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terça-feira, 6 de outubro de 2015

Náufragos à deriva num mar branco e furioso

"Dias antes de se estrear na Taça dos Campeões Europeus, o Benfica recebeu o Barcelona no Restelo e realizou uma das mais brilhantes exibições da sua história destruindo por completo o adversário, marcando quatro golos e chutando por duas vezes aos postes.

As conversas são como as cerejas, diz-se. Talvez as crónicas sejam como as ginjas: recordação arrasta recordação e cada história traz consigo, presa pelo mesmo espigão, outras histórias.
Hoje recordo um episódio curioso dos primórdios do grande Benfica europeu. E, para isso, recuo até 1957. Setembro de 1957. Estavam os 'encarnados' à beirinha de se deslocar a Sevilha para o seu primeiro jogo da Taça dos Campeões que, como todos sabemos correu mal, com uma derrota por 1-3 que os deixou logo de fora na primeira eliminatória.
Não esqueçamos no entanto que já havia taças da Europa há muitos e muitos anos, que esta coisa de reduzir tudo ao que a UEFA regula e manda só serve para enganar pacóvios, o Futebol já existia organizado muito antes de surgirem os mostrengos que hoje em dia o lideram com mão de ferro e nem sempre muito limpa.
Um dia falaremos aqui da Challenge Cup (que punha em confronto desde 1987/88 os campeões dos países que compunham o Império Austro-Húngaro) ou da Copa Mitropa (iniciada em 1927 e que englobava os grandes clubes das federações centro-europeias), tal como por várias vezes já falámos da Taça Latina.
Pois em 1957, já o Benfica conquistara a Taça Latina (1950) e perdera no mês de Junho uma final da mesma prova em Chamartín, face ao Real Madrid.
Agora, no dia 5 de Setembro, defrontava o Barcelona, no Restelo.
O Barcelona já vencera a Taça Latina por duas vezes (1947, batendo o Sporting na final, e 1952), sonhando com a Taça dos Campeões Europeus conquistada até aí duas vezes pelos rivais do Real.
Ah! havia gente fantástica nessa equipa catalã: Ramallets, Gensana, Segarra, Seguer, Bosch, Luisito Suarez, Vergés, Basora, Sampedro, Tejada, Ramon Villverde, Ladislao Kubala.
Kubala, o grande húngaro, não veio a Lisboa...
Sorte dele.

Rezando à Nossa Senhora dos Afogados
Entre o público que se deslocou ao Restelo, estava Guilherme Espírito Santo que uns anos antes, precisamente em Barcelona, tinha levantado as bancadas do Les Corts graças à sua técnica maravilhosa.
Ele viu. E todos os outros foram testemunhos.
O Benfica destruiu o Barcelona! Não há forma de o descrever sem ser assim. Foi uma destruição pura e dura de uma equipa que toda a imprensa considerava muito superior.
Por falar em imprensa: Tavares da Silva esteve presente.
Ainda bem para nós, que gostamos da prosa escorreita e clara.
Tavares da Silva: já o tenho trazido aqui por diversas vezes.
João Joaquim Tavares da Silva: formado em Direito, jornalista de «A Bola» (não esta, uma que existiu entre 1932 e 1934), da «Standium», do «Diário de Lisboa», do «Norte Desportivo»; treinador da Académica, do Belenenses, do Lusitano de Évora, do Sporting; seleccionador nacional; o homem que inventou a expressão «Cinco Violinos».
Tavares da Silva nunca escondeu que o seu clube do coração era o Sporting. Por que haveria de fazê-lo? Faria dele mais sério, mais profissional?
Julgue o leitor por si próprio: «Arrasam-se-nos de lágrimas os olhos ainda hoje ao relembrar-mos aquele deslocação a Barcelona (N. do A. - 1940, derrota do Benfica por 2-4) que tão intensamente vivemos, nós, sportinguistas de gema, e por isso mesmo nos sentimos ontem à noite irmanados com Guilherme Espírito Santo no mesma luz, uma alegria superior à média dos benfiquenses».
Isso mesmo, benfiquenses como era uso à época.
Isso mesmo, é ao relato de Tavares da Silva que vamos recorrer para falar da impressionante vitória do Benfica sobre o Barcelona: 4-0!
«Ao começo, ainda os barceloneses deram uma imagem ou um apontamento de mérito, mas à medida que o tempo se gastava as operações do Barcelona diminuíam e as do Benfica cresciam de forma assustadora. Quando os lisboetas, que na época passada se cobriram de glória não só em território nacional mas também em terras de Espanha (N. do A. - Taça Latina), chegaram aos 4-0 (havia somente 49 minutos de jogo), o encontro findou... O adversário estava por terra, já não tinha velocidade, sentia-se diminuido e acabrunhado, estava completamente desfeito o seu poder de reacção e o Benfica tinha perdido, logicamente, a raiva do jogo. (...) O Barcelona era, verdadeiramente, uma imagem de Futebol esfrangalhado, impotente, com vários sectores desligados, e as suas unidades mantinham-se em campo só para cumprir a obrigação. Apenas aos 90 minutos do jogo acabou a tortura dos espanhóis. Uma única equipa vivia em campo; a outra estava morta».
Dificilmente haverá maior eloquência de uma superioridade. O Benfica havia transformado o seu adversário numa equipa banal e sem fogo.
Aos 35 minutos, Palmeiro tenta um remate distante: a bola sai alta, atrapalhando Ramallets que soca para a frente; Coluna vem na passada e é fulminante como um raio - o pontapé é tremendo, o golo magnífico.
Como estupenda foi a cabeçada de José Águas para o 2-0 em cima do intervalo.
O Benfica atacava com seis, às vezes sete e oito jogadores. Fernando Caiado e Coluna dominavam por completo as respostas do meio-campo do Barcelona. Cavém faz o 3-0 e Águas o 4-0 sobre o minuto 50, novamente de cabeça.
Os catalães podem agradecer à sorte. Vêem Coluna e Salvador estarem à beira do quinto golo; assistem à forma como Águas desperdiça um «penalty» chutando ao poste e como Calado faz a recarga à trave.
Envoltos num mar branco e encapelado (o Benfica jogava todo de branco) são náufragos à deriva, rezando à Nossa Senhora dos Afogados para que o tempo passe depressa e possam regressar a casa.
Só voltarão a defrontar o Benfica dentro de quase quatro anos: em Berna. Para conhecerem de novo o amargo da derrota."

Afonso de Melo, in O Benfica

Sobre Gaitán

"Escritor notável, Nobel da Literatura, referência ética de uma Europa a colapsar e guarda-redes de futebol no Racing de Argel, Albert Camus foi tudo isto e, certamente por isso, disse um dia que "depois de muitos anos, nos quais vi muitas coisas, o que sei de mais seguro sobre moralidade e os deveres do homem, devo-o ao desporto e aprendi-o no Racing de Argel". A citação surge amiúde e vive de forma autónoma, contudo só recentemente apreendi o seu verdadeiro sentido.
Recorro a Eduardo Galeano, que cita ainda Camus, que nos revela ensinamentos dos anos de guarda-redes: "Aprendi que a bola nunca vem ter connosco por onde esperamos que venha. Isso ajudou-me muito na vida, sobretudo nas grandes cidades, onde as pessoas não são, como se usa dizer, rectas."
Moralidades à parte, o que Camus também identificou com precisão foi a magia singular do futebol. Uma coreografia assente em regras, disciplina táctica, movimentos previsíveis, mas que acaba por ruir porque, por mais que procuremos antecipar o que vai acontecer, "a bola nunca vem ter connosco por onde esperamos"
Hoje o futebol pode parecer uma exibição de organizações quase espartanas, com pouco espaço para a afirmação individual. Nada de mais errado. O futebol persiste grandioso porque no meio da organização burocrática, do modelo de jogo ensaiado, há sempre uma nesga de criatividade que leva a bola por caminhos inesperados. Sem o rasgo irresponsável de um par de mágicos que resistem às amarras, o futebol poderia existir, mas não nos ensinaria nada sobre moralidade."

União está a mais na Liga

"Não se chama Sebastião, nem sequer é rei, mas mostra habilidade na oratória este presidente do União que, num fim de tarde de nevoeiro, se aproveitou do espaço de antena que lhe foi dispensado para verberar o adiamento do jogo com o Benfica que minutos antes havia sido decidido por quem detinha poderes para tal, como se tivesse sido praticado pecado sem perdão. Em primeiro lugar, o referido presidente, porventura deslumbrado por tamanha deferência mediática, entendeu espalhar críticas em várias direcções, começando, é bom que se assinale, por rotular de parvos quantos naquele instante seguiam a transmissão da Sport TV, os quais, com o mínimo de atenção, puderam verificar que em termos de condições climatéricas as imagens foram mais fortes do que as palavras, contrariando o que o dirigente ousou afirmar sobre a matéria. É claro que o jogo poderia ter-se iniciado naquele intervalo que jornalista e comentador da estação assinalaram com oportuno sentido de reportagem mas apenas isso. Tratou-se apenas de uma aberta que depressa se diluiu na espessa neblina que, por informações recolhidas, assentou arraiais desde manhã e não mais de lá saiu.
À parte o farrapo de argumentação utilizada com o suposto objectivo de, no essencial, dar uma bicada na posição assumida pelo Benfica, o presidente unionista endereçou bizarros reparos aos que contribuíram para dar uma «má imagem da região, de um clima que não é o seu»... Além de um rol de queixas, ao considerar o União «altamente prejudicado» e, entre outros arremessos, sugerir ao actual Governo Regional que fiscalize o contrato de cedência ao Marítimo do Estádio dos Barreiros.
O presidente unionista falou muito, mas esqueceu-se, ou talvez não, de abordar a questão que verdadeiramente interessa e que se prende com o facto de três clubes da mesma cidade (Funchal) competirem na principal Liga profissional (Marítimo, Nacional e União), o que só encontra paralelo na capital do país (Benfica, Sporting e Belenenses), aconselhando o bom senso, no entanto, que não se estabeleçam comparações entre as duas realidades por serem incomparáveis... A introdução do União na Primeira Liga é, pois, a expressão de mais uma exuberância futebolística made in Madeira. Exuberância essa que vai gerar custos elevados que terão de ser pagos.
Já que se mostrou tão empenhado na proclamação de alguns valores, podia o presidente da SAD unionista ter aproveitado a ocasião de estar em rede de grande audiência para informar quanto recebe o seu clube do Governo da Região. Não se lembrou ou tal manifestação de transparência não coube no alinhamento da sua demorada intervenção. Não é segredo, mas, mesmo assim, ter-lhe-ia ficado bem essa declaração, em nome da verdade. Pois é... talvez não interesse despertar esse sentimento de concorrência desleal em relação aos clubes continentais, principalmente aos de menor dimensão, porque se todos pudessem beneficiar dos mesmos apoios financeiros, provavelmente, esta situação nem se colocaria...
Com todo o respeito pela história de um emblema centenário, carece de sentido a presença do União na Liga portuguesa. Pode não gostar-se dos estilos dos respectivos presidentes (Carlos Pereira e Rui Alves), mas é inquestionável que, cada qual com a sua linha de orientação, Marítimo e Nacional são notáveis representantes da Região, além de apresentarem obra.
O União depara-se-nos, pois, sobre a onda de um capricho político-social que os contribuintes não têm obrigação de continuar a suportar..."

Fernando Guerra, in A Bola

Pecados mortais

"A propósito de alguns fenómenos desportivos anómalos, reveladores da condição humana, relembro os 'pecados mortais' e aproveito para renovar as críticas pela forma como alguns clubes têm vindo a coagir os seus jogadores para que aceitem a cessação ou renovação do contrato de trabalho.
Orgulho. Quer na pré-época quer no decurso das competições desportivas têm sido recorrentes as práticas abusivas infligidas a jogadores, colocados a treinar à margem do 'grupo normal de trabalho', ou na 'equipa B', para que abandonem o clube ou renovem o vínculo.
Avareza. Embora os clubes estejam mais conscientes do papel que devem desempenhar as equipas B, nalguns casos estas continuam a funcionar como espaços de punição e desvalorização de jogadores. 
Luxúria. Prosseguem também os casos de jogadores com indicação por parte dos clubes para aguardar pela sua chamada, sendo depois confrontados com processos de despedimento por abandono do trabalho. 
Inveja. Para além de violarem as garantias laborais essenciais, as práticas descritas têm fomentado a celebração de acordos de revogação desfavoráveis aos interesses dos jogadores, comprometendo o progresso da sua carreira desportiva.
Gula. Reitero que os jogadores devem poder treinar com o seu 'grupo normal de trabalho'. Qualquer diferenciação de tratamento que não seja justificada por razões disciplinares e aplicada proporcionalmente constitui uma forma de discriminação ilegal violadora das obrigações a que os clubes, enquanto entidades empregadoras, estão sujeitos.
Preguiça. As sanções disciplinares aplicadas pelos clubes devem resultar de um processo devidamente instruído que permita a apresentação de meios de defesa.
Defeitos e virtudes. Os jogadores envolvidos nas práticas enunciadas devem estar conscientes de que não estão sozinhos e procurar ajuda junto do Sindicato. Dando o primeiro passo terão um parceiro de diálogo com os clubes que pautará a sua actuação pelo respeito, integridade e facilitação das vias de comunicação. O nosso compromisso é claro, o de apoiar os jogadores, com o máximo respeito pelos clubes que representam, em prol da dignidade do futebol!"

"Um pombo à cabeça e um cão ao ombro..."

"A história do jogador de futebol que era columbófilo e que vivia numa casa que mais parecia a Arca de Noé.

José Torres (1938-2010) teve uma longa carreira como jogador, somando 23 anos de carreira no futebol profissional. Nunca é demais relembrar que o avançado esteve ao serviço do Sport Lisboa e Benfica durante 12 épocas, ao longo das quais auxiliou o Clube na conquista de 16 títulos.
Os seus feitos desportivos, tal como a sua inconfundível figura - alta, esguia, de rosto estreito e sobrolho carregado  - são já bem conhecidos. O que muitos desconhecem é que José Torres tinha uma paixão para além do relvado: a columbofilia. Em sua casa tinha cerca de uma centena de pombos que ele próprio treinava mas, de todas aquelas aves, uma era especial: o Menino.
O Menino, ao contrário dos restantes, não era um pombo-correio e não vivia no pombal. O Menino circulava livremente entre a casa e o quintal, onde brincava com José Augusto, Francisco José, Maria da Nazaré e Ana Maria, os filhos do jogador, mas sobretudo com o Pitó, o cão.
Quem nos dá a conhecer a curiosa histórica do Menino e do Pitó é o jornalista Carlos Pinhão que, ao serviço do jornal A Bola, se deslocou juntamente com o fotógrafo Nuno Ferrari a casa do jogador. O objectivo inicial era, como seria de supor, fazer uma reportagem sobre futebol mas, sendo recebidos entusiasticamente pelos dois bichos, logo a temática foi alterada.
Sentaram-se para dar início à entrevista e, de repente, o jornalista tinha 'um pombo à cabeça e um cão ao ombro...', um momento que descreve como 'verdadeiramente inesperado'.
'-São amigos' - começou Torres a explicar.
'-Quem?
-O cão chama-se «Pitó» e o borracho é o «Menino». São muito amigos um do outro, andam sempre na brincadeira.'
E assim, o pombo e o cão ganhavam o papel de protagonistas na entrevista. Na página d'A Bola, Pinhão continuava:
'É giro ver o cão a correr e o pombo a acompanhá-lo, voando. (...) diz-nos Torres que brincadeiras assim se estendem às galinhas, aos patos, aos gatos...'. 'Mas isto é uma casa ou a Arca de Noé?', perguntou  o jornalista.
O fotógrafo, 'a rir-se às escâncaras', disparava continuamente. Torres limitou-se a responder:
'-Ainda bem que vocês vieram cá a casa (...) é que ninguém acredita, (...) agora é diferente, vendo as fotografias do Nuno...'.
No Museu Benfica - Cosme Damião, são vários os locais onde Torres é recordado, entre eles a área 23. Inesquecíveis."

Mafalda Esturrenho, in O Benfica