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terça-feira, 14 de abril de 2015

122$700 de passagem de navio e o Marítimo veio a Lisboa há 103 anos

"Os jogos entre o Benfica e o Marítimo são velhinhos, velhinhos: datam de 1912. E foi o Benfica o primeiro clube continental a visitar a Madeira - em 1922. Quanto ao Marítimo já ganhou um Campeonato de Portugal (depois passou a chamar-se Taça de Portugal) com um 7-1 ao FC Porto na meia-final.

Se as conversas são como as cerejas, as crónicas são como as ginjas. Para meu gosto, até bem mais saborosas.
Vem tudo a propósito: ter falado aqui nas últimas semanas das vitórias do Benfica no Campeonato de Portugal (que depois se passou a chamar Taça de Portugal) e da final entre Benfica e Marítimo para a Taça da Liga.
Já veremos como uma coisa puxa a outra.
Para já, faço notar: os jogos entre Benfica e Marítimo disputam-se há mais de 100 anos e a primeira viagem das 'águias' à ilha foi em Abril de 1922. Muito respeito portanto por tão vetusto adversário!
Sobre a tal visita à «Pérola do Atlântico» já escrevi nestas páginas - e note-se também que o Benfica foi o primeiro Clube do continente a ir à Madeira. Vamos, por isso, ainda mais atrás. A 1912.
Diz Adelino Rodrigues na «História do Clube Sport Marítimo»: «No ano de 1912, o acontecimento mais importante da vida do clube foi a deslocação da sua equipa de honra a Lisboa, onde realizou vários jogos que deixaram boa impressão, segundo a crítica de alguns jornais da época. A iniciativa partiu do Sport Lisboa e Benfica, tendo por principal animador o Sr. Cosme Damião, capitão-general daquele Clube, pois toda a correspondência que consta para a realização deste empreendimento está assinada por aquele senhor.
Dionísio da Câmara Lomelino, representante do Marítimo, e Fernando Câmara, madeirenses, entusiasmados pelos «marítimos» e ao tempo residentes na capital, enviaram cartas sobre cartas, recomendando todo o cuidado na preparação da equipa, pois na era da máxima importância 'fazer boa figura' perante os valorosos continentais».
Cumpria-se História.
Pagou o Benfica as despesas da passagem para Lisboa, no valor de 122$700, além da estadia (158$500) e diversos (31$545). Dinheiro recuperado pelas receitas nos jogos, nada menos de cinco, dois frente ao Benfica, um contra o Lisboa FC, outro contra o CIF e ainda mais um face a um misto destes três clubes.
No primeiro dos dois jogos frente ao Benfica, nas Laranjeiras, no dia 10 de Outubro, perderam os insulares por 1-3. Nos segundo, a derrota foi mais pesada: 2-5.
Houve certa desilusão na imprensa de Lisboa. Recorde-se que, apesar de as equipas madeirenses não terem contactos com o continente, beneficiavam da forte presença de ingleses na ilha, de tal forma que foi no Largo da Achada, freguesia da Camacha, que se disputou o primeiro jogo de futebol em Portugal, em 1875, iniciativa de Harry Hinton, treze anos antes do famoso encontro promovido por Guilherme Pinto Basto, em Carcavelos.
Mas Benfica e Marítimo estreitavam laços - os 'encarnados' eram nomeados sócios honorários dos «Leões da Almirante Reis» - e jogadores como José Barrinhas, Augusto Viveiros, Moisés de Sousa e João Pimenta recebiam elogios.

7-1 ao Porto e confusão no Porto
Em 1922 foi o Benfica à Madeira - perdendo dois jogos com o Marítimo, 2-3 e 3-6 - e começava a disputar-se o Campeonato de Portugal (que assou a chamar-se Taça de Portugal em 1938/39).
E antes que os 'encarnados' conquistassem o seu primeiro título (como vimos nestas últimas prosas, em 1929/39), já o Marítimo fora campeão de Portugal.
Na primeira edição da prova União Portuguesa de Futebol decidiu «democraticamente» que dos quatro campeões regionais FC Porto, Sporting, Olhanense e Marítimo, só os de Lisboa e Porto disputassem a pseudo-final. Depois a prova democratizou-se.
Enfim, mais ou menos.
Como depois na Taça de Portugal com os representantes das colónias, o campeão da Madeira recebeu nos primeiros tempos a benesse de só entrar na meia-final da competição - sempre se poupava nas viagens...
Em 1925/26, foi exactamente isso que sucedeu. Os quartos-de-final foram coxos - Belenenses, 4 - Sp. Espinho, 1; Olhanense, 5 - Luso de Beja, 0; FC Porto 3 - Sp. Braga, 0.
Depois o Belenenses defrontou e bateu o Olhanense por 2-1.
Quanto ao FC Porto, vencedor na época anterior, era favoritíssimo perante os rapazes do Funchal - a história repete-se muitas vezes, não é?
Em Lisboa, no Campo Grande, o Marítimo treinado pelo húngaro Francisco Ekker esmagou o FC Porto do também húngaro Akos Tezler - em resposta ao golo inicial de Hall, António Alves (4), Marques Ramos (2) e Camarão fixaram o resultado num incrível 7-1!
A final foi no Campo do Ameal, no Porto. O Marítimo venceu novamente, derrotando o Belenenses de Pepe por 2-0, golos de José Fernandes e Marques Ramos. Depois do segundo golo, os lisboetas armaram um sururu. Augusto Silva foi expulso e recusou-se a abandonar o campo. O árbitro, José Guimarães, queixa-se de ter sido mordido. O público, na sua maioria apoiando os madeirenses, revolta-se. Não há mais condições para que a partida prossiga. O Marítimo é declarado vencedor, mas não recebe o troféu. É triste. Só virá a recebê-lo em 1944, embora na Madeira se faça a festa.
Porque os adversários leais merecem sempre respeito, aqui ficam os campeões de Portugal de 1926: Ângelo Ortega; Ranfão e José Correia; Domingos Vasconcelos «Beiçolinhas», Francisco Lopes e José Sousa; José Ramos, António Alves, António Teixeira «Camarão», José Fernandes e Marques Ramos.
Mais de cem anos após o primeiro jogo, Benfica e Marítimo têm lugar marcado numa final. Com muito de histórica!"

Afonso de Melo, in O Benfica

Caos criativo

"O saxofonista Ornette Coleman disse um dia que o 'jazz é a única música em que a mesma nota pode ser tocada noite após noite, mas de forma diferente de cada vez'. Lembrei-me do criador do free-jazz quando este fim-de-semana assistia, pela enésima vez, ao carrossel atacante do Benfica. E a questão é mesmo a repetição do 'carrossel atacante'.
Há quatro anos que se usa a expressão para caracterizar a forma como o Benfica ataca, envolvendo um grande número de jogadores em movimentações imprevisíveis. Ora parece-me bem que estamos perante um problema de denominação: se as movimentações são imprevisíveis, não podemos falar de um carrossel - por natureza uma formação em movimento circular e sem variação.
Quando, depois de 20 minutos de jogo, a Académica em asfixia implorava por uma pausa para respirar, ficou, para mim, claro que a gramática à qual obedece o Benfica não é a de um carrossel, aproxima-se mais do caos criativo, próprio do jazz. Reparem, há um equilíbrio colectivo, mas que está ao serviço dos desequilíbrios individuais aos solistas e que radica num método muito trabalhado, mas quase invisível.
A agressividade com que o Glorioso encara os jogos não se aproxima do movimento repetitivo do carrossel. Pelo contrário, o objectivo é sempre alterar as convenções tácticas: como sugeria Coleman, tocar a mesma nota, mas fazê-lo sempre de forma diferente. Umas vezes, com Lima a cair nas alas, outras com Gaitán e flectir para o meio, outras com Salvio na zona de finalização e, claro está, com Jonas a fazer tudo bem em todo o lado.
Tal como no jazz, mesmo nas suas variações mais radicais, esta criatividade pressupõe uma organização que é tão complexa e eficaz, quanto mais invisível e trabalhada. Afinal, nada é tão exigente como uma boa improvisação.

Resta agora superar um desafio: exibir este caos criativo em todos os palcos e não apenas na Luz."