"Manchester City foi perdendo a sua identidade, enquanto o Real Madrid criou uma que lhe tem trazido enorme sucesso, num caminho que começou a ser desbravado por... Mourinho
Se Francis Fukuyama, meio japonês meio norte-americano, cientista político e económico de corpo inteiro que provavelmente nunca tocou numa bola, analisasse o jogo, chegaria muito provavelmente à conclusão de que este se encontra num impasse, num equilíbrio aparentemente perfeito em cima do ponto final da sua história.
Caso se tivesse interessado pelo soccer em Nova Iorque ou em Harvard, no Massachusetts, talvez não evitasse apaixonar-se pelo som do couro a bater nas redes ou pelas reações das bancadas, como com tantos outros que isolou e reproduziu enquanto hobby quando fugia dos assuntos mais sérios que o perseguiam intelectualmente. Mas isso é outra história.
O choque entre guardiolismo e kloppismo levou a que praticamente todas as equipas sigam princípios idênticos, joguem praticamente da mesma forma. É o raio da síntese, o que fica do embate de titãs, a tese e a melhor das antíteses. Não é novidade, acontece desde que os malucos dos ingleses começaram a pontapear bexigas de boi entre as pernas de outros gentlemen até alcançarem o clímax, banhados de testosterona, na periferia de três paus de madeira.
Os sistemas perderam relevância, diluíram-se em ajustes à procura de superioridades numéricas por todo o campo, em nome de um domínio territorial, com expressão posterior no resultado. São pontos de partida, intervalos no tempo ou mero alinhamento defensivo, representando um momento que não reflete o jogar, porém sim o impedir do adversário em fazê-lo. No fundo, o 3x5x2, o 3x4x3, o 4x4x2 e 4x3x3 não são mais do que simplificações rudimentares ultrapassadas do que é o futebol na atualidade.
A pressão e a respetiva fuga tornaram-se gato e rato a derrubar móveis e a espalhar o caos por todo o lado em longas perseguições, e as novidades aparecem hoje sobretudo aí, na contagiante criatividade de nomes como De Zerbi, Thiago Motta, Xabi Alonso e, sempre, Guardiola, verdadeiros influenciadores, que vão acrescentam variantes à sua primeira fase de construção para levar a bola até perto da baliza contrária, distribuindo-se depois agressivos pelo campo a assumirem a sua vez para que os rivais provem do próprio veneno.
O modelo é semelhante um pouco por todo o lado. Com bola, constrói-se a partir da baliza. A três ou a dois, com ou sem guarda-redes e com os laterais mais ou menos projetados. Tenta-se ligar com o meio-campo, que depois procura associar-se rapidamente ao ataque. Sem bola, sobem-se as linhas para pressionar de forma agressiva, com a da defesa mais perto da do meio-campo, de forma a que a construção rival tenha menos tempo e espaço para pensar e executar de forma limpa. Se possível, grita-se para que haja encurtamentos e assim se apertar mais. Se o ataque rápido não for possível, gere-se a bola, liga-se o modo ataque posicional, montando o cerco à baliza que se pretende atacar.
Se o Manchester City partiu do ataque posicional para incorporar a verticalidade de extremos como Savinho e Doku e a potência e acuidade na área de Haaland, o Liverpool acrescentou a presença imperial de Mac Allister, a explosividade de Szoboszlai e ambivalência de Gravenberch para escrever estrofes a rimar com juego de posición no emocional You’ll Never Walk Alone.
Na realidade, as equipas são sempre um pouco mais uma destas coisas do que a outra, mas tentam revelar-se a soma das duas, devido a heterogeneidade que enfrentam: adversários a encontrar-se algures num ponto muito próprio deste caminho, com jogadores mais fracos ou mais fortes em determinadas dinâmicas, e terrenos e climas que obrigam a abordagens mais complexas, por exemplo. Neste mundo cada vez mais monocórdico há diferenças impostas pela qualidade individual. No treino, nas vertentes teórica e prática, pelo treinador; nos jogos, na concretização do plano através do nível da tomada de decisão e definição que os jogadores apresentam, além do que estes trazem de fora da caixa.
Num jogo que está permanentemente a tentar ter bola ou a movimentar-se para recuperá-la – claro que ainda há uma percentagem de clubes que assenta em blocos baixos e em transição e outros que não abdicam da pressão alta a todo o custo –, os jogadores começaram a passar por um molde que, ao mesmo tempo, eliminava projetos menos bem-conseguidos: o posicionamento e a leitura tática, juntamente com o passe, tornaram-se mais importantes do que o drible e houve até um momento em que Guardiola ameaçou, em jeito de caricatura, jogar com 11 médios em simultâneo, a fim de controlar sempre a bola.
O catalão mudou de ideias, chegou à sua Liga dos Campeões pelo City já com Haaland incorporado, mas quando se pensou que se iniciaria uma fase de domínio planetário, começou sim a descaracterização da equipa, em busca de soluções diferentes, que a tornam sobretudo mais parecida com todas as outras. É verdade que não foi imediato e houve conquistas internas, mas o colapso chegou, talvez até em jeito de karma. É que uma equipa de Guardiola nunca antes foi mais do mesmo.
Quando o espanhol voltou a abrir a porta aos dribladores, vários outros treinadores já o tinham feito e um nunca deles abdicara. Com a habitual liderança tranquila, em que entrega aos jogadores grande parte das decisões, Carlo Ancelotti transformou o Real Madrid numa verdadeira máquina de transições, com Vinícius Júnior, Rodrygo, Mbappé, e ainda Guler, Brahim e Endrick. É verdade que herdou os merengues de Mourinho, que nos jogos com o Barcelona não tinha pudor de estacionar o autocarro – e embora ofensivo, esse Real tinha forte presença de ligações Benzema-Ronaldo nos ataques rápidos –, mas a viragem na direção da sólida organização defensiva e das saídas em velocidade começou na primeira passagem, prolongou-se, embora com insucesso, vom Benítez, e depois, aí de volta à glória, em Zidane.
Quando Florentino Pérez tentou recuperar o ataque posicional, via Lopetegui, deu-se mal. Zizou voltou menos entusiasmante em termos europeus e Ancelotti sucedeu-lhe então para levar mais duas Ligas dos Campeões para o museu, não sendo descabido que volte a consegui-lo na edição em curso. Mesmo que tenha também essa capacidade de se organizar em associação – o tal ponto próprio no seu caminho – , a identidade está mais do que vincada. O que garantirá resultados até que apareça nova antítese que contrarie Fukuyama."