas não a atormentem à noite. Em 2023, ainda mais catraio do que ainda é, Carlos Alcaraz explicou que o poço de nervos em que estava ao perder contra Djokovic na meia-final de Roland-Garros causou-lhe cãibras. Os protagonistas baixam a guarda, destapam as suas fraquezas e criticam o que pretendem criticar.
O ténis não é um sol radiante a toda a hora. Tem as suas coisas más e irritantes como tudo quanto é desporto, o que lhe gabo é a abertura de quem joga a desvendar-se, são os tapetes estendidos à emanação das personalidades apesar da contrição a que estão obrigados no campo, onde a fasquia da exigência não cessa de ser elevada agora que se julgava que estaríamos próximos do teto construído por Djokovic, Nadal, Federer e os 66 torneios do Grand Slam que têm em conjunto.
A maior das responsabilidades recentes pertence a Alcaraz e Sinner, o binómio da nova vaga, rivais desta geração que partilharam os majors do ano passado e sem pruridos, amigalhaços confessos, treinaram juntos em Melbourne antes de arrancar o Open da Austrália, onde só se poderão cruzar nos seus campos de azul vibrante na final. Porque eles estão a deturpar o que é errar.
Os caracóis cenoura do cabeludo italiano e o espanhol que tem huevos tatuado na pele são os candidatos a ganharem tudo. E têm encarecido a expressão “erro não forçado”, banalizada no ténis, presente no glossário da modalidade e nas estatísticas de qualquer jogo. Com eles, errar deixou de ser murchar uma bola contra a rede ou atirar um smash para fora, errar hoje é não acertar com a bola em cima da linha ou já com mais da sua superfície fora do que dentro. A escala está nos milímetros. Contra quem é mais do que uma parede e devolve bolas em espargata, ou com o corpo em pose de ginasta, com a mesma potência como se estivessem a batê-la nas condições ideais, errará todo aquele que não for capaz de jogar no limite, ou pelo menos de ousar tentá-lo.
O ténis é fascinante, também, por ter um mais do que provado campeão de tudo, acabado de ganhar o ouro olímpico que lhe faltava, ainda com desejos, aos 37 anos, de desafiar a juventude de Alcaraz e Sinner. Escrevo isto e nem acabei de ler a prosa sobre Novak Djokovic banhado pelo Adriático, o separador vai continuar ali acumulado em cima por um pouco mais de tempo. Mas, pelos vistos, não será na Austrália, onde persegue um 11.º título, que o sérvio pensará no ‘quando’, porque ainda estará entretido com a forma: “Penso mais no ‘como’ gostarei de terminar a carreira. Se começar a perder mais vezes, a sentir que a distância é maior, que começo a ter mais obstáculos grandes nos Slams, aí provavelmente vou parar.” Prometo que entre hoje e amanhã acabarei de ler o resto, nos intervalos do happy slam.
O que se passou
O campeão de inverno, nobiliárquico título inventando para dar tração à prova menos estimada do futebol Portugal, é o Benfica, após vencer o Sporting, nos penáltis, na final da Taça da Liga. No dia seguinte, sumido o nevoeiro na Choupana, enquanto os rivais descansavam o FC Porto falhou o assalto à liderança no campeonato, perdendo contra o Nacional da Madeira. A Lídia Paralta Gomes contou o que se extraiu de um jogo e do outro.
Lá fora, igualmente a 11 metros da baliza, o Manchester United sobreviveu a um prolongamento com menos um jogador em casa do Arsenal e eliminou os londrinos da Taça de Inglaterra. Há mais oxigénio no balão de Ruben Amorim. Bem longe, na Arábia Saudita que recebe a Supertaça de Espanha, o Barcelona terraplanou o Real Madrid."